Os Óscares costumavam ter uma coisa em comum com os filmes que celebravam: emoções. Em 2019, 91 festas de anos depois, isso parece perigosamente perto de se esgotar. Talvez seja por agora vivermos permanentemente em palco, num púlpito, a discursar, a tomar posições, sempre a celebrar e a combater, à vez e por turnos. Eventualmente, esgotámos a capacidade de deslumbre daqueles que eram, outrora, os grandes momentos mediáticos. E precisemos de lhes reinventar o lugar.
Já não vamos falar sobre o cinema está hoje espartilhado entre as pequenas aventuras independentes e as super-produções. Temos a guerra entre a sala de cinema e o streaming e, portanto, entre os antigos e os novos modelos de distribuição. Temos um tempo de moralismos, puritanismos e muito medo de ofender quem quer que seja. E temos ainda um movimento, que já vem muito de trás, e que avança, irremediavelmente, na direcção de confundir o fácil com o bom.
Há muito tempo que os Óscares parecem pedir desculpa por existirem. Todos os anos se esforçam por serem mais curtos, menos maçadores, mais “agradáveis”. Então, porquê continuar? Assistir à cerimónia tornou-se uma espécie de prova de resistência – algo que se faz com orgulho, é certo, mas com o mesmo sentimento com que alguém corre mais um quilómetro, bebe mais um copo, levanta mais um quilo.
Este ano, e pela primeira vez nos últimos 30, não houve apresentador, porque Kevin Hart, o homem que o deveria ter feito, lá foi devidamente investigado pelas polícias de costumes e condenado à fogueira por umas piadas alegadamente homofóbicas feitas no Mesozoico. Quis-se eliminar categorias, entre as quais sectores tão fundamentais ao cinema como a fotografia e a montagem, pela simples missão de não aborrecer as audiências (quando o Presidente da Academia, John Bailey, é ele próprio director de fotografia. E até um prémio para Melhor Filme Popular (o que quer que isso fosse e como quer que se fosse apurar) se lançou para a mesa, antes de recuar com pavor de ser consumido nas reacções da multidão.
Na noite de Alfonso Cuarón e da Netflix, o último a rir foi “Green Book”
A 91ª Cerimónia de Entrega dos Óscares foi um pouco pior do que a 90ª, que já tinha sido um pouco pior do que a 89ª: um desfile cada vez mais mecânico de vestidos e banalidades, palavras de ordem sem sentimento e um recurso insólito aos papéis com os agradecimentos pré-escritos. Hoje, os Óscares têm mais papéis do que lágrimas – e isso é grave. Os únicos focos de excitação vêm cada vez mais dos vencedores estrangeiros, felizes por serem reconhecidos pela grande máquina, pelas suas curtas-metragens, documentários ou trabalhos de grande especialidade técnica.
Mas o pior de tudo é o medo de fazer uma piada. Fez-se meia dúzia de piadas nos Óscares de 2019. Se tanto. Nem uma memorável. E isso, meus caros, não tem piada. Nenhuma.
A noite, minuto e minuto, vista do sofá:
01h00: Os Queen, ou o que sobra deles, abrem a cerimónia. Ao longo dos anos, sempre que algo de semelhante acontece, alguém tem de ir fazer aquele papel de cantar bem, mas lembrar-nos que não é Freddy Mercury. Desta vez, foi Adam Lambert. Dois temas óbvios – “We Will Rock You”, “We Are the Champions” – e a bola estava a rolar.
01h04: Um dos raríssimos clips que veremos a noite inteira recorda os filmes do ano. Entre eles, está um pedacinho de Clint Eastwood, em “The Mule” / “Correio de Droga”, cumprindo o louvável serviço público de nos lembrar que, frequentemente, os melhores filmes do ano não estão sequer na corrida aos Óscares.
