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"Vamos ter um país mais quente, mais seco e mais ventoso e vamos ter de nos habituar a isso", diz o presidente do IPMA
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"Vamos ter um país mais quente, mais seco e mais ventoso e vamos ter de nos habituar a isso", diz o presidente do IPMA

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

"Vamos ter um país mais quente, mais seco e mais ventoso e vamos ter de nos habituar a isso", diz o presidente do IPMA

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Presidente do IPMA em entrevista sobre onda de calor e incêndios: "Num país que não fosse democrático era tudo resolvido amanhã"

Em entrevista, o presidente do IPMA, Miguel Miranda, aponta a principal causa dos fogos florestais, dá razão a Costa sobre a "mão humana" na origem dos incêndios e avisa: "O país continuará a arder".

Horas após aconselhar o primeiro-ministro António Costa a prolongar o atual estado de contingência, graças ao risco aumentado de incêndio, o geofísico Miguel Miranda explicou ao Observador porque o fez — numa altura em que todas as previsões apontam para que as temperaturas, que nos últimos dias quebraram recordes para esta época do ano, comecem a descer.

Assumidamente pessimista no que à meteorologia do país e do mundo diz respeito, o presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) vaticinou que, ainda ao longo de 2022, Portugal possa passar por várias outras ondas de calor — isto quando o “normal” seria ter apenas uma por ano. Também não descartou que fenómenos extremos como a cúpula de calor que no verão passado provocou centenas de mortes no Canadá e nos Estados Unidos possam verificar-se em Portugal.

“Vamos ter um país mais quente, mais seco e mais ventoso e vamos ter de nos habituar a isso”, disse, para depois identificar o que considera o principal problema do país, no que aos incêndios e à sua prevenção e combate diz respeito: o facto de continuarem a existir, nas florestas, “micro-populações” que considera não serem sustentáveis “do ponto de vista climático”.

“Num país que não fosse democrático nós tínhamos a capacidade de tomar uma decisão administrativa e era tudo resolvido amanhã — nós não, o Governo! Agora, num país democrático é muito complicado resolver, porque tem de haver um consenso coletivo da impossibilidade de ter casas na floresta e esse consenso não existe”, defendeu o geofísico.

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Ao longo de 40 minutos de entrevista, Miguel Miranda falou ainda nas incontornáveis “mudanças climáticas” — “Não há alterações, alterações é um problema nervoso” —; na nova geometria do anticiclone dos Açores; e na forma como a seca veio para aumentar “para sempre” o risco de incêndio em Portugal — mesmo que as temperaturas não sejam tão extremas como as que têm sido registadas nesta segunda semana de julho.

Questionado sobre as polémicas afirmações de António Costa, que disse que todos os incêndios têm, na génese, “mão humana”, o presidente do IPMA foi ainda mais longe: “Têm mão e têm pé”.

Espera-se que as temperaturas comecem a baixar progressivamente nos próximos dias — aliás, o dia mais quente do ano foi terça e não quarta-feira, como chegou a estar previsto —, ainda assim achou esta manhã mais prudente aconselhar o prolongamento da situação de contingência até  domingo. Porquê?
Sim, se bem que a temperatura média até possa diminuir um bocadinho, as circunstâncias extremas estão a concentrar-se numa pequena área do país, mas não deixam de ser extremas. É por isso que nós também redimensionámos a área em que declarámos alerta vermelho, o interior Norte e o interior Centro. Penso que em Braga ainda está em vigor, como sabe temos uma situação em que a humidade muito baixa está a chegar até muito perto da costa.

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Mas a situação de contingência vai ser em todo o país.
Sim. É preciso perceber-se que ao ter de concentrar muitos meios numa zona que ainda assim é muito extensa, obviamente que eles também entrarão em stress nas zonas de menos risco.

A partir da próxima semana indica que teremos temperaturas mais baixas, mas ainda assim acima dos 30ºC…
Estaremos em situação de tempo quente, a vantagem que temos muito grande em relação à situação atual é que vamos ter noites já com temperaturas ditas normais para a época, ou seja, abaixo dos 20ºC.

