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Imagine que está tão satisfeito com uma qualquer decisão parlamentar que lhe passa pela cabeça oferecer um Porto vintage, daqueles com quatro décadas e cujo valor ascende aos três dígitos, a um deputado. E tudo (vá lá, use a imaginação) sem ninguém saber. Pode? Em Portugal, sim. Mas na Bélgica, por exemplo, nem por isso. Há regras sobre ofertas aos deputados e obrigação de declarar o que for dado acima de determinado valor, bem como quem oferece. Esta é uma das diferenças mais evidentes quando comparamos com outros países os pontos problemáticos – detetados pelo Grupo de Estados Contra a Corrupção (GRECO) – nas regras de condutas dos deputados portugueses. Entre Portugal, Espanha, Reino Unido, Itália, França e Bélgica não há desequilíbrios colossais. Ainda assim, Espanha vai mais longe do que os outros Estados analisados quanto à mistura das funções de deputados com quaisquer outras, Portugal é muito transparente relativamente a tudo o que o deputado é obrigado a declarar, mas (lá está) é dos poucos que não se preocupa em colocar limites a prendas que possam ser dadas a deputados.

Em resumo: Portugal não é o mais avançado no que diz respeito a filtrar presentes, não se destaca no regime do que pode ou não um deputado acumular com essa função (ou em palavrões jurídicos: impedimentos e incompatibilidades), também não é o único com publicidade total de registos (aquele que poderia ser o ponto mais vanguardista), e os seus deputados são os que menos têm de se preocupar com a atualização de declarações de rendimentos (só o fazem no início e no fim do mandato).

Nos países passados em revista (Espanha, Reino Unido, França e Bélgica, além de Portugal, claro) existem sempre duas câmaras parlamentares, mas aqui o foco fica pela câmara de representantes dos eleitores, excluindo-se os senadores, já que não existem por cá. De resto a ideia foi olhar para o que apontou o GRECO e ver se há motivo de preocupação. No caso dos donativos e prendas, Portugal fica como a Espanha no último lugar dos países que menos atenção dá a este capítulo – os deputados belgas, por exemplo, lidam com valores máximos a partir dos quais têm de declarar ofertas. E têm também um limite para quem dá (ver na descrição de cada país).

Para os deputados portugueses contactados pelo Observador, o assunto não incomoda, mas dá que pensar. António Filipe, do PCP, diz mesmo que “o problema não está em receber prendas, mas no intuito de quem dá. O problema não está na prenda em si, mas na conexão que se pode estabelecer a partir daí”. Não fecha a porta a limites – “eventualmente”, diz – mas também avisa que “as prendas não são controláveis, a não ser por investigações judiciais”.

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Quando confrontado com a hipótese de estabelecer limites a ofertas a deputados, o deputado do PSD Duarte Pacheco fica pensativo – “porventura”. Mas acaba pode argumentar com dificuldades sentidas na Comissão Europeia na aplicação de regras sobre valores-limite para prendas: “Por exemplo, qual o valor de um convite para assistir a um jogo de futebol? É o preço de mercado de um bilhete normal?” O social-democrata mostra-se confortável com o atual regime (ou seja, a declaração de rendimentos entregue no início e fim de mandato) e considera-a suficiente para detetar “alterações significativas” no património do deputado. Do CDS, Nuno Magalhães considera que limites para ofertas “não têm grande aplicabilidade em Portugal”, argumentando que o valor do “pouco” que chega aos deputados é “irrisório”.

Já quanto ao incómodo que o GRECO manifesta por existirem deputados que são advogados, o deputado e líder parlamentar do CDS é mais radical. O Bloco de Esquerda tem sido um dos partidos mais empenhado em impedir esta acumulação e já a tentou apresentou várias vezes alterações ao estatuto dos deputados nesse sentido, mas foi sempre à barra. A verdade é que o regime de exclusividade, por princípio, só se verifica mesmo em Espanha, entre os Estados analisados (ver em baixo). Os deputados espanhóis que queiram ter outras atividades, como a advocacia, têm de pedir autorização ao Parlamento. A regra por lá é dedicação exclusiva.

