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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Que segredos e raridades em vias de classificação guarda o arquivo do "Diário de Notícias"?

Obras de arte de vários milhões, jornais portugueses e internacionais desde o século XIX, milhares de livros raros. É o maior arquivo privado do país e brevemente pode ser classificado pelo Estado.

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O Arquivo do Diário de Notícias parece caber todo nuns milhares de CDs guardados em 18 gavetas de três estantes cinzentas. É por aí que começa a visita. Mas onde está o resto? A dúvida dura ainda alguns minutos. Ao telefone, dias antes, o jornalista Pedro Tadeu já nos tinha explicado que o arquivo vai muito além de fotografias e exemplares do jornal. Inclui obras de arte, livros e coleções de outros jornais e revistas de todo o mundo, razão pela qual o termo Arquivo do Diário de Notícias parece suscitar algum debate.

Em todo o caso, trata-se de um vasto e valioso património com documentos raros ou inéditos — registos de uma boa fatia da história recente de Portugal e do mundo, com enorme valor real e simbólico. Voltou a ser falado nas últimas semanas por estar em vias de classificação, o que ainda antes do desfecho torna já impossível a venda, a exportação ou o desmantelamento. Nesta ocasião estamos de visita a um dos três locais que albergam tais relíquias: Torres de Lisboa, na Rua Tomás da Fonseca, junto à Estrada da Luz.

Funciona aqui a redação do Diário de Notícias desde dezembro de 2016, depois de 76 anos no histórico edifício-sede, aquele primeiro prédio moderno da Avenida da Liberdade com traça do arquiteto Pardal Monteiro e frescos de Almada Negreiros. Aliás, do terceiro ao sétimo piso da Torre E operam todos os órgãos de comunicação social detidos pela mesma empresa do DN. Pedro Tadeu, que dirige o departamento de fotografia da Global Media Group, empresa que administra o Diário de Notícias, o Jornal de Notícias, a TSF, O Jogo e dezenas de outros títulos e é também diretor do departamento de documentação e informação da empresa, recebe-nos nessa qualidade numa manhã de sexta-feira.

Mostra-nos uma pequena sala de leitura com vistosa mesa de madeira, depois aponta para as três estantes cinzentas com CDs, bem arrumadas num corredor alcatifado, e logo em frente convida-nos a entrar numa sala de quatro secretárias e computadores onde trabalham documentalistas — nesta manhã encontra-se apenas Sara Guerra, diretora-adjunta do arquivo. Em dias normais, são três pessoas, mais três no Jornal de Notícias, no Porto. É a equipa mais pequena de sempre. Há duas décadas, nos dois títulos, havia quase três dezenas de pessoas no serviço do arquivo. A crise na imprensa terá determinado os cortes, mas no dizer de Pedro Tadeu “também a evolução tecnológica é um dos fatores, porque com a digitalização houve tarefas que simplesmente se extinguiram”.

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Nas paredes há meia dúzia de reproduções de fotos raras, como a de dois homens de espada em riste, um de apelido Silva e outro de apelido Centeno, e a seguinte legenda: “O aumento do preço do aluguer dos contadores de energia elétrica levou em 27 de dezembro de 1925 ao duelo entre Beja da Silva, vice-presidente do município de Lisboa, e António Centeno, das Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade.”

Estantes que guardam CDs com cópias do Diário de Notícias

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

A Global Notícias, como também é conhecida, uma das holdings de comunicação social no nosso país, tem na presidência o advogado Daniel Proença de Carvalho e capital maioritário da macaense KNJ, dos empresários Kevin Ho e João Siu. Tal como a generalidade do setor, vive uma crise financeira. Os trabalhadores estão em teletrabalho e em regime de lay-off parcial desde 20 de abril. Durante a visita testemunhámos um cenário pesado: a porta da redação do Diário de Notícias trancada, ninguém ao serviço e as luzes apagadas.

Segundo o diretor do departamento de documentação, o Arquivo do Diário de Notícias integra um património arquivístico maior chamado Arquivo Global Media Group, arrumado neste mesmo edifício das Torres de Lisboa e ainda no armazém de uma empresa privada em Sacavém (arredores de Lisboa) e no edifício do Jornal de Notícias, no Porto. “No conjunto, é de longe o maior arquivo privado do país”, classifica Pedro Tadeu. “Não há nada comparável. Maior do que isto, com as devidas distâncias, só a Biblioteca Nacional e a Torre do Tombo.” Garante-nos que “está tudo identificado e preservado”. E insiste: “Por isso é que costumo dizer que o Arquivo do Diário de Notícias não existe. É identificável, separável até, mas faz parte de um arquivo maior.”

