No PS mantêm-se o mantra fixado pelo líder logo em novembro de 2014, no dia seguinte a José Sócrates ter sido detido. Política de um lado, justiça do outro, disse António Costa para evitar um caso de alta sensibilidade para o partido. A relação entre ele e Sócrates esfriou totalmente até à inexistência — o ex-líder desvinculou-se mesmo do partido com queixas de “embaraço mútuo” que sentia representar –, e agora não muda nada, pelo menos espera a direção do PS. O partido está atento às movimentações, mas pouco crente que Sócrates volte ao PS.
À hora em que o juiz Ivo Rosa lia em direto nas televisões a instrução da Operação Marquês era difícil falar com um socialista sem que se ouvisse ao fundo, na chamada, a voz do momento a debitar as mais de 6 mil páginas da decisão instrutória. “Ainda a procissão vai no adro”, comentou ao Observador um alto dirigente socialista sobre o que aconteceu esta sexta-feira, em que José Sócrates viu cair grande parte das 31 acusações que tinha sobre si na Operação Marquês, restando apenas três crimes de branqueamento de capitais e outros três de falsificação de documentos. Nada de corrupção, nem mesmo de fraude fiscal. “Mas haverá recursos, o julgamento e mais recursos”, pelo que o caso está longe de estar resolvido e, até lá, mantêm-se o “à justiça o que é da justiça”. “Tudo isto ainda tem de ser digerido e é preciso cuidado com as primeiras reações”, comenta ainda a mesma fonte.
Outro socialista acrescenta que “o PS está marcado pelo SMS de Costa e há uma limitação. Não se fala disso”. A verdade é que o próprio António Costa continua a remeter para as suas declarações de 2014 e foi isso mesmo que fez esta sexta-feira, já depois de conhecido o desfecho da instrução da Operação Marquês. “Sobre esta matéria já disse tudo o que tinha dizer em novembro de 2014 e não tenho mais nada a acrescentar”. Refere-se ao SMS que mandou prontamente aos militantes socialistas na manhã seguinte à detenção e em que admitia que todos estivesse, “chocados com a notícia da detenção de José Sócrates”, embora acrescentasse logo de seguida que “os sentimentos de solidariedade amizade pessoais não devem confundir a ação política do PS. A partir daí, só uma ideia mais sobre o assunto: “À justiça o que é da justiça e à política o que é da política”.
O regresso para “ajuste de contas”
O caso “incomoda o PS, quer se queira quer não”, diz um deputado ao Observador que comenta a “autoridade” que Sócrates ainda mantém no partido, exemplificando mesmo com o que se passou no ano passado em nas eleições para a distrital do PS-Braga e em que uma intervenção sua terá sido fundamental para garantir a vitória de Joaquim Barreto. Tanto assim foi que o líder eleito até agradeceu a Sócrates no discurso de vitória. Ainda assim, este mesmo deputado diz que nesta fase o “espaço de Sócrates no partido é mais sentimental e histórico do que político. Não o estou a ver dentro do PS“.
Ainda assim, há que não esteja não convencido disso. Dois dos socialistas com que o Observador falou admitem que Sócrates queira vir marcar o seu espaço “para fazer um acerto de contas com a vida”, diz um. “Vai ajustar contas”, comenta o outro.
“Sócrates tem o objetivo de pacificar a sua imagem pública e isso não se faz provocando o país“, considera o mesmo deputado explicando que era isso que o ex-líder do PS faria ao avançar novamente na arena política. Outro socialista mais próximo de Sócrates tem dúvidas que o próprio “esteja disponível” para regressar à política, embora também admita que “isto tudo muda de um dia para o outro”.
O que é certo é que nesta sexta-feira, Sócrates deixou essa porta escancarada ao dizer, à porta do tribunal onde tinha ouvido a leitura do juiz Ivo Rosa: “Quanto a essa questão do regresso à política ou à minha participação na política, isso diz respeito a mim e ao diálogo comigo mesmo que eu não quero partilhar convosco”. Sobre a Presidência da República em concreto, Sócrates respondeu: “Eu não quero partilhar isso… As minhas ambições políticas… Farei toda essa reflexão comigo próprio”. Longe de estar aqui um ponto final.