A questão das noites quentes é importante, estamos a ter noites tropicais, uma situação que já não se vivia há anos…
Tem havido períodos, a diferença é que este período foi muito longo. Este período vai ter onda de calor que em alguns locais vai ultrapassar os 10 dias. É muito.

E porque é que isso está a acontecer?
É mesmo uma alteração da situação climática.

Certo, mas o que mudou para que tenhamos agora esta alteração da situação climática nas noites?
Neste caso não temos tido o regime da chamada Nortada. Existe o chamado regime de brisa — a brisa que vai da terra para o mar e do mar para a terra, durante o dia e durante a noite. Isso conjugado com o chamado efeito Coriolis faz com que nós tenhamos em Portugal vento de noroeste. Esse vento, ao fim da tarde, é do oceano para a Península Ibérica, ao longo de toda a faixa costeira. E arrefece toda a zona litoral. Aliás, é isso que dá a Lisboa aquele ar mais oceânico, que dissipa até os aerossóis e uma parte da poluição e que dá este ar fresco a cidades como Lisboa, Aveiro, Figueira da Foz ou ao Porto. Não é por acaso que, quando as pessoas cá vêm, acham que são sempre ambientes muito abertos, sobretudo quando comparado com cidades interiores, como Madrid ou Paris.

Nos próximos dias o interior Norte e o interior Centro vão manter-se em alerta vermelho para incêndios

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Mas podemos considerar que isso mudou nos últimos anos, ou não?
Nós temos tido uma redução, pelo menos estamos a ter este ano, da Nortada. E uma das consequências da redução da Nortada é aquela situação, que não sei se reparou nas nossas previsões, em que humidades muito baixas chegam quase à linha de costa. Outra são as temperaturas muito altas; nós tivemos temperaturas de muito mais de 30ºC, mesmo ao pé da linha de costa, uma coisa que era completamente invulgar. Aliás, onde nós para batemos recordes foi nesses locais, não foi do interior.

Então voltando aos 30ºC, o primeiro ministro disse esta quinta-feira que mesmo que acabe a situação de contingência vai manter-se o estado de preocupação. Mas é verão, não é normal nesta época termos temperaturas acima de 30.ºC?
É normal e até é normal termos algumas noites tropicais. Mas valores de temperatura muito altos, acima dos 40.ºC — atenção, estamos acima dos 45.ºC —, conjugados com o fim de um ano muito seco, felizmente que não é normal. Agora, se a pergunta for: mas vai tornar-se o chamado “novo normal”? Bem, em parte vai. A nossa expectativa é que isso aconteceria dentro de uma década, duas décadas, não propriamente agora já e todos os anos. Mas o sistema de terrestre é o que é, não é um modelo, não é matemática.

Falou de um ano muito seco. De que forma é que, na prática, a seca que estamos a viver influencia tudo isto?
A seca influencia tudo isto, claro, porque os índices de risco de incêndio dependem também da precipitação nos dias anteriores — e até desde o princípio do ano hidrológico. E o que temos tido é um ano muito seco e os índices ficam logo muito altos. O que é que isso quer dizer? Não havendo água retida no solo, havendo valores muito altos de evapotranspiração — que é o vapor de água que as plantas perdem — as plantas secam e definham. E, secando e definhando, são um combustível ótimo para os fogos florestais.

"Nós costumamos dizer — e é sem nenhum tipo de mal — que o que os homens não conseguirem resolver, resolve o fogo. Ao terceiro ou quarto incêndio a casa fica abandonada. E a pessoa acaba por sair de outra forma qualquer. Na verdade, se se criarem condições ambientais, que são incompatíveis com a ocupação e com a existência de habitações, as pessoas vão acabar por se mudar"
Miguel Miranda, presidente do IPMA

Isso significa que, mesmo sem temperaturas extremas como aquelas que vimos esta semana, mantendo-se a situação de seca extrema, vamos ter sempre o risco de incêndio aumentado?
Vamos ter sempre o risco aumentado. Aliás, se por acaso seguiu os acontecimentos da Califórnia, ou se quiser ser mais radical os da Austrália, pode verificar que as temperaturas que estavam na base dos dias de risco muito elevado nem sequer eram muito elevadas. No caso da Califórnia acho que nem chegavam a 30.ºC, tinham era velocidades de vento muito grandes. Portanto, aqui há vários fatores e pode dominar um ou dominar outro. De certa forma, nós às vezes temos mais medo de velocidades de vento, por exemplo, superiores a 60 km/h por hora, do que propriamente de temperaturas de 40.ºC.

