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“Lazarus” é o título da peça de Oona Doherty incluída neste programa do Rivoli
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“Lazarus” é o título da peça de Oona Doherty incluída neste programa do Rivoli

DIDIER PHILISPART

“Lazarus” é o título da peça de Oona Doherty incluída neste programa do Rivoli

DIDIER PHILISPART

Quatro mulheres, quatro movimentos: este é um manifesto dançado na pele

Childs Carvalho Lasseindra Doherty: 4 coreógrafas no Rivoli, no Porto, que dão nome a um espectáculo para fazer do corpo um desafio, em cima do palco e fora dele. Para ver sexta e sábado, dias 2 e 3.

Há um ímpeto criativo e iminentemente político (já lá iremos) associada à visão de Marine Brutti, Jonathan Debrouwer e Arthur Harel. Os três coreógrafos formam o coletivo transdisciplinar francês (La) Horde, fundado em 2013, que dirige o Ballet National de Marseille (BNM), desde 2019. É de lá, e objetivamente dessa multiplicidade de vozes a que se estende a sua mundividência enquanto programadores, que surge o programa Childs Carvalho Lasseindra Doherty, que é em simultâneo o nome das quatro coreógrafas que dão forma a uma criação, em boa verdade, a ser vista como um manifesto à sororidade, mas também ao que de mais astuto e refrescante se faz por estes dias no campo da dança contemporânea. O espetáculo sobe ao palco do Teatro Rivoli, no Porto, esta sexta-feira e sábado, dias 2 e 3 de dezembro.

Unidas as estéticas e mensagens criativas de cada uma destas criadoras, ou pelo menos contempladas num mesmo espetáculo, o programa que marca o regresso da companhia francesa ao palco portuense – depois da apresentação de “To Da Bone” e “Novaciériés”, no Festival Dias da Dança (DDD) 2018 – assume igualmente a forma de um tributo partilhado entre quatro mulheres, artistas, de diferentes gerações, sem quaisquer tipos de hierarquias estabelecidas. Todas as peças importam da mesma forma para o que se pretende afirmar e dar a conhecer. Podemos chamar-lhe uma “passagem de testemunho”, como diz Marine Brutti, em declarações ao Observador. Mas é ainda mais do que isso: nessa irmandade simbólica convivem formas de expressão e de vivência criativa que fazem com que no fim aquilo que se produz se torne, afinal, menos etéreo, mas decididamente mais completo na sua premissa de fruição.

Tânia Carvalho optou por compor uma peça de tom expressionista, em que as imagens surgem a partir dos movimentos fragmentados, que no final se traduzem numa forma definida

Theo Giacometti

Num programa conduzido entre diferentes décadas – de uma forma que se poderia dizer cronológica, acompanhando a própria história da dança –, deambula-se entre a plasticidade modernista e expressionista e os “corpos sociais”, na ligação inusitada entre um nome cimeiro da vanguarda pós-moderna na dança, como é o caso da octogenária Lucinda Childs, com a visão criativa e pioneira do movimento ballroom e de voguing em França, de Lasseindra Ninja. Através desta pluralidade de coreografias e da ligação geracional entre as quatro artistas, redefinem-se novamente os horizontes de uma dança arrebatadora, entre a coreografia mais estruturada e padronizada até aquela onde as barreiras do corpo parecem já não existir verdadeiramente. “Há um balanço e um equilíbrio que é também geracional, de empoderamento para cada uma destas criadoras”, explica Marine Brutti, realçando como desde o momento em que o coletivo a que pertenceu passou a dirigir o BNM sentiram “a responsabilidade” de usarem a instituição como “plataforma de partilha e diálogo artístico com outros artistas, especialmente os da nova geração.”

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“Não queríamos, no entanto, colocá-los numa posição desconfortável e é também por isso que tentámos ir buscar nomes que sustentam o peso de um legado. Foi o que sucedeu com a Lucinda Childs, que aparece quase como uma espécie de madrinha das restantes coreógrafas do programa. Por outro lado, vemos como há um público mais jovem que vem atraído pela temática da Ball culture e do trabalho da Lasseindra Ninja, mas que dessa forma descobre o trabalho e o percurso da Lucinda Childs. Foi esse cruzamento e essa forma de conectar diferentes tipos de público que nos motivou à criação deste espetáculo”, sintetiza a programadora.

