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Quando o Brasil foi filmado por bandidos: o Cinema Marginal faz 50 anos

O Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira marca os 50 anos de “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla. Falámos com a atriz Helena Ignez e o autor João Silvério Trevisan.

Deboche não é apenas uma palavra, é um estado de espírito tipicamente brasileiro. É no completo deboche, escárnio dos trópicos, que o delegado Cabeção resmunga para um quadro: “Arte moderna, coisa de depravado, lixo!”, crítica. “Por mim, eu mandava juntar tudo isso e botar fogo, admito tudo menos essa laia de parasitas intelectuais.” A cena do incendiário “O Bandido da Luz Vermelha” é sintomática do deboche deste Cinema Marginal, a depravação e o lixo que esta laia intelectual revela entre 1968 e 1973. Um país corrupto, ditatorial e violento, que narra em tela a vida dos anti-heróis, bandidos, travestis e prostitutas, personagens que “não pertencem ao mundo mas ao terceiro mundo”, como explica um dos letreiros no filme de Rogério Sganzerla. E o terceiro mundo não é deboche, era o Brasil da época.

“O Bandido da Luz Vermelha”, filme de 68 que marca o arranque do movimento fulminante e sem manifesto que foi o Cinema Marginal, vai ter os 50 anos assinalados pelo Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria Feira, entre 8 e 15 de Abril, que homenageia o realizador Sganzerla. A história do criminoso existencial, que admite o gosto pela mortadela como único calcanhar de aquiles, é o sexto melhor filme brasileiro segundo a Associação Brasileira de Críticos de Cinema, lista onde 10% dos filmes são marginais, prova da força destes realizadores independentes que decidiram reescrever de forma violenta uma nova narrativa cinematográfica.

“Esse filme genial foi feito com total consciência de Rogério Sganzerla da obra que estava fazendo”, explica ao Observador Helena Ignez (mulher do realizador que morreu em 2004), a prostituta Janete Jane em “O Bandido da Luz Vermelha” e principal rosto do Cinema Marginal. “É impossível falar-se de um filme do Rogério no plural, tipo ‘vocês’. Ele é absolutamente o autor dos filmes que realiza.” “Um génio ou uma besta”, lê-se no letreiro giratório que inaugura o filme, constantemente auto-referindo-se, como se o bandido sedento de sexo e violência fosse o próprio cinema de Sganzerla.

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Bom, mau, genial, besta ou a velha dicotomia do regime militar brasileiro: “Ame-o ou deixe-o”. “Antes de 68 já vivia uma época frenética, quando fazia cinema, teatro e televisão, além de viagens ao exterior participando de festivais de cinema”, contextualiza Helena. “A ditadura militar pra mim também significou a ruptura em uma carreira de uma jovem atriz que estava se desenvolvendo no mainstreaming.” Perdeu-se uma Juliana Paes e ganhou-se um ícone da vanguarda brasileira.

Paulo Villaça é o assaltante que saltita de casa em casa, desespera a polícia e ganha o cognome de Luz Vermelha, inspirando até uma recente canção de Elza Soares:

Porém, o verdadeiro bandido é um atarracado populista com a máxima “um país sem miséria, é um país sem folclore”, político patriarca, que defende a sua presença como, “um homem místico, pra dar uma luz e esperança pra esse povo”. No fim, entre lixeiras e sangue, o mundo se despede com samba, discos voadores e Jimi Hendrix, um piscar de olho aos tropicalistas, que inauguram o movimento do canibalismo cultural no ano anterior. “Estava montando a trilha sonora de um documentário sobre o cinema paulista, no antigo estúdio da Odil Fono Brasil”, recorda-nos o escritor João Silvério Trevisan, na altura um jovem cineasta. “Quando entrou o Sganzerla, pedindo um som de metralhadora que estávamos usando, ele montava o ‘Bandido’ na sala ao lado.”