Num futuro a médio prazo vamos poder ter épocas de incêndio como as da Califórnia?
Podemos realmente ter, o que se passa é que nós temos uma organização do território que não é semelhante à da Califórnia. Temos muitas habitações disseminadas na floresta e temos muitos pequenos lugares e aldeias que são habitados por muito poucas pessoas. E, portanto, ou nós conseguimos fazer uma espécie de reconcentração urbana — que é socialmente muito complexa e até provavelmente socialmente injusta —, ou vamos ter sempre esta situação de termos que pagar a fatura da desordenação anterior.

Como é que se faz essa reconcentração urbana, deslocam-se as pessoas?
As pessoas vão sempre ser deslocadas, normalmente será a geração seguinte.  Nós costumamos dizer — e é sem nenhum tipo de mal — que o que os homens não conseguirem resolver, resolve o fogo. Ao terceiro ou quarto incêndio a casa fica abandonada. E a pessoa acaba por sair de outra forma qualquer. Na verdade, se se criarem condições ambientais, que são incompatíveis com a ocupação e com a existência de habitações, as pessoas vão acabar por se mudar.

Num país que não fosse democrático nós tínhamos a capacidade de tomar uma decisão administrativa e era tudo resolvido amanhã — nós não, o Governo! Agora, num país democrático é muito complicado resolver, porque tem de haver um consenso coletivo da impossibilidade de ter casas na floresta e esse consenso não existe. É claro que as pessoas consideram que ter uma casa na floresta é uma coisa simpática, interessante e confortável. O que se passa é que os custos que ela está a ter para o sistema geral são muito elevados e esses custos podem ser tanto sob a forma de pagamentos às forças de segurança, como podem ser sob a forma de pagamentos dos tais serviços ambientais.

Mas a verdade é que é altamente questionável porque é que a comunidade nacional deve pagar a existência de micro-populações, quando elas na verdade, de um ponto de vista climático, não são provavelmente sustentáveis. É um processo muito complexo, a gente não deve ter a tendência de o simplificar e dizer que era fácil saber, que a gente sabe a solução. Ninguém sabe a solução, isto tem de ser por aproximações sucessivas.

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Pode dar um exemplo?
É como acabar com os cigarros. Como é que se diminuiu muito o consumo de cigarro? Por um lado foram restrições, deixou de ser autorizado fumar num conjunto de locais; por outro as próprias pessoas, coletivamente, começaram a achar que fumar não era uma coisa socialmente interessante. E, a partir daí, começou a haver uma redução real da do consumo. Aqui é a mesma coisa. Quando as pessoas considerarem que não é socialmente interessante ter uma casa no meio de uma floresta, qualquer que ela seja — porque também não vale a pena demonizar uma espécie arbórea em detrimento de outras…

Estamos a falar dos eucaliptos, não é?
Estou a falar dos eucaliptos, toda a gente sabe que os pinheiros têm riscos praticamente iguais. E, se não forem os pinheiros, é outra coisa qualquer. Na verdade se você tiver seca ao ponto de a árvore ter dificuldades em completar o seu ciclo de vida, o seu ciclo anual, obviamente que será pasto para chamas.

Portanto aquilo que está a dizer é que casas na floresta serão talvez o primeiro obstáculo…
… A uma gestão simples, com certeza! E agora porque é que é um obstáculo? Porque nós até agora nunca conseguimos — e ninguém conseguiu — desenhar uma utilização económica sustentável desse tipo de estruturas. Se nós disséssemos assim: mas nós termos solos ricos e, portanto, podemos ter à volta da casa uma uma cultura qualquer, com valor económico suficiente para manter o fogo longe, isso seria ótimo, era ouro sobre azul para conseguirmos ter uma vida rural sustentável. Mas não somos capazes de o fazer, porque as parcelas são muito pequenas e as pequenas comunidades não têm capacidade financeira para fazer grandes investimentos, e ficamos numa situação em que isto vai ter de partir para um dos lados.