A nomenclatura não é de somenos e entronca no processo de classificação. Esse procedimento de salvaguarda e valorização do património teve início a 18 de maio, quando dois antigos presidentes da República (Jorge Sampaio e Ramalho Eanes) e um grupo de intelectuais (Adelino Gomes, Diana Andringa, Mário Mesquita, Leonete Botelho, Fernando Rosas, Pacheco Pereira, Irene Pimentel, Francisco José Viegas, José Luís Peixoto, entre outros) dirigiram um requerimento à Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. Pediram a “urgente classificação” do Arquivo do Diário de Notícias, considerando necessário “salvar” este acervo de “excecional relevância histórica, cultural e cívica” por ele se encontrar “arrumado num armazém, inutilizável e em risco de poder vir a desaparecer no contexto da crise que atravessa a empresa proprietária”.

Um requerimento é o bastante para a DGLAB iniciar averiguações e assim aconteceu. Pedro Penteado, diretor dos serviços de arquivística e normalização daquele organismo, visitou as instalações do DN a 22 de maio e teve uma longa conversa com Pedro Tadeu e Sara Guerra. Depois foi conhecer o armazém de Sacavém e o edifício do JN, no Porto. São dois os principais diplomas a aplicar neste caso: a Lei do Património Cultural (de 2001) e o Regime da Classificação e da Inventariação dos Bens Móveis de Interesse Cultural (2015).

Já depois da nossa visita à Torre E, a direção da DGLAB anunciou que iria propor a classificação do arquivo como Tesouro Nacional, “a mais alta designação para proteção de bens arquivísticos e fotográficos”, soube-se a 16 de julho. O organismo tutelado pelo Ministério da Cultura e dirigido por Silvestre Lacerda (que é por inerência de funções o diretor da Torre do Tombo) indicou à agência Lusa que a decisão é comunicada à administração da Global, ao presidente da Câmara de Lisboa (porque o jornal tem sede na capital) e o processo segue depois para o Conselho Nacional de Cultura e mais tarde para o Ministério da Cultura, para decisão final.

“Existem alguns riscos, de uma eventual dispersão” do arquivo, disse Silvestre Lacerda a 16 de julho. Este responsável conhece bem o assunto, pois em tempos foi informalmente consultado pelo serviços do arquivo do DN para acompanhar a fusão de acervos com os do JN.

“Criou-se um mito sobre coisas que nunca existiram. Não há registo nenhum de originais de Eça de Queirós. Também já ouvi dizer que foi tudo roubado depois do 25 de Abril e não é verdade.”
Pedro Tadeu, diretor dos arquivos da Global Media Group

Mitos: “Não há originais de Eça de Queirós”

O requerimento de 18 de maio argumentava que o arquivo contém “55 mil edições do Diário de Notícias, um milhão de fotografias, 3,5 milhões de negativos, 50 mil chapas de vidro, zincogravuras e provas de contacto, 10 mil desenhos originais, mais de 11 mil coleções de jornais e revistas de todo o mundo e quase 35 mil livros”, além de microfilmes. Tudo arrumado em “450 metros de prateleiras”. O historiador Fernando Rosas, porta-voz do grupo de subscritores, declarou então ao jornal Público que o “espólio” em causa “tem originais de Eça de Queirós, de Bordalo Pinheiro, do rei D. Carlos” e está “completamente vulnerável”. O atual e um antigo responsável pelo arquivo não corroboram.

“Criou-se um mito sobre coisas que nunca existiram. Não há registo nenhum de originais de Eça de Queirós. Também já ouvi dizer que foi tudo roubado depois do 25 de Abril e não é verdade”, garante Pedro Tadeu. Entretanto, contactado por telefone, o documentalista Leonel Gonçalves afirmou-nos que se houve roubos ao longo do tempo estes implicaram “coisas de muito pouca importância e em pequena quantidade”. Até à reforma, no ano 2000, e durante três décadas, foi ele o diretor do Arquivo do Diário de Notícias. “Há extravios, roubos e deterioração de materiais em todas as bibliotecas e arquivos do mundo”, observou. “Há indivíduos que pedem documentos para trabalhar e depois nunca mais os devolvem. Os jornalistas, com as pressas, costumavam ser indisciplinados, o que é normal nesta profissão. Metiam um volume na gaveta, esqueciam-se e depois podíamos passar meses a pedir-lhes que devolvessem as coisas.”