Se, por um lado, a primeira parte do espetáculo Childs Carvalho Lasseindra Doherty é construído mais sobre uma lógica de expressão corporal, a segunda parte é marcada por um ângulo de visão em que a dança se evoca como forma de intervenção, onde se denotam de forma mais evidente premissas sociais, como a violência, o lugar das mulheres na sociedade, mas também das comunidades LGBTI+.

Expressão e movimento

As peças destas quatro artistas – “Tempo Vicino”, de Lucinda Childs, “One of Four Periods in Time (Ellipsis)”, de Tânia Carvalho, “Mood”, de Lasseindra Ninja e “Lazarus” de Oona Doherty – representam estéticas e coreografias distintas, unidas pela sua humanidade e singularidade. Trata-se de um conjunto mapeado pela expressão e pelo movimento, mas que simbolicamente nos levam a lugares distintos de interpretação artística. Numa perspetiva mais ampla, trata-se de um percurso que se traduz em conhecimento, por aquilo que é possível descobrir sobre as abordagens que têm vindo a ganhar destaque nas últimas décadas. Começamos no passado: escuta-se primeiro um ensemble minimalista, de ritmo irregular e sincopações jazzísticas, pela batuta do compositor norte-americano John Adams, numa dança de duetos onde se cria um movimento de energia cambiante e diálogo, sem que um elemento se sobreponha aos restantes, mas pelo contrário que desenrola livre e harmoniosamente.

Falamos de “Tempo Vicino”, a recriação da peça de Childs, criada há mais de dez anos para aquela mesmo instituição, demonstração plena de uma dança construída em padrões rigorosos e caminhos geométricos, alternâncias entre movimento e êxtase, permutação e trabalho em parceria. Lucinda Childs pensa a escrita coreográfica em termos de musicalidade, ritmo, técnica e partilha o seu agudo sentido de clareza e linearidade, de precisão do gesto com a música, o espaço e a luz.

"Lucinda Childs aparece quase como uma espécie de madrinha das restantes coreógrafas do programa", diz-nos Marina Brutti

Theo Giacometti

De Childs para a portuguesa Tânia Carvalho, mantém-se o trabalho na verticalidade dos corpos. A coreógrafa optou por compor uma peça de tom expressionista, em que as imagens surgem a partir dos movimentos fragmentados, que no final se traduzem numa forma definida. O desenho coreográfico desenha-se sobre uma premissa fantasmagórica e intemporal, onde a irregularidade de movimentos, desprovida de uma narrativa, se debruça sobre a intensidade dos corpos, os ritmos e as texturas gestuais, acima de tudo, performáticas. É a exploração inequívoca de um jogo de movimentos que eficazmente se torna imerso na intensa relação entre música e dança.

Entre o “voguing” dos salões e a violência das ruas

Se, por um lado, a primeira parte do espetáculo Childs Carvalho Lasseindra Doherty é construído mais sobre uma lógica de expressão corporal, a segunda parte é marcada por um ângulo de visão em que a dança se evoca como forma de intervenção, onde se denotam de forma mais evidente premissas sociais, como a violência, o lugar das mulheres na sociedade, mas também das comunidades LGBTI+. Essa reflexão começa desde logo com a criação “Mood” de Lasseindra Ninja, que se estreia numa criação deste género, para um corpo de baile dito mais académico e para um palco desta envergadura. A coreógrafa, que tem sido uma figura ímpar na ball culture em França, cultura está muitas vezes colocada nas margens daquilo que são as práticas artísticas dominantes, encarou o desafio como uma oportunidade para questionar a cultura Vogue em relação a um grupo, indo além de uma curta e extensa performance individual e reinventar o seu significado no palco de um teatro institucionalizado.