E o que quer dizer com partir um dos lados? Significa que continuará a arder?
Continuará a arder. Na melhor das situações é como estamos a fazer agora, salvaguardamos as pessoas, reduzimos ao máximo os riscos sobre o património e quando acaba a crise voltamos à mesma vida. Isso é o que se está a fazer agora. Uma coisa diferente era ou não salvaguardamos as pessoas — o que não pode ser, porque isso é um problema de humanidade. Ou não salvaguardarmos o património — que também seria um problema, é atentar contra os bens de pessoas que também têm muito poucos bens na maioria dos casos. Ou não voltar à mesma vida —  que seria forçar as pessoas a ter, do ponto de vista pessoal, uma vida que não escolheram. Não sei se estou a ser claro. A pessoa vive numa aldeia muito pequena, isolada, onde são os únicos habitantes que nós vimos na televisão, e agora são obrigados a ir viver para uma cidade do interior, uma cidade média, por exemplo.. Quer dizer, não é a vida que a pessoa quis, não é a vida que escolheu, não é a vida dos seus antepassados, não é o local onde estão enterrados os seus mortos… E nós somos feitos disto tudo, somos feitos de valores e uns são materiais e outros são imateriais. Portanto, está a ver que eu não sou muito otimista.

Não é um cenário muito positivo, não. E no meio disto tudo onde é que entram as mudanças climáticas? Sei que prefere chamar-lhes assim, em vez de alterações.
Sim, não há alterações, alterações é um problema nervoso. A mudança climática entra porque acelera o processo. Numa situação normal isto fazia-se em quatro ou cinco gerações. As pessoas não tinham economia no campo, iam migrando para as cidades e para o litoral, para tentar ter uma vida mais sustentável e para que os filhos tivessem uma vida mais cosmopolita, que é o que se procura habitualmente. E a paisagem ia-se renovando. Mas nós estamos numa situação em que não temos tempo. As alterações são no prazo de uma geração, ou duas.

Mas, hoje em dia, estamos a assistir muito ao fenómeno inverso, há muita gente que está a voltar para as zonas rurais para procurar uma vida melhor e se calhar isso também aumenta o problema não?
Isso é conversa de jornal, não tem valor estatístico. Agora você vai à maioria dessas zonas, em que as pessoas dizem que mantêm as aldeias porque vão lá uma semana por ano, mas não há economia. Não há economia que aguente aquilo. E não é possível fazer-se tudo com subsídios, não é possível.

As pessoas estão a mudar-se para aqui [cidades], mas as pessoas não se estão a mudar só por dinheiro. Estão a mudar-se porque cada vez mais querem experiências e querem cosmopolitismo e querem fazer parte do mundo global. As pessoas já não vão à catequese aos 7 anos e têm como contacto com a filosofia o senhor padre. Esse mundo já não existe. As pessoas agora querem ter muitos contactos, muitas interações. Querem conhecer muita gente, ter muitas ideias. E isso são as cidades, as cidades são a busca da interação.

E as mudanças climáticas no meio disso tudo?
As mudanças climáticas aceleram muito o processo e dizem assim: “Agora já não pode ser o teu pai que vai, nem o teu filho, nem o teu neto — agora és tu!” E dizem isso a cada um de nós: “Agora és tu, não estás aqui já a fazer nada, não te aguentas aqui”.

Pior do que isso, ainda temos outro aspeto: os pais cujos filhos e netos já saíram e continuam nos seus locais de origem, com cada vez menos capacidade de gerir o espaço rural — porque o espaço rural exige muito trabalho, exige muito mais esforço de cada um e quando a pessoa tem uma idade avançada, cada vez o esforço é mais difícil. E quando a pessoa usa fogo para resolver algum dos problemas, em particular de sobrantes, e já não tem o dinamismo dos 40 anos ou dos 30 ou dos 20 — em que qualquer problema é capaz de ser recuperado rapidamente —, então temos um conjunto de situações que são muito difíceis de gerir.