Pedro Tadeu prossegue a contra-argumentação. “Incomoda-nos que digam ou insinuem que o arquivo está ao deus-dará. O requerimento dá voz a críticas e mitos que podem pôr em causa o trabalho de quem zelou por este património, dos trabalhadores à administração. Nós até poderíamos ter subscrito o documento, mas nem falaram connosco e cometeram vários lapsos, que admito que tenham sido involuntários. O que descrevem corresponde à organização do arquivo no tempo do antigo edifício”, remata. Refere-se ao prédio da Avenida da Liberdade, vendido em 2016 à promotora imobiliária Avenue por alegados 20 milhões de euros.

Edifício-sede do Diário de Notícias em 2016

LEONARDO NEGRÃO/GLOBAL IMAGENS

Inaugurado em 1940, o edifício-sede venceu nesse ano o Prémio Valmor de arquitetura e em 1986 foi classificado pelos serviços do Ministério da Cultura como Imóvel de Interesse Público. Dentro de pouco tempo vai dar origem ao condomínio 266 Liberdade, com 34 apartamentos entre 430 mil e dois milhões de euros. O projeto é da Contacto Atlântico, gabinete de arquitetura liderado por André Caiado, com sede no Estoril, e implica “intervenções discretas e quase impercetíveis na fachada”. O Observador testemunhou esta semana as obras de requalificação em fase avançada, mas com o edifício ainda coberto de alto a baixo por lonas e madeiras.

“Quando foi feita a mudança — no tempo do meu antecessor, Simões Dias, a quem a empresa muito deve, tal como ao antigo diretor do arquivo, Leonel Gonçalves, ambos fundamentais para que este património exista —, definiram-se critérios de distribuição do arquivo”, relata Pedro Tadeu, “Como o espaço aqui nas Torres de Lisboa é limitado, mandou-se para o Porto o que era de uso menos corrente. Tudo o que era património fotográfico do DN está aqui em Lisboa, não passou para o Porto. Do ponto de vista de coleções de jornais já havia em Lisboa réplicas de quase tudo: na Hemeroteca Municipal de Lisboa e na Biblioteca Nacional. A parte da fotografia é que não, por isso, mantivemos o arquivo fotográfico na capital, o que vai mais ao encontro dos interesses da empresa e do serviço ao país. Ao levarmos para o Porto uma parte importante da coleção de jornais, criámos ali um pólo que não existia e que está disponível para académicos, jornalistas e o público em geral”, sublinha Pedro Tadeu, procurando desmontar a tese de que o património em causa estará espalhado sem critério.

No histórico edifício portuense do JN, na Rua Gonçalo Cristóvão, que também deverá ser convertido em hotel, o arquivo distribui-se por três andares. Há núcleos de A Capital, A Tarde, Diário Popular, Expresso, L’Illustration, O Jornal, O Século, Paris Match, Time, Vida Mundial, etc. O JN foi fundado em 1888, mas o seu arquivo próprio só regista existências a partir de 1957. Internamente admite-se insuficiência de condições para armazenamento. Daí que a Global tenha assinado em 2019 um protocolo de cedência com a Câmara de Vila Nova Gaia, que prevê o depósito do património no Arquivo Sophia de Mello Breyner, atualmente usado para documentação corrente do próprio município.

O protocolo tem a duração de 20 anos, prevê o acesso público, a nomeação de um curador responsável e custos de conservação do lado do município. Uma das contrapartidas é o desconto de 50% para a Câmara de Gaia em publicidade nos órgãos de imprensa do grupo Global. O processo estava para se iniciar em vésperas da pandemia e aparentemente ainda não tem data para ser retomado, mas demorará seguramente seis meses, com inventariação e catalogação incluídas, segundo Pedro Tadeu.

É de notar que os arquivos, em geral, são fundamentais no trabalho diário dos profissionais da imprensa — e na investigação histórica. Permitem a consulta rápida do que foi publicado acerca de determinados acontecimentos, com todas as menções e omissões, e são das melhores ferramentas na preparação de entrevistas, ao darem acesso a imagens e escritos antigos sobre um entrevistado. Também ajudam na verificação de factos, o que por vezes torna estes repositórios indesejados por quem não gosta de ver narrativas atuais comparadas com as do passado. “Aliás, era hábito na redação do DN, quando entrava um jornalista, mandá-lo uns tempos para o arquivo, para perceber como funcionava”, recordou-nos Simões Dias, antigo jornalista que dirigiu o arquivo do JN desde os anos 90 e o arquivo da Global entre 2003 a 2017. “O arquivo era, e penso que ainda é, uma peça fundamental na produção do jornal.”

