A polémica à volta da escolha — entretanto chumbada — do último juiz para o Tribunal Constitucional veio reacender a discussão sobre a eleição à porta fechada de parte desses juízes e até a possibilidade de uma revisão constitucional para a alterar. No entanto, e apesar de o PS ter admitido que uma alteração ao método de escolha “recolhe simpatia” junto dos deputados socialistas, o PSD vem agora fechar, de forma taxativa, essa porta e lembrar o equilíbrio “delicado”, também politicamente, que o modelo visa garantir.
“O PSD não tem previsto apresentar ou apoiar qualquer alteração ao método de escolha dos juízes do Tribunal Constitucional, que, aliás, exigiria uma revisão constitucional”, avisa, em declarações ao Observador, o líder parlamentar do PSD, Paulo Mota Pinto.
O aviso sobre não “apoiar” propostas do género, mesmo que venham de outros partidos, é a chave: para uma mudança de fundo sobre o sistema de cooptação (que indica que parte dos magistrados são escolhidos pelos próprios pares) de alguns juízes do Tribunal Constitucional seria necessário, entendem tanto PS como PSD, uma revisão constitucional.
Ora, as mudanças à Constituição só podem ser feitas por uma maioria qualificada, ou seja, de dois terços dos deputados — o que implicaria sempre que PS e PSD se pusessem de acordo para iniciar o processo.
E os sociais-democratas não podiam estar mais em desacordo. Questionado pelo Observador tanto sobre o método da cooptação em si como sobre o processo de escrutínio dos juízes — dado que há socialistas que defendem que sejam, pelo menos, tão escrutinados como são os colegas que são indicados pelos partidos — Mota Pinto é claro.
“O PSD considera que não faz sentido alterar esse sistema, resultante de um delicado equilíbrio e que serviu durante quatro décadas, por causa do caso concreto da última tentativa de cooptação, que, aliás, corretamente analisada em todas as suas dimensões, não justifica essa alteração”.
Juízes cooptados em segredo para assegurar equilíbrio
O elenco do Tribunal Constitucional é composto, como estabelece o artigo 222º da Constituição, por treze juízes. Dez destes são eleitos pela Assembleia da República, por dois terços dos deputados que estejam presentes. Os outros três são então os cooptados pelos juízes já eleitos, também por maioria qualificada.
Foi essa eleição que o último indicado pelos seus pares, neste caso pela ala direita do Tribunal Constitucional, falhou: António Almeida Costa, atual membro do Conselho Superior do Ministério Público, conseguiu apenas seis votos favoráveis, sendo que precisava de sete para ter a maioria de dois terços que lhe garantiria a eleição (isto porque só os dez indicados pelo Parlamento têm direito a votar).
Quer isto dizer que o acordo tácito entre as duas alas do tribunal, que prevê que um juiz mais associado a uma das alas seja sempre substituído por um magistrado com perfil semelhante, falhou. E que previsivelmente só um dos juízes da ala esquerda terá concordado em assegurar a escolha de Almeida Costa — o que fez com que os juízes da ala direita decidissem bloquear as próximas cooptações até 2023, para as fazer coincidir também com a mudança do presidente do TC, João Caupers, e promover um consenso alargado que inclua a presidência.
Tudo porque nas semanas anteriores à eleição, o Diário de Notícias revelou que um polémico artigo escrito em 1984 por Almeida Costa, na revista da Ordem dos Advogados, no qual defendia a sua posição anti-aborto argumentando que mesmo em caso de violação tal não se justificaria, porque “os casos de gravidez proveniente de violação (são muito raros)”. Nesse caso, garantia, graças ao trauma do acontecimento o “ciclo menstrual da mulher” é interrompido, “impedindo ou interrompendo a evolução”.
E baseava a sua opinião num texto do norte-americano Fred Emil Mecklenburg, que, segundo o DN, “confessadamente atribui a ‘descoberta’, nas notas do seu artigo, a alegadas experiências efetuadas em campos nazis”. Almeida Costa argumentava também que “fatores ligados ao próprio violador”, como uma suposta prevalência de esterilidade, “diminuem ainda mais a possibilidade de [a gravidez] se vir efetivamente a verificar”.
O facto de estas posições terem sido conhecidas é, no entanto, novidade: o modelo de cooptação é secreto e conduzido à porta fechada, sendo que normalmente só se conhece o nome do escolhido quando já foi eleito pelos novos colegas do TC. Desta vez, a fuga de informação terá tido origem na vontade de alguém querer precisamente furar essa prática e expor antes as opiniões mais controversas do juiz.
É por causa disto que algumas vozes têm defendido o fim do sistema de cooptação e o maior escrutínio destes juízes, como acontece pelos que são eleitos pela Assembleia da República. Estes são sujeitos a uma audição pública pela primeira comissão do Parlamento.
Mesmo assim, esta audição é mais protocolar do que acontece, por exemplo, com o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, onde acontece uma espécie de interrogatório, muito mediático, com amplo escrutínio das posições e opiniões dos juízes. Em Portugal, os juízes falam sobre a sua formação e experiência e prometem não decidir com base em opiniões pessoais, sobre as quais raramente respondem.
Socialistas defenderam mudanças
Ao Expresso, a deputada ex-ministra Alexandra Leitão defendeu há semanas que é “preciso olhar” para a eleição dos juízes e que se devia avançar para a alteração da Constituição, de forma a “ter só juízes eleitos e acabar com a cooptação”. “Além de que devem ser todos sujeitos à audição no Parlamento e que devem ser separadas e não em lista”.
Na semana passada, a deputada especificava a sua opinião sobre o modelo a seguir na Vichyssoise, programa da rádio Observador: “Sei que o modelo é diferente, mas se agora tivermos juízes no Supremo Tribunal americano que disseram que iam respeitar o precedente [sobre a legalização do aborto], a ser verdade o que veio a lume que se preparam para revogar esse precedente… Aí temos uma situação de escrutínio direto que não é possível num caso de cooptação, nem de eleição por lista”.
Também ao Expresso, a socialista Isabel Moreira criticava: “O que impede o TC de ter uma postura mais transparente? Mais à frente temos de repensar a forma como os juízes do TC, dado o seu carácter específico, são escolhidos.” E Pedro Delgado Alves dizia ao Público ser favorável a uma “regulamentação interna” do próprio TC que tentasse resolver o problema, garantindo que a parte da “legitimidade” do setor da Justiça que é suposto a cooptação trazer, impedindo que o processo seja apenas político e partidarizado.
Na semana passada, o líder parlamentar socialista, Eurico Brilhante Dias, veio admitir que a alteração do modelo de eleição dos juízes “recolhe simpatia” junto dos deputados, embora não esteja a ser neste momento preparada nenhuma iniciativa nesse sentido. “Não significa que, no futuro próximo, com a reflexão que temos de fazer, não o possamos fazer”, afirmou à saída de uma reunião do grupo parlamentar do PS.
Para o líder parlamentar, o assunto — que poderia passar pela mudança do sistema de cooptação ou pelo menos por um maior escrutínio dos juízes — mereceria debate e “um tempo de amadurecimento da posição política”. “Por isso, muitas vezes, mais do que corridas de cem metros, temos que olhar para os temas coletivamente, e ter a maior convergência possível dentro de um conjunto alargado”.
No entanto, mesmo que esse amadurecimento aconteça, até ver, não tem possibilidade de avançar — pelo menos, se envolver mudanças na Constituição: não contem com o PSD.