"É preciso deixar de emitir o CO2. Não há nenhuma alternativa a isto. Isso não tem a ver com outros assuntos super importantes, como a biodiversidade ou os corais ou o quer que seja ou até ao património genético — cuja perda é tão grave. Isto é uma coisa mais básica ainda: nós não podemos emitir mais CO2. Mesmo sabendo que algumas das soluções que vão ser encontradas também têm graves problemas — e todas têm —, não há solução nenhuma em que possamos prescindir da redução das emissões de CO2"

Mas ainda não percebi como é que entram as mudanças climáticas.
Entram porque, na nossa latitude, nós temos menos precipitação e temos mais temperatura.

É o anticiclone dos Açores ou não é só?
Isto pode ser visto de muitos e muitos ângulos: a circulação atmosférica na zona do Atlântico Norte, que é aquela que nos influencia e em que o elemento fundamental é o chamado anticiclone dos Açores, está a mudar a sua geometria.

Também de forma muito acelerada?
De forma razoavelmente acelerada. Nós aqui, por acaso, estamos muito atentos à situação por causa da Madeira. Porque isso também nos afeta a meteorologia extrema na Madeira que tem consequências muito graves para a aviação. Temos estudado muito esse problema, com a Universidade de Lisboa, e temos a consciência de que há mudanças que são claramente climáticas. Não é perturbação, é climática. E será cada vez mais assim?

E no caso da Madeira tem a ver com com as chuvas torrenciais?
Tem a ver com tudo. É uma mudança da estrutura da circulação que leva a que o número de dias com vento superior a 25 nós na zona de Santa Catarina (o que provoca turbulência em altitude) esteja a aumentar a cada ano que passa. Claro que a tecnologia é melhor, os aviões são mais inteligentes, os sistemas de observação são mais sofisticados, mas na verdade o caminho está traçado e não vai andar para trás.

E que caminho é esse?
Vamos ter um país mais quente, mais seco e mais ventoso e vamos ter de nos habituar a isso.

Porque não há nada a fazer, a situação é impossível de reverter. Mas pode ser abrandada?
É preciso deixar de emitir o CO2. Não há nenhuma alternativa a isto. Isso não tem a ver com outros assuntos super importantes, como a biodiversidade ou os corais ou o quer que seja ou até ao património genético — cuja perda é tão grave. Isto é uma coisa mais básica ainda: nós não podemos emitir mais CO2. Mesmo sabendo que algumas das soluções que vão ser encontradas também têm graves problemas — e todas têm —, não há solução nenhuma em que possamos prescindir da redução das emissões de CO2. O problema é que, mesmo com o que se tem feito, a chamada Curva de Mauna Loa continua a subir ao mesmo ritmo. Teriam de ser tomadas medidas radicais — e no mundo todo.

Dizia que vamos ter de nos habituar a um clima diferente, mais seco, mais quente e com mais vento. Isso significa que fenómenos extremos que temos visto noutros países, como a cúpula de calor no ano passado, no Canadá e nos Estados Unidos, por exemplo, podem vir a acontecer cá?
Claro, claro. A cúpula de calor não é muito diferente daquilo que a gente teve aqui, ou está a ter. É é mais intenso. Nós aqui há uns dias estávamos com imenso medo de se gerar um bloqueio de grande extensão temporal. Mas felizmente ele desfez-se.

Troque isso por miúdos, por favor.
Um bloqueio é quando a meteorologia fica numa tal situação que os sistemas meteorológicos não mudam de sítio. A meteorologia vem sempre de oeste para este, por isso é que os portugueses foram sempre muito importantes. Como tínhamos os Açores, o que observávamos nos Açores era o que ia acontecer na Europa dentro de três ou quatro dias. No século XX, ou no fim do século XIX, não havia satélites, não havia balões, eram as pessoas que observavam — e Portugal tinha essa componente de observação. Há uma certa rotação dos sistemas meteorológicos, aquilo a que se chamam as frentes e as massas de ar. E o que é que acontece? Há situações meteorológicas em que o sistema pára. Não roda, está uns tempos ali paradinho. E, quando isso acontece, os núcleos que são muito quentes aquecem estupidamente o solo. E foi o que aconteceu também no Canadá e é uma situação que, do ponto de vista da cobertura vegetal, não é suportável.