O grupo de bailarinos multiplica-se pela emoção, onde a espiritualidade se confunde com o slang anglo-saxónico. No fim procura-se a redenção, não apenas dos corpos, nem somente dos próprios bailarinos – estamos, afinal, em busca de razões para se acreditar na humanidade, na solidariedade e nos gestos que podemos fazer em prole dos outros.

A vontade de compartilhar e de fazer os bailarinos descobrirem um novo gesto e uma outra forma de perceber o mundo impulsionou a criação. Uma verdadeiro “Mood” sobre transição e descoberta, num mundo em que a realização pessoal de pessoas transgéneros é tantas vezes limitada ou constrangida, precisamente por não corresponderem a códigos e normas pré-estabelecidas. Lasseindra incorpora elementos do vocabulário do Ballroom, bem como poses dramáticas e referenciais do voguing. Quebra as barreiras e compartilha uma visão singular, inclusiva e libertadora da feminilidade e sexualidade.

Sem que os bailarinos deixem o palco, despem-se as roupas coloridas e as perucas, para se dar lugar a um guarda-roupa branco, que contrasta com o palco escuro. Já estamos em “Lazarus”, a peça da irlandesa Oona Doherty, inspirada nas palavras e gestos dos jovens de Belfast. Uma performance que é um produto do teatro físico, no qual Doherty desfaz estereótipos masculinos. Ouve-se “Miserere”, versão musicada a cappella do Salmo 51 feita pelo compositor italiano Gregorio Allegri, ao mesmo tempo em que irrompem gritos que amplificam a violência e a marginalidade das ruas da cidade. O grupo de bailarinos multiplica-se pela emoção, onde a espiritualidade se confunde com o slang anglo-saxónico. No fim procura-se a redenção, não apenas dos corpos, nem somente dos próprios bailarinos – estamos, afinal, em busca de razões para se acreditar na humanidade, na solidariedade e nos gestos que podemos fazer em prole dos outros.

Em palco vai estar também a visão criativa e pioneira do movimento "ballroom" e do "voguing", de Lasseindra Ninja

Theo Giacometti

Uma dança para o debate

Marine Brutti acredita que todas as peças aqui amplificadas nas suas premissas pela sua convivência conjunta traduzem de forma plena aquilo que o coletivo (La) Horde tem tentado trazer para o campo da dança contemporânea, tantas vezes visto como elitista e restrito. “Para nós foi importante, mesmo sabendo que queríamos trabalhar com este conjunto de coreógrafas, ter o cuidado de não estarmos a assumir uma postura de pink washing e de sermos visto apenas como seguidores de uma tendência. Obviamente, que queremos falar de sororidade, empoderamento, partilha transgeracional e trazer uma perspetiva mais abrangente sobre o que é ser-se uma mulher artista atualmente e os desafios que estas enfrentam”, sublinha.

Há temáticas em cima da mesa, que entraram porta adentro no BNM e que antes, dificilmente ali estariam ou que, porventura, seriam alvo de debate. Inclusividade, questões de género ou identitárias conduzem as práticas artísticas contemporâneas a um espaço de abrangência e de multiculturalidade. No entender de Brutti, trata-se de “uma espécie de movimento, que não se vê como tal”, mas quando visto em perspetiva parece ter uma missão comum. “É uma nébula, onde existem múltiplas possibilidades de existência e onde se perde a lógica de competição. Não há uma estética contra outra.” Derruba-se a força da autoridade, numa dança que não tem donos ou mecenas – uma dança virada para o debate, com um olhar político (claro, está) sobre o que deve ou não ser aceite nas sociedades de futuro. “É emotivo perceber quando as pessoas entendem o que estamos a tentar transmitir, sobretudo o que o público perceciona e consegue levar consigo”, acrescenta a programadora. Do Rivoli para qualquer outro palco do mundo, esse debate começa agora entre movimentos que se tornam um manifesto para ser visto e debatido entre e fora de portas.

O programa Childs Carvalho Lasseindra Doherty decorre dias 2 e 3 de dezembro, no grande auditório do Teatro Rivoli, no Porto. Ambos acontecem às 19h30.

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