“É uma coisa que não se despega. Acho que acontece o mesmo com muitos jornalistas que trabalharam a vida inteira num jornal. Às vezes ainda suponho ter uma ligação àquele património, mas sei que na verdade já não existe.”
Leonel Gonçalves, antigo diretor do Arquivo do Diário de Notícias

Obras de arte de milhões

Caso só o Arquivo do Diário de Notícias venha a ser classificado — é nele que se foca o requerimento de 18 de maio e a que aludem informações prestadas pela DGLAB ao Observador, deixando de parte o restante património arquivístico da Global — estaremos perante “um erro”, sustenta o diretor. “Sem refletir uma posição da empresa, penso a título pessoal que todo o arquivo da Global deveria ser classificado. Para nós, é pacífico, desde que não haja desagregação ou desvalorização deste património. A propriedade mantém-se do lado da empresa, diz a lei. Podemos vender, mas o Estado tem direito de preferência e pode proibir a saída do património do país, mas não pode proibir que seja um estrangeiro a comprar. Além disso, quando houver trabalhos de restauro, temos de permitir a intervenção de técnicos do Estado, o que para nós é uma garantia de qualidade, e a empresa ainda pode candidatar-se a apoios públicos para conservação e restauro, o que é uma clara vantagem para nós.”

Leonel Gonçalves mostrou-se favorável à classificação, mas não especialmente entusiasmado. “O que mais me interessava era que o arquivo se preservasse e não se dispersasse. Tenho imenso receio de que haja uma dispersão dos documentos e com isso uma diluição de responsabilidades em caso de extravios ou roubos.” É à luz destes princípios que discorda da designação Arquivo Global Media Group, preferindo falar do Arquivo do Diário de Notícias como “unidade autónoma”. “Dar-lhe outra designação é contrariar o conceito de proveniência. O Arquivo do Diário de Notícias pode obviamente coexistir com outros fundos documentais da empresa, mas tem autonomia e história própria, que deve ser reconhecida.”

8 fotos

Numa coisa parece não haver dúvidas: o Arquivo do Diário de Notícias corresponde a vários fundos e serviços do jornal. Hemeroteca, biblioteca, filmoteca (com microfilmes da edição impressa desde o primeiro número, em 29 de dezembro de 1865), fototeca e um conjunto vasto de obras de arte, sobretudo pintura. “Por uma questão de facilidade, sempre se falou em arquivo como sinónimo de todos os outros acervos, o que não é rigoroso”, disse-nos Leonel Gonçalves.

Em Sacavém está, por exemplo, uma coleção completa do DN em papel, uma coleção do Mundo Desportivo (jornal da empresa do DN publicado entre os anos 40 e 70), milhares de livros do século XIX até hoje, medalhas, colares, diplomas, boletins, opúsculos, catálogos, postais ilustrados, cartas, ementas, etc., etc. “Aquilo tem um aparelho para controlar a temperatura e humidade e só acedem pessoas autorizadas”, garante Pedro Tadeu.

No que respeita a obras de arte, a Global é proprietária de milhares de peças da segunda metade do século XIX aos nossos dias, com um valor estimado de pelo menos três milhões de euros. Constam Alberto Sousa, Álvaro Lapa, Graça Morais, Júlio Pomar, Júlio Resende, Maluda, Marcelino Vespeira, Nadir Afonso, Nikias Skapinakis, Pedro Cabrita Reis, Roque Gameiro e Silva Porto, entre muitos outros. Stuart Carvalhais é de longe o criador mais representado, com milhares de aguarelas e desenhos. Está tudo armazenado em Sacavém ou exposto em número reduzido em gabinetes nos edifícios da empresa em Lisboa e no Porto. O Observador não teve oportunidade de ver as obras.

“Não as considero parte do Arquivo do Diário de Notícias”, disse-nos Simões Dias, ao telefone a partir do Porto. “Fazem parte do património da empresa. Muitas foram compradas com verbas do JN e do DN, que organizavam exposições nas sedes, e outras foram os próprios diretores que doaram. Sei que o Pacheco de Miranda, antigo diretor do JN, comprou várias pinturas do próprio bolso.”