Nos outros países, as listas de cargos incompatíveis são muito idênticas, repetindo-se sempre os cargos públicos, em empresas públicas, funções militares, mas também advogados em processos contra o Estado. Para Nuno Magalhães, a ideia do BE contra os deputados-advogados “parte de uma suspeição generalizada e tem como consequência inevitável fazer do deputado um funcionário público, fazer disto uma carreira”. Isto diz o deputado, apesar de ele próprio estar em regime de exclusividade. “Mas quero ter essa liberdade de escolha”, justifica Magalhães ao mesmo tempo que atira exemplos de outras atividades que, pela regra do BE, teriam de também ser interditas a um deputado: “Não se pode ser artista e votar o orçamento da Cultura. Se fosse assim era para aplicar a todas as atividade e não só à do deputado”.

Os vários Parlamentos são muito parecidos quanto a registos de entrega obrigatória quando se assume o mandato. Os cinco exigem pelo menos dois diferentes: um sobre atividades e outro sobre rendimentos e património. Portugal é o que menos concentra estes registos num único sítio, mas também é o que menos entraves coloca à sua consulta (tanto das atividades em que os parlamentares estão envolvidos, como dos seus rendimentos). Aqui, os deputados portugueses são tão escrutinados como os deputados britânicos e os espanhóis. Os mais reservados são os belgas, que só permitem que as declarações de rendimentos sejam consultadas quando há um processo instruído contra o deputado em causa. E os franceses têm uma variação: a consulta é possível, mas apenas a eleitores do círculo do deputado. E se os dados forem tornados públicos, a multa é pesada.

A lei Severino e as contas escondidas no estrangeiro

O que se pede aos deputados é praticamente igual em cada país, em leis que são sempre muito alteradas, sobretudo em momentos de maior crise de credibilidade dos titulares de órgãos públicos. Os casos são muitos e aí também não há diferença de país para país, embora os maiores problemas estejam mais vezes relacionados com financiamentos ilegais ou despesas indevidas, como em 2009 no Reino Unido. Aqui, os deputados reagiram apertando a malha aos benefícios e a publicidade das despesas que podem apresentar.

Em Itália, outro exemplo, a famosa lei Severino (da ministra Paola Severina) consagrou um regime de “ineligibilidade” que apanhou Berlusconi. A lei define que não são ilegíveis por seis anos os condenados pela Justiça. Em Portugal, o caso Sócrates fez os deputados da então maioria PSD/CDS voltarem a tentar pôr na lei a criminalização do enriquecimento ilícito.

Já em França houve um escândalo recente que acertou em cheio no ponto das declarações de património, levando o governo reagir. Em 2013, François Hollande teve de exonerar Jerome Cahuzac, ministro-adjunto do ministro da Economia e Finanças encarregado do Orçamento, depois de este ter escondido uma conta na Suíça. Nesse mesmo ano, o governo avançou com um pacote de medidas para maior transparência na política, uma delas foi a obrigação dos deputados de declararem tudo o que têm em contas estrangeiras.

Nessa alteração de legislação foi também criada uma entidade independente para analisar e fiscalizar tudo o que diz respeito às regras a que os deputados estão sujeitos, bem como dos seus registos que têm de ser atualizados ao longo do mandato. Esta é, aliás, a regra nos países comparados. Portugal nem por isso. O registo de atividades vai sendo atualizado, mas o de rendimentos só tem de ser entregue no início e no fim. “Não me parece pouco”, diz Nuno Magalhães que, mesmo sem regra escrita, atualiza a declaração sempre que há motivo.

António Filipe diz que “seria desejável, em tese, que fosse uma incumbência do Ministério Público olhar para as declarações. Isto além do escrutínio público, que já existe”. Mas também adverte que “existe um problema de meios”, justificando com a quantidade de declarações que chegam ao Tribunal Constitucional. É que ali não são só os deputados que têm de entregar, mas todos os titulares de cargos políticos. A fiscalização insuficiente destas declarações é uma das falhas apontadas pelo GRECO, mas Duarte Pacheco diz que “até ao momento não ouvimos queixa pública de ausência de meios para fazer esse trabalho, por parte do Tribunal Constitucional”. Já Nuno Magalhães do CDS diz que não vê necessidade de reforçar: “Também não tem de haver um striptease permanente, porque qualquer dia já ninguém quer vir para funções públicas”.

Cada país visto à lupa

PORTUGAL

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Quem é eleito deputado tem de entregar, no início do mandato, três registos em três sítios diferentes.