01h06: Tina Fey, Maya Rudolph e Amy Pohler vêm entregar a primeira estatueta e fazer-nos a todos pensar que teriam dado óptimas apresentadoras de toda a cerimónia. Regina King é a melhor Actriz Secundária por “Se Esta Rua Falasse” e agradece a Deus, à mãe e a James Baldwin, não necessariamente por esta ordem. É o primeiro Óscar da noite e “A Favorita” já perdeu dois (Emma Stone e Rachel Weisz, ambas nomeadas para a categoria).
01h14: Jason Momoa e Helen Mirren, um par improvável que poderia ter saído dum filme como “A Forma da Água”, entregam o Óscar de Melhor Documentário a “Free Solo”, de Elizabeth Chai Vasarhelyi, Jimmy Chin, Evan Hayes e Shannon Dill. O filme estreia esta semana na National Geographic e tem dois portugueses na equipa de som: Joana Niza Braga e Nuno Bento. Hurray!!
01h25: Greg Cannom, Kate Biscoe e Patricia DeHaney levam o Óscar para Melhor Caracterização pelo trabalho em “Vice”. Christian Bale bem pode transformar-se numa baleia, num ouriço-cacheiro, no que ele quiser, que não leva Óscares de melhora actor principal. Este será o único prémio que “Vice” verá ao longo da noite, ainda que seja o terceiro discurso em três chato, frouxo e lido.
01h28: Melissa McCarthy e Brian Tyree Henry vêm anunciar o Óscar de Melhor Guarda-roupa para “Black Panther”. Ruth Carter tem uma palavra para Spike Lee, que a lançou, outra para a mãe de 97 anos e outras para os negros e as mulheres. Mas como, para falar destas coisas, tem de trazer outra vez tudo apontado num papel, não há emoção que se lhe pegue.
01h38: Jennifer Lopez anuncia o Óscar de Melhor Direcção Artística para “Black Panther”. É o segundo para o filme de Ryan Coogler, mas J-Lo, à beira de completar 50 anos e metida num vestido por onde os antigos se poderiam guiar, era a verdadeira obra de direcção de arte. Hannah Beachler vem receber, tem de pôr os óculos, tem de procurar o discurso no telemóvel – sim, no telemóvel – e tem de o ler. Adeus, espontaneidade. Adeus, olhar. Adeus, qualquer hipótese de comoção.
01h43: Óscar de Melhor Fotografia (um dos tais que esteve para sair da cerimónia) para Alfonso Cuarón. É o primeiro para “Roma” e também o primeiro discurso razoável e sem papel. Só por isso Cuarón devia ter levado o Óscar para Primeira Pessoa com Melhor Memória que um Peixinho Dourado.
01h53: Serena Williams vem apresentar “A Star is Born” e falar de sonhos. Nós ficamos muito quietinhos à espera do momento em que ela se vai passar e desatar a chamar nomes ao árbitro Carlos Ramos.
Até às 02h00: “Bohemian Rapsody” limpa os dois Óscares para o som – montagem e mistura – e manda-nos para intervalo a pensar se algum dia entenderemos verdadeiramente a diferença entre os dois conceitos.
02h04: Javier Bardem faz um pequeno discurso em espanhol para dizer que não há muros nem fronteiras que travem o talento. As palavras estão certas, mas, por qualquer razão, todos estes discursos continuam tão emocionantes como a portagem automática que nos deseja boa viagem. “Roma” ganha o Óscar para Melhor Filme em Língua Estrangeira, que é como quem diz, não vai ganhar o de Melhor Filme em geral. De fora, fica por exemplo “Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões”, de Hirokazu Kore-Eda, que não era o melhor-filme-em-língua-estrangeira; era o melhor-filme-ponto.
02h17: Óscar de Melhor Montagem para “Bohemian Rapsody”. Começamos a pensar que o vencedor da noite vai ser um filme sem realizador (Bryan Singer foi afastado do final da rodagem).