Constam notícias "visadas pela censura" ou "suspensas" durante o Estado Novo

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Microfilmes e relação emocional

O jornal fundado em 1864 pelo escritor Eduardo Coelho e pelo industrial da tipografia Thomaz Quintino Antunes — quando reinava D. Luís I — estava desde o início apetrechado com um repositório de livros e documentação. Acumulou material ao longo das primeiras décadas de existência e em 1924 alguém percebeu que era necessário começar a pôr tudo em ordem. Essa pessoa foi o jornalista António da Costa Leão, ainda na fase do Bairro Alto (Rua dos Calafates, hoje Rua do Diário de Notícias). A biblioteca ganha então um impulso e o arquivo profissionaliza-se, passando a incluir as chapas de vidro produzidas diariamente (antepassado dos negativos das fotografias) e três exemplares de cada edição do DN (por vezes apenas duas).

A partir da década de 60, a catalogação sistemática é de norma no Diário de Notícias. Leonel Gonçalves tornou-se funcionário do jornal em 1959. Recorda que nessa fase ainda conviviam dois métodos de revelação fotográfica: chapas de vidro e negativos. “O arquivo andou muitas vezes ao sabor dos altos e baixos do próprio jornal”, explicou-nos. “A expansão nos anos 50 e 60 levou à contratação de mais jornalistas e funcionários e o arquivo também cresceu, até para dar resposta ao novo quadro redatorial. Foi a fase do brilhante chefe de redação João Coito”, recordou o documentalista. Aos 83 anos, com quatro décadas de serviço do Diário de Notícias, mantém uma forte relação emocional com o arquivo. “É uma coisa que não se despega. Acho que acontece o mesmo com muitos jornalistas que trabalharam a vida inteira num jornal. Às vezes ainda suponho ter uma ligação àquele património, mas sei que na verdade já não existe.”

Em 1970, iniciou-se a microfilmagem de todo o DN, resultado de uma proposta que Leonel Gonçalves apresentou à administração dirigida por Macieira Reis, quando era diretor Augusto de Castro (foi-o de 1919 a 1924 e novamente no longo período de 1939 a 1971). Esse registo em película de todas as páginas impressas, que passaram a ser consultáveis no ecrã de uma máquina própria de leitura — exatamente como nos filmes sobre jornalistas americanos dos anos 70 — constituiu uma segunda tentativa de Leonel Gonçalves, dessa vez bem-sucedida, “para que o jornal se preservasse e a consulta se tornasse muito mais fácil”. O trabalho foi feito pelos próprios profissionais do arquivo, com recurso a uma máquina Kodak, e iniciou-se pelas primeiras edições, de 1864.

Digitalizadas estão 50 milhões de fotografias, mas há muitas mais no arquivo, em papel fotográfico, negativos e chapas de vidro. “Para ser sério, ninguém consegue imaginar quantas são ao todo”, atira Pedro Tadeu.

Microfilmes foram digitalizados e o Diário de Notícias pode ser consultado na íntegra por jornalistas e documentalistas da casa desde o primeiro número, mostra Sara Guerra

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O tesouro das catacumbas

Voltemos às estantes com CDs com que iniciámos a visita. Percebemos depressa que são apenas cópias de segurança. Contêm, em bom rigor, digitalizações do DN, feitas a partir dos microfilmes e dos ficheiros PDF que no fim dos anos 90 começaram a ser utilizados diariamente. Tudo isso, mais 50 milhões de fotografias, segundo Pedro Tadeu, está hoje acessível a partir dos computadores dos jornalistas e documentalistas da casa. Estudantes e académicos também podem requisitar, mediante pagamento. A diretora-adjunta explica-nos que muitos desses pedidos lhe chegam por correio eletrónico e pela mesma via remete aos interessados o pedaço de história que procuram.

O programa informático utilizado chama-se MediaVault. Fizemos um teste: 10 de Junho de 1939 a 11 de Junho de 1940. Apareceram no ecrã miniaturas do JN e o DN, na íntegra e com as páginas a preto e branco. Em concreto, trata-se de imagens em formato tiff, o que significa que o texto contido não é pesquisável — ou seja, não há reconhecimento ótico de caracteres. No entanto, cada página (cada imagem) tem uma ficha associada com algumas palavras-chave e isso já facilita a busca.

O reconhecimento de caracteres não está previsto para já, porque demoraria muito tempo e implicaria custos astronómicos.” O diretor informou-se há tempos sobre o método utilizado pelo diário americano The New York Times, uma referência mundial na digitalização da própria hemeroteca, e percebeu que foi preciso contratar o serviço na Índia, com centenas de operadores durante anos a copiarem palavra por palavra todo o conteúdo do jornal desde 1851 até aos nossos dias. “Para o DN e o JN esse método custaria qualquer coisa como dois milhões de euros”, adianta Pedro Tadeu, resignado à impossibilidade de iniciar a tarefa.