Ou seja, o calor é tão intenso…
É intenso e concentrado, não há brisa, não há nada. Nós agora, que suspiramos… Imagine, seguramente sempre reclamou por causa da nortada, quando estava na praia às 17h e lá vinha aquela porcaria de vento que não saía do sítio. E agora estamos todos a suspirar pela Nortada.

Portanto, há uns dias temeram que pudesse verificar-se este fenómeno da cúpula de calor.
Claro, porque se gerou uma situação que podia dar um bloqueio. Depois há um aspeto global, que não tem propriamente relação direta, mas que penso que se percebe bem: temos o Ártico a aquecer muito mais depressa do que o Equador, o que faz com que a diferença de temperatura entre os polos e o Equador diminua. Ora, há uma relação entre a velocidade da rotação dos tempos meteorológicos e essa diferença de temperatura. Quanto maior for a diferença de temperatura mais rapidamente anda o tempo, logo ao reduzir-se essa diferença de temperatura, o tempo anda mais devagar.

E é provável então haver bloqueios.
Tornam-se mais prováveis as situações de bloqueio, sim. Aliás, nos últimos tempos temos tido algumas — às vezes são apenas aborrecidas, agora, quando se junta a um bloqueio uma situação de tempo extremo, não é apenas aborrecido, é perigoso.

Portanto, estas situações podem tornar-se mais frequentes em Portugal. O professor Pedro Matos Soares alertou esta semana para o facto de já termos tido duas ondas de calor este ano, quando o normal era ter uma…
Exatamente. E eu não me lembro de uma tão longa como esta vai ser. Não vai ser o país todo, mas acho que na zona de Santarém, Fonte Boa, estamos em onda de calor há mais de dez dias. E como ela ainda vai ter mais três ou quatro, não sei se vai ser o máximo de sempre, mas andará perto. E, no Alentejo, os colegas de Évora preveem para a zona do Alentejo a onda de calor mais quente de sempre.

O momento em que a aldeia de Rebolo ficou cercada pelas chamas

Nós temos registos desde quando?
Desde 1850 e qualquer coisa.

Há quem rebata esta questão das temperaturas e diga que não se devem a mudanças no clima, que são ciclos climáticos.
Era bom, o que é que lhe posso dizer… Era bom que fosse assim, dava-nos a maior felicidade e bastava esperar que passasse.

Portanto, não existem ciclos de temperaturas altas?
Não, nada aponta nesse sentido, muito pelo contrário. Os modelos hoje em dia reproduzem a observação desde os anos 70. Era bom que fosse assim. Até aos últimos trabalhos sobre o anticiclone dos Açores, tínhamos um bocadinho de expectativa que as alterações dos aeroportos — que não é só na Madeira, também temos outros aqui no continente — fossem temporários, que fossem ciclos decadais, e que depois voltássemos a uma situação normal. Infelizmente, a análise das últimas décadas aponta no sentido contrário. O sinal já existe na reanálise. Portanto, é um sinal climático, é um sinal de mudança. Era muito bom que não fosse.

Isso significa que podemos ter mais vagas de calor este ano?
Podemos ter mais vagas de calor este ano, que somadas à seca, não vão ser fáceis de gerir. Por isso é que não vale a pena falar por falar — e eu fico às vezes fico um bocadinho abespinhado quando as pessoas dizem ‘ah este fez mal, o outro fez bem” ou “quem devia ter mandado era o A e não o B e as colunas tinham de ter ido para C”; porque isso tudo é conversa de treinador de bancada.

Nós temos uma situação de seca que é estrutural. Por exemplo, o Pedro Matos Soares trabalhou nisso durante vários anos e todos os modelos de previsão do clima apontam para menos menos precipitação e mais temperatura. Portanto, os cenários são completamente claros. Significa mais ondas de calor. E ao ter mais ondas de calor, vamos ter mais situações que vão agredir a vegetação. E, portanto, é evidente que nunca seremos perfeitos, não há sistemas perfeitos. Nós temos que fazer um enorme esforço social para conseguir resistir a isto e isso deve dar-nos o tempo necessário para alterarmos a estrutura. Nós estamos a comprar tempo, os bombeiros estão-nos a comprar tempo — tempo para nós alterarmos a forma como usamos o território.

