Para qualquer família de classe média que procure mudar de casa, uma notícia que dê conta de possíveis reduções de preços será sempre encarada como uma oportunidade. Mas o Banco de Portugal está preocupado. É que, embora mitigada por outros fatores, a potencial redução dos preços das casas assinalada pelo supervisor é um risco para a banca. Porquê? Porque desvalorizaria os ativos que são dados como garantia nos empréstimos. A carteira de crédito desses bancos seria penalizada.
Este é um dos riscos identificados no relatório de Estabilidade Financeira, apresentado esta sexta-feira pelo governador Mário Centeno. Mas há outras preocupações e sugestões mais “fora da caixa”. Se por um lado, o governador considera que os apoios à economia e à liquidez das empresas não devem ser retirados de um dia para o outro, também considera que é “injusto” e penalizador mantê-las demasiado tempo. Especialmente se estivermos a falar de empresas não viáveis. E Centeno até sugere que o Estado deixe aos bancos — que têm o historial de crédito das companhias — a tarefa de separar o trigo do joio.
Preços das casas podem baixar (um risco para a banca)
O Banco de Portugal avisou esta segunda-feira que está atento a uma possível “correção dos preços” no mercado da habitação em Portugal. É que, apesar de sublinhar que “essa indicação está rodeada de incerteza” e que “deve ser interpretada com cuidado”, pode estar a verificar-se uma “sobrevalorização”, mesmo em tempos de pandemia.
Mas como é que é possível que, nestes tempos, com uma retração na procura, os preços das casas continuem a subir? Esta não é, como sabemos, uma crise normal. Os métodos usados pelos Estados para combatê-la não são os mais convencionais. Os níveis de emprego e, genericamente, o rendimento disponível das famílias, não sofreram alterações de vulto. E, entre outras características desta crise embrulhada pela pandemia, os preços das casas aumentaram.
Não é um fenómeno exclusivamente português. Os preços no mercado imobiliário, “à semelhança do observado na área do euro”, continuaram “a aumentar em Portugal durante a pandemia, embora a um ritmo mais lento”, nota o Banco de Portugal no relatório de Estabilidade Financeira, apresentado esta segunda-feira.
O supervisor constata que, no quarto trimestre do ano passado, o índice de preços da habitação cresceu 8,6% face ao mesmo período do ano anterior (mais do que entre os países que partilham a moeda única, em que atingiu os 5,4%). No primeiro trimestre, o aumento tinha sido de 10,3%. E entre março e dezembro de 2020, esse mesmo índice cresceu 3,5% (contra 4,4% na área do euro).
Só que, ao contrário do que uma subida deste género poderia deixar antever, a dinâmica da procura não é a mais linear. O número de transações de habitação diminuiu 5,3% ao longo do ano, mas o montante global das vendas feitas aumentou 2,4% (tinha subido 6,3% em 2019). Como? A resposta estará nos segmentos de casas em que a procura está mais imune à crise — o capital estrangeiro. O Banco de Portugal nota que “o crédito bancário interno não tem sido o principal fator subjacente à subida dos preços da habitação” e que “para esta subida terá contribuído a robustez da procura por não residentes”.
Um aumento que o Banco de Portugal admite poder ter os dias contados. O supervisor avisa que “uma potencial deterioração das condições de financiamento internacionais poderá traduzir-se na retração da procura de imóveis por não residentes”.
Os juros nos mercados estiveram completamente esmagados durante muito tempo, mas, durante a pandemia, a inflação acelerou nos EUA — a subida dos preços mais rápida desde 2008 — e também na Europa, conduzindo os juros para os níveis mais elevados em anos.
Para já, os bancos centrais desvalorizam esta tendência, e prometem manter as taxas em níveis historicamente baixas, mas, se a tendência continuar, pode chegar a um ponto em que terá impacto no mercado imobiliário. E essa é hipótese (ou risco) que está em causa no relatório do Banco de Portugal.
Esta questão é relevante porque, de acordo com o Inquérito aos bancos sobre o mercado de crédito, citado pelo Banco de Portugal, “o nível das taxas de juro contribuiu para um aumento da procura de crédito à habitação em 2020 e no primeiro trimestre de 2021”. O supervisor sublinha que “as baixas taxas de juro têm contribuído para o aumento da procura de habitação para investimento e contribuindo para a valorização destes ativos”.
E o que pode significar uma potencial redução dos preços, além de tornar um pouco menos difícil a compra de casa pelos portugueses? “Impactaria a carteira das instituições financeiras através da redução do valor do colateral do crédito à habitação“, de acordo com o Banco de Portugal. Os ativos que são dados como garantia nos empréstimos seriam desvalorizados, penalizando a carteira de crédito desses bancos.