A realização de guerrilha, de câmara na mão contra o mundo, é inspiração direta no Cinema Novo de Glauber Rocha — veja-se o visionário “Terra em Transe”– mas também na Nouvelle Vague, e sobretudo num filme, “A Margem”, de Ozualdo Candeias, o precursor dos marginais. Outro precursor, no lado oculto da terra, repleto de sombras, sexo e violência, foi a figura sinistra de capa negra, chapéu alto, imponente monocelha e enormes unhas:

“O Zé do Caixão é um personagem inspirador para o movimento, mas José Mojica Marins é de outra geração, começou dez anos antes”, explica-nos Fernão Ramos, autor do livro Cinema Marginal — A Representação Em Seu Limite, professor de cinema no Instituto de Artes da UNICAMP. “É figura de referência pelo deboche, pela representação de extremos, pela proximidade sem peias com o horror”. O cinema diabólico de José Mojica Marins, com quem Ozualdo Candeias colabora, encaixa-se no bolo da geração marginal, com destaque para as fábulas grotescas de “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” e os fetiches alimentados a LSD de “O Ritual dos Sádicos”, onde o próprio realizador sentencia que “fazer cinema no Brasil é a mesma coisa que fazer um foguete e mandar para a lua”.

“Éramos uma geração sem lugar, espremida entre a ditadura militar e a ditadura do Cinema Novo”, diz-nos João Silvério Trevisan, acrescentando que, “foi um estranhamento que, na maioria dos casos, culminou numa ruptura com a ordem e a desordem estabelecidas.”

“Conheci Rogério como, ‘crítico de cinema muito jovem e genial’, quando fez a crítica de ‘O Padre e a Moça’, de Joaquim Pedro de Andrade”, lembra Helena Ignez, atriz principal desse filme fundamental do Cinema Novo, em 65, quando ainda era casada com Glauber Rocha, o futuro arqui-inimigo de Sganzerla. “Com a apresentação desta crítica, ele me fez um convite para dali a seis meses fazer ‘O Bandido’, o seu primeiro longa-metragem”.

Finalmente aparecia um corpo para encarnar a visão de Sganzerla, o mesmo que já tinha sido adotado como propriedade do Cinema Novo, apoiado pelo estado e glorificado em Cannes. “Esta é uma geração que rompe com o Cinema Novo e agudiza propostas narrativas radicais de fragmentação narrativa e representação de estados extremos”, pondera Fernão. “O clima reflete o ambiente político radical da ditadura militar”. Na sombra do Ato Institucional Número 5, que no final de 68 incute novas medidas de repressão, o Cinema Marginal nada na maré contrária. “Éramos uma geração sem lugar, espremida entre a ditadura militar e a ditadura do Cinema Novo”, diz-nos João Silvério Trevisan, acrescentando que “foi um estranhamento que, na maioria dos casos, culminou numa ruptura com a ordem e a desordem estabelecidas.”

Em 1970, durante quatro meses frenéticos, uma única produtora lança sete filmes, todos com Helena Ignez, realizados por Sganzerla, ou pelo colega de armas, Júlio Bressane. A Belair, produtora independente que opera na Boca de Lixo em São Paulo, onde mais tarde surgiriam as pornochachadas, aposta na quantidade para fitar a censura. “A produtora Belair surgiu da necessidade de nos reunirmos para poder fazer cinema em plena ditadura”, conta a atriz. “O dia-a-dia era filmar, pré-produzir e produzir intensamente, não fazíamos outras coisas, exercíamos a contracultura, a produtora foi criada em um período brasileiro chamado de ‘desbunde’, uma reação e desobediência civil à ditadura.”

Assim como Sganzerla, Bressane é cria do Cinema Novo, abandona definitivamente os progenitores com “O Anjo Nasceu” e “Matou a Família e foi ao Cinema”, este último onde o filho se farta de ouvir os pais a reclamar de guaraná quente e mata os dois à navalhada. “Esses dois longas são de 69, e significam o abandono radical por Bressane do Cinema Novo, o início de sua abertura definitiva para a estética marginal”, acrescenta Fernão.