E vamos outra vez bater na questão de tirar as pessoas da floresta.
Exatamente. E não ter tantas zonas de floresta contínua, não ter propriedades tão pequeninas — não é possível geri-las, têm de ser associadas. Conseguir alternância de situações florestais com não florestais. E, se formos inteligentes — o que não está, na minha opinião, de forma alguma garantido —, que as utilizemos para produzir a madeira que precisamos para a nossa indústria exportadora de papel, porque sem desenvolvimento económico não ambiente que se safe.

Acho que as pessoas hoje em dia compreendem mais o problema, mas criou-se um vício nacional de que tudo se resolve com o dinheiro que vai aparecer não se sabe de onde e que vai financiar não sei bem o quê e que vai permitir manter uma coisa que não se pode manter.

Porque aqui a questão também é de dinheiro, porque é preciso dinheiro para fazer algumas alterações, mas é sobretudo de organização do território.
Devemos aceitar o dinheiro público como investimento. Para a operação não, a operação tem de ser sustentável. E, portanto, se não temos território para fazer aquilo, temos de fazer outra coisa. Mas estamos a mexer com todos os nossos concidadãos, que não são seguramente criminosos e, por isso, as coisas são muito difíceis, porque falta o tal consenso social. E o consenso social é muitas vezes não agradável.

O que é que isso significa?
Já estacionou no passeio? Quem não? Quando começou a haver uma grande pressão sobre não estacionar nos passeios, muitas pessoas ficaram indignadas, porque não tinham onde pôr os carros. Mas depois estabeleceu-se o consenso social e a maioria das pessoas já não estaciona nos passeios — mesmo que o possa fazer.

Pronto, é disso que estamos a falar. Nós precisamos de um consenso social em que as pessoas façam as coisas, não porque sejam obrigadas ou proibidas, mas porque consideram intimamente que não o devem fazer. E esse consenso social é mesmo difícil de ser obtido.

É difícil ou impossível?
Não há impossíveis, mas é difícil. Por isso é que eu diria que uma boa parte da solução tem de passar pelo envolvimento dos cidadãos na gestão científica do planeta. Isto pode parecer pretensioso, mas não é. Até agora sempre baseámos os sistemas numa forma mais ou menos top-down. O governo dá algum dinheiro — aliás, muito pouco, ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera —, nós montamos sistemas de observação e difundimos os dados pelas pessoas. É um sistema de cima para baixo. Mas, na verdade, estes sistemas conseguem medir bem propriedades físicas e químicas mas quando chegamos à parte mais biológica, rural, silvícola, não somos capazes de fazer nada. Não podemos por um sensor a medir o estado de desenvolvimento das plantas. Quer dizer, podemos pôr num sítio, mas não há nenhuma ideia geral, não podemos pôr sensores para saber, por exemplo, as pragas que se estão a desenvolver. A única forma que temos de fazer uma avaliação ecológica da situação é por todas as pessoas a fazer parte do dispositivo de observação.

E pudessem transmitir aquilo que vêm.
Que pudessem transmitir e que soubessem o que observar. E nessa altura, quando todos fossemos cuidadores do planeta, as pessoas iam ganhar uma responsabilidade e iam ter uma perceção diferente do que tinham antes. É o cidadão a ser também cientista e bombeiro. O futuro é esse.

E da parte do Governo, o que pode ser feito? Ou acha que o Governo faz tudo o que pode?
Não, tudo não está. Acho que há muito para fazer, mas há muito para fazer também pelos cidadãos. Pergunto-lhe: a floresta está ou não está limpa, diga-me lá? Certamente vai dizer-me que não. Mas não tem nenhuma avaliação séria, por exemplo, concentrada num sítio qualquer em que pudesse ir ver o que é que uma pessoa de Marco de Canaveses acha sobre a mata de Marco de Canaveses. Nós temos de passar a uma situação em que todos cuidamos de tudo. O país agora tem que ser pequeno para nós. Tem que ser a nossa horta. O nosso campo.