02h20: Daniel Craig e Charlize Theron anunciam o Óscar de Melhor Actor Secundário para Mahershala Ali. É o primeiro para “Green Book” e o segundo para Mahershala, que ainda há dois anos vencera a categoria por “Moonlight”. Os adversários – Adam Driver, Sam Rockwell, Sam Elliott e Richard E. Grant – parecem festejar, verdadeira e desportivamente, a decisão.
02h29: Michelle Yeoh, Pharrell Williams e os calções de Pharrell Williams, vêm entregar o Óscar de Melhor Filme de Animação a “Homem-Aranha: No Universo Aranha”, de Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman.
02h33: A Academia está sempre preocupada com o que cortar para abreviar a cerimónia. Corta os discursos, corta os clips, corta nas categorias. Mas naquele momento em que temos de levar com a nossa dose anual de country ninguém toca. Este ano, a injecção cabe a Gillian Welch, David Rawlings e ao seu “When A Cowboy Trades His Spurs For Wings”, de “A balada de Buster Scruggs”, dos irmãos Coen.
02h40: A propósito de “Bohemian Rapsody”, recorda-se “Wayne’s World 2” (também conhecido por cá como: “Quanto Mais Idiota Melhor 2”. Percebemos, de repente, que já foi em 1993. 1993, malta. Estamos a caminho do lar. A alta velocidade.
02h42: “Bao”, de Domee Shi e Becky Neiman-Cobb, e da Disney / Pixar, é a Melhor Curta de Animação. Sem papel, agradecem e dizem-nos para não termos medo de contarmos ao mundo as nossas histórias.
02h46: A Melhor Curta Documental é “Period. End of Sentence”, de Rayka Zehtabchi e Melissa Berton. O discurso, empolgado com o facto de uma curta-metragem sobre menstruação ganhar os Óscares, é dos poucos de que nos lembraremos amanhã. Até porque o seu breve agradecimento à Netflix (onde se encontra disponível) foi a única referência àquele que se anunciava como provável grande vencedor do serão.
02h56: “O Primeiro Homem na Lua” ganha o Óscar para Melhor Efeitos Visuais. Ou: a extraordinária história de mais uns tipos que não conseguem memorizar umas palavras de agradecimento e, portanto, têm de as ler fazem um filme sobre uma malta que conseguiu chegar à Lua.
03h00: Momento mais bonito da cerimónia, do domingo, da semana: Lady Gaga e Bradley Cooper a cantarem “Shallow”, de “A Star is Born”. Saem directamente da plateia para o palco e actuam de forma honesta, com as suas pequenas imperfeições e muitas perfeições, perante o Dolby Theatre e a galáxia (o vídeo há-de estar a ser viralizado à velocidade da luz). Fundamentalmente, é como se o filme só terminasse agora, nesta ténue fronteira entre ficção e realidade – e Irina Shayk. É verdade que também mereciam o Óscar de Melhor Maquilhagem e Melhor Solário. Mas, se uma canção de um filme é alguma coisa, é isto.
03h07: Neste lugar de inesperada nobreza para onde se atirou a Melhor Curta-metragem, “Skin” leva o Óscar, com Guy Nattiv e Jaime Ray Newman em excitação total.
Até às 03h15: Samuel L. Jackson e Brie Larson entregam os Óscares para os Melhores Argumentos: Original para “Green Book” (numa categoria onde havia “Roma”, “A Favorita” ou “No Coração da Escuridão”, o que faz pensar se a Academia saberá, realmente, o que é um argumento) e Adaptado para “BlacKkKlansman”. Está longe de ser o momento mais brilhante da carreira de Spike Lee, mas rende-lhe o primeiro Óscar e, como tal, a justa homenagem a uma carreira relevantíssima. Até Spike, porém, precisa de levar papel para o discurso. Com a sala de pé, recorda as dificuldades por que passou a família, os ancestrais que fizeram a América, os escravos e pede que, nas eleições de 2020, se faça a coisa certa, se esteja do lado certo. Amor contra o ódio. Porquê o papel, Spike? Precisavas de papel para dizer isso? Ainda assim, o segundo melhor momento da noite.