O impacto, no entanto, “seria limitado pelo crescimento moderado do crédito à habitação nos últimos anos”, pela “redução nos últimos anos do rácio de endividamento das famílias, para todos os níveis de rendimento”, e a “melhoria do perfil de risco dos mutuários”. Se houvesse uma “correção dos preços do imobiliário residencial”, haveria, como resposta, “robustez do setor bancário“.
Centeno contra retirar medidas “cegas” para empresas não viáveis (mas também não as quer demasiado tempo)
É outra das principais preocupações deixadas pelo governador do Banco de Portugal no relatório de estabilidade financeira. Centeno está preocupado com a eventual (e extemporânea) retirada das medidas de apoio à economia, por considerar que esta decisão pode fazer aumentar o malparado e prejudicar o crescimento económico no período pós-pandemia.
“Neste momento de transição, em que se perspetiva que o processo de vacinação permita a resolução da emergência sanitária, persiste ainda incerteza quanto à trajetória de recuperação da economia, em especial dos setores mais afetados. Importa assim aferir fatores críticos na definição da estratégia de retirada de medidas excecionais de apoio à economia. A retirada prematura das medidas de apoio pode colocar em causa a recuperação da atividade económica”, indica o relatório.
Mas nos alertas que deixa no relatório há ainda outras considerações, nomeadamente sobre os apoios às empresas não viáveis. Apesar de o Governo ter um conjunto de critérios para a concessão de apoios públicos — incluindo a ausência de dívidas ao Fisco ou à Segurança Social, a verificação de capitais próprios positivos e a comprovação da quebra de atividade — não é fácil ao Estado verificar que empresas eram ou não produtivas antes da crise da pandemia e, sobretudo, quais as que têm capacidade de voltar a sê-lo, agora que se aproxima uma retoma mais sustentada.
Álvaro Santos Pereira alerta contra o fim prematuro dos apoios públicos relacionados com a pandemia
E se é por falta de capacidade do Estado de avaliar, Centeno deixa uma sugestão — talvez seja de confiar na avaliação que os bancos têm feito das empresas e da sua capacidade de cumprir os empréstimos contraídos.
“Torna-se relevante apoiar a atividade económica de forma mais direcionada, designadamente a empresas que, embora em dificuldade financeira, permanecem viáveis, com medidas que promovam a sua capitalização. A distinção entre empresas viáveis e não viáveis é um desafio para as políticas públicas, podendo ser determinante o aproveitamento da capacidade de avaliação da qualidade creditícia dos mutuários por parte do setor bancário”, salienta.
Em abril, em declarações ao Observador, o economista João Borges de Assunção, considerava precisamente que seria o mercado a fazer “a triagem” das empresas viáveis ou não. Em teoria, se uma empresa não conseguir cumprir as condições do banco (por falta de atividade suficiente ou demasiados custos) e falir, também mostra o mercado a funcionar.
E, sobretudo, esse trabalho já deveria ter sido feito. “O nosso sistema de insolvências já devia ter eliminado as empresas zombies”, mas, uma vez que não foram eliminadas, agora, no contexto da pandemia, “eliminar apenas essas seria injusto e não é necessariamente eficiente, porque o sistema funcionava com essas empresas dessa maneira”.
Mais uma vez, Mário Centeno parece concordar com esta ideia. “No caso das empresas consideradas não viáveis, assume especial relevância a agilização dos procedimentos de insolvência e liquidação de empresas”, considera o BdP no seu relatório.
Mário Centeno identifica ainda um outro problema associado às medidas de apoio à solvabilidade das empresas. Se é mau um cenário em que estas são cortadas a destempo, é igualmente penalizador continuar a alimentar artificialmente as empresas por demasiado tempo. “A sua manutenção por um período demasiado longo poderá introduzir distorções no funcionamento da economia, incluindo na intermediação financeira, e gerar ou potenciar a acumulação de vulnerabilidades”, salienta o supervisor. Leia-se, é um perigo — além de injusto — viciar as empresas não viáveis em apoios que as mantêm artificialmente vivas.
Por outro lado, Borges de Assunção notava em abril que um caminho mais acertado seria, eventualmente, “o Estado entrar no capital das empresas”, através de um “instrumento público de capital”. Mas o economista mostrava-se cético quanto a essa possibilidade devido à elevada dívida do país.
O Banco de Portugal pensa na mesma linha, ressalvando que o desenho de medidas deste tipo “coloca desafios relevantes”. E reconhece que este tipo de “instrumentos híbridos” — seja em novos apoios que incluam participações de capital do Estado em empresas não financeiras, seja convertendo empréstimos com garantia pública — têm vindo a ser utilizados em países como a Alemanha, a Espanha ou a França, como medidas de apoio estatal no contexto da pandemia.