Apesar de Janete Jane em “O Bandido da Luz Vermelha”, a prostituta mais marcante que Helena protagonizou foi a Sónia Silky, a “fera oxigenada” de “Copacabana Mon Amour”, que ao som de Gilberto Gil percorre o Calçadão de Copacabana a cuspir cerveja na miserabilidade de quem não consegue se desprender da fome destruidora. “O personagem não nasceu nem um pouco de forma instintiva, nasceu de um roteiro escrito e muito falado”, diz, realçando que “instintiva foi a força realizada, diria uma interpretação energética, dionisíaca”.

Em “Sem Essa, Aranha”, outro da Belair, com a participação luxuosa de Luiz Gonzaga, uma cena traduz na perfeição a mensagem derradeira que este cinema queria passar: um sambista ao lado de um burguês charlatão, uma mulher desesperada de fome e uma mansão com vista esplêndida, rodeada de pobreza. No fim, sempre o mesmo fim, a violência e morte do elemento repressor. “A violência dos filmes é porque tínhamos chegado a um ponto crucial de perda dos direitos humanos”, garante Helena.

Neste período ainda gravam “A Mulher de Todos”, o que pode ser considerado o primeiro retrato cinematográfico feminista no Brasil. “Uma protagonista feminina com a liberdade dos homens”, sublinha a atriz, “que diz, ‘Sou Ângela Carne Osso, a ultra poderosa inimiga número um dos homens’, na verdade inimiga do machismo, uma personagem queer como hoje é definida”.

Helena é o rosto, corpo e movimento do cinema fulminante, incendiário, em completa mutação de semana em semana. “A minha forma de atuação surgiu de uma obsessão, muito estudo, esforço e pesquisa incessante da performance desde o início do meu trabalho”, reflete. “As pessoas reagiram a esta interpretação com surpresa, ficaram atónitas”. “Helena Ignez é a alma do Cinema Marginal, sua matriarca”, defende Fernão. “Seu estilo de interpretação reproduz a essência do movimento, sem sua figura representando o deboche, sem sua atuação, não existiria Cinema Marginal.”

“Cinema barato de câmara na mão e ideia na cabeça” é como Glauber Rocha ironiza os marginais, apelidando os miúdos de Udigrundi, versão tupiniquim de underground nova-iorquino. Se o Cinema Novo procurava agarrar o país através de complexas metáforas, o Marginal queria expor a nudez, histerismo, o lixo da urbe, o candomblé e sangue, fazer desfilar o grande carnaval que é viver no Brasil. Sganzerla responde à letra: “Atualmente ele (Cinema Novo) é sim movimento de elite, um movimento conservador, de direita”.

“Conservador” e “de direita” seriam os piores insultos imagináveis para o movimento com pretensões de revolução social, que começa em 59 na Bahia, numa curta-metragem com uma nossa conhecida. “O ‘Pátio’ foi o primeiro filme de Glauber Rocha e meu primeiro trabalho como atriz”, conta Helena, que viveu intensamente os dois movimentos e os dois realizadores-chave. “As reações do Cinema Novo com ‘O Bandido’ foram mesquinhas. Havia uma desproporção imensa no que o filme representava de inovação e ruptura com a reação crítica que vinha desse grupo, sem falar nos problemas emocionais causados entre Glauber e Rogério por uma reação afetiva que tinha com ambos.” “Nós, mesmo sendo de esquerda, ríamos muito das pretensões revolucionárias daqueles rapazes de classe média que faziam filmes ‘bacanas’ no Rio de Janeiro”, ironiza João, lembrando no entanto que, “o grande paradoxo era amarmos o pai Glauber Rocha e desejarmos devorá-lo”.