03h21: “Black Panther” vence a Melhor Banda Sonora, acumula o terceiro Óscar e consagra-se como um dos vencedores de 2019. Apesar de já ter estreado antes sequer da edição de 2018 (15 de Fevereiro entre nós).
03h25: Óscar de Melhor Canção para “Shallow”, de Lady Gaga, extraído de “A Star is Born”. Era o que mais faltava que não fosse. Que fosse para o pessoal do country. A vitória é celebrada como se a estatueta não reconhecesse apenas a canção, mas todo o projecto. E é justo que assim seja. O discurso de Gaga, acerca de não importar sobre quantas vezes se cai, mas quantas se levanta, é convincente, não sendo brilhante. Mas falta Bradley Cooper ao lado, não falta?
03h29: Uma coisa bem resolvida pela Academia: junta o habitual momento em que o Presidente tem de ir ao palco com o “In Memoriam” em que se recordam os mortos do ano – faz sentido. Gustavo Dudamel dirige a Orquestra Filarmónica de Los Angeles, enquanto assistimos a um desfile de retratos que inclui: Bernardo Bertolucci, Burt Reynolds, Milos Forman, Stan Lee, William Goldman, Bruno Ganz e Albert Finney. Desde o ano passado que o “In Memoriam” se tornou um exemplo acabado do espírito do tempo: proibidas as palmas para que ninguém se melindrasse por uns serem mais aplaudidos do que outros (como se já não estivéssemos a escolher lembrar uns poucos em detrimento de muitos), fica-se com um momento flat, sem cheiro, sem emoção, só o medo higiénico de não ofender.
03h45: Rami Malek vence o Óscar para Melhor Actor e, assim, dá a quarta estatueta a “Bohemian Rapsody” – ninguém levará mais. Num bom discurso, sem papel, lembra como é filho de imigrantes egípcios, agradece aos pares, aos Queen, a quem acreditou nele mesmo não sendo a escolha óbvia, a Freddy Mercury e a quem vive sem pedir desculpa por ser quem é.
03h52: Aplausos de pé para o confressita John Lewis, que marchou pelos direitos civis com Martin Luther King, e vem apresentar “Green Book”.
04h00: Podia ter sido de Yalitza Aparicio, de “Roma”, e estaria bem. Poderia ter sido Lady Gaga, por “A Star is Born”, e também estaria bem. Poderia ter sido Glenn Cose, por “A Mulher”, e estaria certamente muito bem. Mas foi Olivia Colman a Melhor Actriz e talvez não pudesse estar melhor. Fez talvez o discurso mais humilde e espontâneo da noite, quase pedindo desculpa a Glenn Close, comovida diante de Lady Gaga, lembrando que trabalhou nas limpezas, emocionada pelos 25 anos de casamento com o marido, perguntando-se se os filhos estariam a ver ou já na cama, e dando o único óscar, em 10 nomeações, a “A Favorita”.
04h08: Guillermo del Toro entrega o Óscar de Melhor Realizador ao amigo Alfonso Cuarón. É o terceiro para “Roma”, é o México a limpar outra vez a festa dos filmes americanos, com muro ou sem ele, mas é Cuarón já sem grande coisa para dizer, a ter de ir buscar, até ele, o papel.
04h13: Julia Roberts, 51 anos e igual há pelo menos 25, vem entregar o último Óscar: o de Melhor Filme. Mas, como num policial em que não se construiu devidamente a tensão até ao desenlace, o nome “Green Book” cai apenas como um twist criado somente para surpreender e não como a revelação que dá, por fim, sentido a tudo. Afinal, se se reconhecera “Roma” como a melhor realização, melhor fotografia, melhor filme em língua estrangeira e nomeara no dobro das categorias, como explicar aquele súbito empolgamento com um filme onde se celebrara apenas argumento e actor secundário?
Talvez Hollywood ainda não estivesse preparada para se render já à Netflix. Ou se tenha limitado a ler do papel. Ou não saiba, realmente, o que celebrar nem por onde ir.