O primeiro é depositado, 60 dias depois da eleição, na Comissão parlamentar de Ética e tem de conter todas as atividades exercidas no público e no privado nos últimos três anos. Tem de também dizer que atividades vão ser mantidas em simultâneo com o cargo de deputado e o registo de interesses financeiros, ou seja, a quem foram prestados serviços, a participação em órgãos colegiais, subsídios e apoios financeiros do próprio e também das pessoas com quem está casado, por exemplo.

Depois tem de entregar uma declaração do Tribunal Constitucional, no início e no fim do mandato, com o total do rendimento bruto declarado no último IRS, a descrição do ativo patrimonial que tem em Portugal e no estrangeiro. Nessa informação detalhada também tem de declarar casas, carros, barcos em seu nome, ações ou partes sociais em sociedades civis ou comerciais. Tem de descrever o seu passivo em relação ao Estado e a instituições de crédito, dentro e fora do país.

Por fim tem também de entregar uma declaração simples de inexistência de incompatibilidades e impedimentos na Procuradoria-Geral da República.

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O registo entregue no parlamento fica público no portal do parlamento. Já a declaração de rendimentos pode ser consultada por qualquer pessoa mas depois de pedido ao Tribunal Constitucional.

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Os deputados não podem exercer um conjunto de cargos públicos (Presidente, ministro, secretario de Estado), e também não podem ser membros do conselho de gestão de empresas públicas ou funcionários do Estado ou de pessoa coletiva pública. No entanto isto não engloba atividades como professores universitários ou investigadores.

É necessária autorização da Assembleia da República para serem jurados, peritos ou testemunhas e também para arbitragem em processos contra o Estado. A mesma coisa para alguns cargos de nomeação governamental.

Mas não há qualquer hipótese de um deputado poder acumular essa função com o exercício direto ou indireto de comércio e indústria. Também não podem participar em publicidade.

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Não está nada regulamentado.

ESPANHA

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Os deputados têm de entregar dois formulários quando iniciam funções e quando saem. Um com o registo de interesses e ativos financeiros que tem de conter informação detalhada sobre casas, propriedades, veículos, empréstimos, ações, planos de pensões e rendimentos provenientes de outras atividades e um outro com atividades secundárias que possam acumular com o cargo. Ambas devem ser atualizadas no decorrer do mandato. É o presidente do congresso o responsável pelos registos relativos ao património, enquanto o segundo registo fica na responsabilidade da comissão do estatuto dos deputados. As sanções disciplinares por falhas nestes registos são impostas pelo presidente do congresso, sob proposta da comissão competente que fica investida de poderes de investigação, caso existam suspeitas de tráfico de influências ou de corrupção dentro do parlamento.

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Ambas as declarações são públicas e estão disponíveis online desde 2011.

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O princípio em Espanha é a exclusividade. Os deputados não podem exercer atividades públicas ou privadas, mas também não perde o lugar de origem, podendo voltar a ele no final do mandato. Há algumas atividades que são permitidas, mas são muito limitas já que necessitam de uma autorização especial. E para acautelar que nessas exceções não entra tudo, a lei espanhola (regime eleitoral geral) conta com uma lista de cargos interditos, como o de ministro ou de membro do conselho de administração de empresa pública. Nas exceções cabem deputados que sejam professores universitários, produtores de atividade artística ou científica. Também está previsto o exercício de atividade privada que não conste na lista de incompatibilidades, mas aí há que pedir a aprovação da comissão responsável. Os dados do GRECO sobre as duas câmaras espanholas mostram que apenas 30 membros, de 616, exercem atividades privadas e que 40 são advogados e 100 prestam serviços ocasionais em conferências e palestras.

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Não está nada regulamentado.

BÉLGICA

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Os deputados têm de entregar, todos os anos no Tribunal de Contas, a lista de todos os cargo públicos e privados exercidos e se são ou não remunerados. Entrega também uma declaração de rendimentos, no início e no fim do mandato. Têm ainda de entregar ao presidente da câmara os dados úteis sobre outras funções em cargos públicos de ordem política que exerça e informar sempre que existam alterações no decorrer do seu mandato.

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A declaração de atividades é publicada no jornal oficial Moniteur Belge, mas a declaração e rendimentos é entregue num envelope selado, tem garantia de confidencialidade absoluta e só pode ser consultada no âmbito de um processo instruído contra o deputado.

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Aqui existe uma lei própria que se aplica a todos os titulares de cargos políticos que define que um deputado não pode ser funcionário público, nem titular de outros cargos públicos. Também não pode ser advogado do governo, nem juiz ou participar em processos de arbitragem. Também não pode ser membro do conselho de administração de empresas dependentes do Estado.