“Poucos jornalistas nossos fazem questão de ir ver os jornais originais”, conta Sara Guerra. Preferem recorrer ao MediaVault. “O Ferreira Fernandes é uma exceção”, atalha Pedro Tadeu, referindo-se ao jornalista que até há poucos meses foi diretor do jornal (atualmente, a direção interina está entregue a Leonídio Paulo Ferreira). “Ele gosta mesmo de trabalhar com o papel. Sempre que está a fazer um trabalho em que precisa de material antigo, pedimos a um funcionário do armazém em Sacavém para nos trazer o volume aqui à redação.” Se num registo constante do MediaVault houver uma foto que interessa reproduzir hoje, os documentalistas deslocam-se ao piso –4 da Torre E e pela data fazem uma busca manual do negativo ou da foto propriamente dita.

Pedro Tadeu durante a visita guiada ao piso menos quatro da Torre E

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Somos convidados a conhecer esse piso –4, um local de preciosidades. Algures atrás de uma porta, junto à garagem da Torre E, situa-se um depósito que faz brilhar os olhos a quem se interessa por documentação histórica. A sala tem duas grandes máquinas que mantêm a temperatura do ar em 23 graus e a humidade em 50%, como indica um medidor eletrónico. Os armários e as caixas, mais as estantes que deslizam sobre calhas no chão, vieram do edifício na Avenida da Liberdade.

Sara Guerra toma a dianteira e abre algumas gavetas, bastante fundas, tudo organizado em fichas manuscritas, por assuntos e personalidades. “Madame Carmona”, mulher do presidente da República, aparece por acaso. Há também um índice onomástico, bastante exaustivo, dos que foram notícia no DN entre os anos 1960 e o fim da década de 80. Pedimos para ver fichas de Amália Rodrigues e de Oliveira Salazar e rapidamente foram localizadas. Em redor, livros e enciclopédias, exemplares encadernadas de O Occidente e da Ilustração Portugueza de inícios do século XX.

Há material produzido pelos profissionais da casa e também documentos comprados ou oferecidos. Noutra zona, milhares de pastas temáticas e biográficas, ou seja, recortes de jornais e revistas feitos pelos documentalistas, o que durante muito tempo funcionou como um Google analógico para os jornalistas. Mário Soares, António Guterres, Craveiro Lopes, João Paulo II, Família Kennedy, Incêndios, Freiras e Monges — são algumas das palavras nas lombadas. “Os recortes são importantíssimos”, diria Simões Dias, de 72 anos, em conversa posterior. “A nossa coleção de recortes, no JN e no DN, era tão boa quanto isto: enquanto eu lá estava, muitas vezes houve visitas de jornalistas do Correio da Manhã e da Visão que iam procurar notícias que eles próprios tinham publicado e de que não havia registo por não terem os arquivos organizados.”

Finalmente, as fotografias. Chapas de vidro e provas fotográficas são dos objetos mais curiosos, nem todos digitalizados e acessíveis pelo MediaVault. Na década de 70, explica-nos Sara Guerra, o material fotográfico começou a ter associado o nome dos autores, prática até então irrelevante não só no DN como em quase toda a imprensa portuguesa. Aliás, os fotógrafos nem eram considerados jornalistas e os redatores dos títulos desportivos também não, exceto se trabalhassem na secção de desporto de um generalista, segundo Leonel Gonçalves. Mesmo as notícias, era raro terem o nome de quem as tinha escrito.

Os fotógrafos são hoje obrigados a preencher dados nos ficheiros digitais que guardam as suas imagens, mas também isso, essa legendagem que oferece contexto a quem consulte as fotos muito tempo depois de produzidas, passou ao lado na maior parte do século passado.

O acervo fotográfico dispõe de negativos não só do DN como também do Diário do Popular e de títulos extintos que fizeram parte do portfólio da Global, como o 24 Horas ou o Tal & Qual. Aparentemente, as primeiras fotos de Snu Abecassis ao lado de Sá Carneiro só existem na coleção do Tal & Qual, que foi quem revelou o romance entre ambos. Perante este manancial, Pedro Tadeu deixa um comentário que aguça a curiosidade: “Está por fazer aqui um trabalho de arqueologia fotográfica que pode revelar informações fantásticas.”

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