"No essencial a maioria dos incêndios envolveram qualquer pequena coisa. Tanto pode ser um trabalho habitual, como ações que não deviam ser feitas — como a queima de resíduos, que é tipicamente o problema —, ou situações de desleixo, como fazer-se uma fogueira para assar umas costelas de porco. Pode ser qualquer coisa desse género. Mas na verdade todos eles têm no princípio uma situação de fogo gerado pelo homem"
Miguel Miranda, presidente do IPMA

Mas e da parte do Governo, o que falta fazer?
Transformar um bocadinho as entidades que são governadoras em entidades mediadoras — isso é a filosofia. E depois, a nível local, é preciso fazer com que as ONGs e as associações de cariz ambiental, que normalmente têm muito boa vontade, passem a ter uma atitude um pouco mais profissional. As pessoas são muito mais atentas e mais espertas do que eram aqui há uns anos, temos de organizar as coisas de forma mais sistemática. Somos capazes de saber onde está o problema e esperar que uma equipa ou entidade pública tome conta da ocorrência, mas temos de deixar de precisar dos pais para nos resolverem as coisas. Temos de resolver nós próprios e e eu diria que não é a questão de que falta A ou falta B ou que falta C. O que falta é dar o próximo passo. Isto tudo vai ser feito progressivamente e vamos passar por situações complicadas.

Voltando um pouco atrás, as condições desta semana, na comparação com as dos fogos de Pedrogão Grande, foram mais ou menos propícias à ignição de incêndios?
Os incêndios são muito diferentes. Em junho de 2017 tivemos o tal downburst, que foi uma coisa sem paralelo. Foi uma coluna de vento quase vertical que invadiu uma parte do centro do país, desde Pedrógão Grande quase até ao Alto Alentejo, e que deu rajadas fortíssimas de vento que fizeram elevar chamas no ar quase uma dezena de quilómetros. Fez temperaturas de superiores a 1000.ºC.

Há 12 incendiários presos em casa durante período crítico de incêndios

Se calhar, não partindo de uma temperatura tão elevada.
Sim. O incêndio ocorre por uma razão que ainda hoje é discutida — não me quero meter nisso. E depois foi fortemente ampliado pelo downburst, que criou um impacto completamente estratosférico, enorme, numa zona razoavelmente limitada. Agora não temos isso, o que temos é uma situação com risco de ignição muito elevado em  praticamente todo o território do continente, em que qualquer coisa pode dar um pequeno incêndio — uma travagem, uma serra elétrica, um corte de qualquer coisa, uma pequena fogueira para queimar meia dúzia de resíduos, um barbecue descontrolado, tudo pode dar um incêndio, em qualquer sítio.

Ou seja, em vez de termos uma coisa concentrada e intensa, temos uma coisa disseminada. Do ponto de vista das vidas humanas, 2017 foi dramático, foi péssimo, e era ingerível: a partir do momento em que começa um fenómeno como aquele já ninguém o consegue parar; não há aviões de combate a incêndios que resolvam nada daquilo. Agora podemos, apesar de tudo, fazer guerra ao fogo. E a guerra ao fogo pode, pelo menos, reduzir a perda de vidas humanas e a perda de bens. Agora, não vai fazer desaparecer as condições que levam a que o fogo possa ocorrer.

Acha que agora temos mais condições para o combate?
Muito mais, claro. Senão estávamos perdidos com esta seca. Seria um misto de 2005 e 2017.

António Costa disse que é sempre preciso mão humana para deflagrar um incêndio. É mesmo assim?
Mão ou pé. No essencial a maioria dos incêndios envolveram qualquer pequena coisa, agora as coisas podem não ser dolosas. Tanto pode ser um trabalho habitual, como ações que não deviam ser feitas — como a queima de resíduos, que é tipicamente o problema —, ou situações de desleixo, como fazer-se uma fogueira para assar umas costelas de porco. Pode ser qualquer coisa desse género. Mas na verdade todos eles têm no princípio uma situação de fogo gerado pelo homem.

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