Em 2010, o secretário-geral da “esquerda moderna” que conquistou a primeira maioria absoluta do partido desfiliou-se. Numa carta que tornou pública, Sócrates escreveu que era “chegado o momento de pôr fim a este embaraço mútuo”, referindo-se por várias vezes a declarações que tinham sido feitas nos dias anteriores por dirigentes do partido sobre os processos judiciais que envolviam ex-governantes socialistas — impulsionados na altura pelo caso que envolvia o antigo ministro da Economia Manuel Pinho.
Carlos César, presidente do partido, foi um deles e foi mais longe do que qualquer socialista até ali ao dizer que os socialistas estavam “entristecidos, até enraivecidos com pessoas que se aproveitam dos partidos políticos, e designadamente do PS [para ter] comportamentos desta dimensão e desta natureza”. E quando foi questionado concretamente sobre Sócrates assumiu: “A vergonha até é maior porque era primeiro-ministro”.
Se quiser voltar à política “terá de ser na qualidade de independente”, afirma mais um deputado socialista em conversa com o Observador justificando esta sua interpretação precisamente com o que Sócrates escreveu quando saiu do PS. “O que o levou a desfiliar-se não me parece que tenha saído da frente“. No partido, garante ainda, “das bases à direção nacional, ninguém está a contar que ele regresse. Não é sequer tema de conversa”, garante.
Deputado alerta com impacto de caso na reforma da Justiça
A preocupação maior no PS — pelo menos a verbalizada nesta altura — é com as implicações deste caso para o sistema judicial. “As afirmações do juiz foram chocantes”, comenta um alto dirigente que diz que este “foi um dia triste para a justiça em Portugal”. Na última quinta-feira, numa reunião do grupo parlamentar do PS, na Assembleia da República, dois deputados falaram no que se passaria no dia seguinte, sexta-feira, com a Operação Marquês.
Ascenso Simões foi o primeiro, segundo apurou o Observador junto de deputados que estiveram nessa reunião, ao deixar um “alerta” que a partir deste dia os temas da reforma da justiça e da corrupção, relacionados com a Operação Marquês, e o partido deve estar preparado para isso. Jorge Lacão também falou do mesmo assunto, numa altura em que o Parlamento se prepara para debater a nova estratégia de combate à corrupção que o Governo propõe e que traz implicações sobre a forma como se processam as grandes investigações judiciais.
Além disso, há outros temas de insistência à esquerda e de resistência socialista, como a criação do crime de enriquecimento ilícito, que agora “vão estar novamente em cima da mesa”, comenta um deputado do PS ao Observador. Pouco depois desta conversa, já a líder do Bloco de Esquerda escrevia no Twitter a urgência de avançar com esta alteração concreta.
Além disso, levanta questões de legislação, em particular quanto aos prazos de prescrição de crimes de corrupção. Ao validar indícios de recebimentos indevidos e de branqueamento, demonstra a urgência da criminalização do enriquecimento injustificado.
— Catarina Martins (@catarina_mart) April 9, 2021
Seis anos depois da prisão que chocou o PS, o caso continua a ser bicudo, como se vê pela dificuldade de tanto socialistas em falar de forma identificada sobre o assunto — sem contar com tantos que nem sequer em off aceitam falar sobre o tema. O Chega falou sobre o assunto, o Bloco de Esquerda também, o PSD marcou uma reunião da comissão permanente do partido para analisar a decisão instrutória da Operação Marquês. Mas o partido que Sócrates liderou durante quase sete anos ficou em silêncio e António Costa falou de fugida apanhado pelos jornalistas à saída do velório de Jorge Coelho, na Basílica da Estrela em Lisboa.
O atual líder do PS disse bem menos do que tinha dito, no último dia do ano de 2014 à porta do Estabelecimento Prisional de Évora, onde o ex-líder estava preso, quando afirmou que a “personalidade dele [Sócrates] é conhecida de todos. Vai certamente lutar pelo que acredita ser a sua verdade”. A “sua verdade” foi uma expressão que ficou a ecoar nos ouvidos de muitos e a sua barreira higiénica neste caso foi sempre vista como pouco leal pelo “animal feroz” José Sócrates. E terá de continuar a lidar com esta sombra, bem mais presente agora do que nestes seis anos de liderança de Costa e de caso Sócrates, dois momentos que nasceram no mesmo dia.