Quando saem de funções, os deputados ficam impedidos de aceitar cargos pagos no Estado por um ano.

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Os deputados têm de ter uma lista anual de donativos (só são admitidos aqueles que vêm de pessoas singulares) que excedam os 125 euros, devendo especificar a sua proveniência. Uma mesma pessoa não pode dar mais de 500 euros anuais a um mesmo deputado e não pode exceder os dois mil euros em donativos para vários deputados. Esta lista deve ser apresentada até meio do ano, juntamente com as contas dos partidos, também no Tribunal de Contas. Mas nunca é tornada pública. O código deontológico aprovado em 2013 define que os deputados não podem aceitar qualquer compensação financeira ou de outra ordem em troca por um trabalho feito no exercício do mandato, incluindo qualquer presente que tenha mais do que um valor simbólico.

FRANÇA

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Existe uma Alta Autoridade de Transparência da Vida Pública, independente, para controlar as declarações dos dos deputados que tenham sido entregues à mesa do Senado. A declaração de ativos financeiros (que tem de incluir bens móveis e imóveis, contas, produtos financeiros e móveis e imóveis em contas estrangeiras) é entregue a esta entidade no início e fim do mandato e devem ser atualizadas sempre que houver alterações.

Têm também de entregar ao presidente do parlamento e à Alta Autoridade uma declaração de interesses e de atividades (remuneradas ou não) com tudo o que foi exercido nos últimos cinco anos.

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A declaração de rendimentos é sei confidencial, ou seja, pode ser consultada, depois de pedido e acompanhada por autoridades, e por eleitores do círculo de eleição do deputado, mas se houver alguma divulgação pública, a multa pode ir até 45 mil euros. Quanto à declaração de interesses e de atividade profissional, podem ser consultadas por toda a gente e estão online, sendo apenas privados os dados relativos a terceiros.

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A regra é que outros cargos no setor público (não eletivos) são incompatíveis com a função do deputado. Não é possível ser presidente ou diretor geral ou até desempenhar qualquer consultiva permanente em empresas públicas. Também não podem pertencer a conselhos de administração de empresas públicas, por exemplo, ou ter qualquer cargo em empresas que tenham por principal atividade a execução de obras ou fornecimento de bens e serviços ao Estado.

Mas podem ter cargos públicos no poder local, desde que não sejam remunerados

Estão impedidos de utilizar o cargo para fazer publicidade de empresas financeiras, comerciais ou industriais.

Quanto à advocacia, os deputados estão impedidos de participar em processos contra o Estado. Também não podem exercer funções de consultadoria, a menos que já o fizesse à data da eleição.

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Não há qualquer proibição neste capítulo, mas os deputados ficam obrigados a declarar à comissão de ética donativos ou benefícios de valor acima dos 150 euros e viagens que sejam oferecidas.

REINO UNIDO

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Os deputados são responsáveis por apresentar ao responsável pelos registos financeiros a sua declaração de interesses. Isto tem de ser feito no prazo de um mês, bem como qualquer alteração que exista. Além disso, existe uma outra declaração obrigatória de qualquer interesse relevante para o debate em curso e tem de ser expressada, de forma breve e clara, no início de uma intervenção parlamentar em que estejam ministros ou funcionários do Estado. Esta declaração não pode limitar-se a remeter para a que foi entregue ao parlamento.

A fiscalização é feita por um elemento, um comissário parlamentar, que é independente e nomeado por concurso público por um período de cinco anos não renováveis. É ele que recebe e investiga queixas sobre deputados que possam estar a violar o código de conduta da Câmara.

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Ambos os registos são públicos.

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As incompatibilidades são sobretudo relativas a outros cargos públicos, incluindo cargos judiciais, membros de forças armadas, por exemplo. Fora do âmbito público, a atividade é livre. No caso dos advogados, ficam impedidos de actuar (de forma remunerada) em processos que envolvam o parlamento e em que possam ter benefício pessoal ou beneficiar uma organização onde tenham participação.

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Não há qualquer proibição, mas não são permitidas compensações por trabalhos feitos no parlamento ou por apoio ou chumbo de uma lei específica.

As prendas com valor superior a 1% do salário médio de um deputado têm de ser declaradas à Câmara.

Ilustração e grafismo: Milton Cappelletti