João Silvério Trevisan, hoje um reconhecido escritor e símbolo LGBT, foi em tempos um jovem realizador, que engendrou em “Orgia ou o homem que deu cria” uma odisseia marginal com anjos negros, reis africanos e um homem grávido.

“Eu partia de um viés bastante transgressivo, que nem a direita nem a esquerda conseguiam engolir. Pense-se numa travesti negra imitando Carmen Miranda, com um penico na cabeça cheio de frutas de plástico.” Sem o suporte de uma produtora como a Belair, o financiamento e divulgação era o bicho de sete cabeças para os jovens cineastas transgressores. “É a parte que não gosto de lembrar”, conta. “Fiz empréstimo bancário mínimo para a compra dos negativos. Atores e atrizes trabalharam quase de graça, comendo pão com mortadela no almoço e lanche.”

Entre alguma ou nenhuma exibição, ficam para a história obras indispensáveis de cinema brasileiro, como “Meu Nome é Tonho” de Ozualdo Candeias, “Bang Bang” de Andrea Tonacci, “Os Monstros de Babaloo” de Elyseu Visconti, “Meteorango Kid, Herói Intergalático” de André Luiz Oliveira ou “Hitler IIIº Mundo” de José Agripino de Paula. O mais político da turma, “Manhã Cinzenta”, teve os negativos confiscados e próprio realizador, Olney São Paulo, torturado na prisão. Era o fim de uma época. “Houve uma ameaça concreta de sermos presos, embargarem os negativos”, conta Helena. “O horror já estava instalado bem perto, seria impossível continuar fazendo filmes no Brasil nesse período. Houve um exílio forçado por essas circunstâncias que impossibilitam de continuar o trabalho.”

“Durante 1970, boa parte de seus integrantes teve de fugir do Brasil”, justifica Fernão sobre os últimos anos do Cinema Marginal. “Há uma produção consistente no exílio, embora dispersa e em seu retorno seguiram carreiras individuais, muitas vezes mantendo os traços estilísticos, mas o movimento como um todo havia desaparecido”
Fernão Ramos, autor do livro "Cinema Marginal - A Representação Em Seu Limite"

Assim como Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros, Sganzerla e Júlio Bressane exilam-se, incapazes de continuar a produzir cinema livremente. “A resposta foi fulminante, a censura considerou ‘Orgia’ obsceno e se recusou a emitir o certificado de exibição, o que me impediu de lançar o filme”, conta João sobre o curto período de realizador. “Fui ameaçado de morte pelo avalista do empréstimo bancário, minha carreira no cinema acabou ali. Passei a viver em semi-reclusão, foram quase três anos insuportáveis, até eu até ir embora do país em 73”. O filme de João seria outro e em Pai pai, livro do ano passado, o escritor relembraria este período, onde mesmo dentro dos marginais estava ainda mais à margem, ou como nos esclarece, “os produtores habitavam um imaginário machista para mim quase insuportável”.

Durante 1970, boa parte de seus integrantes teve de fugir do Brasil”, justifica Fernão sobre os últimos anos do Cinema Marginal. “Há uma produção consistente no exílio, embora dispersa e em seu retorno seguiram carreiras individuais, muitas vezes mantendo os traços estilísticos, mas o movimento como um todo havia desaparecido”. A herança é palpável, na forma de fazer cinema de vanguarda, na disposição da plateia em ser enfrentada e nos monumentos à cultura popular que ficaram eternizados, como as unhas do Zé do Caixão e todas as mulheres de Helena Ignez. “Marginal é um apelido apenas, o que existe no cinema que eu fiz é intuição, liberdade, reinvenção, e assim continua até hoje”, remata a atriz. Sempre mais mordaz, o marginal dos marginais, João Silvério Trevisan, finaliza como começámos, no deboche, que, como todos os métodos de subversão irónica, tem um fundo amargo de verdade. “Os filmes estão aí, para quem quiser ver como sempre foi doloroso ser brasileiro.”

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