Estamos 10 vezes melhor do que em fevereiro. Podemos dizê-lo, grosso modo, e só olhando para as médias diárias. Mas a descida nos números apresentados diariamente, o bom tempo e a perspetiva de um desconfinamento foram acompanhados também de um relaxar das preocupações e medidas preventivas adotadas pelos cidadãos, segundo o inquérito realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública e apresentado esta terça-feira pela investigadora Carla Nunes na reunião do Infarmed.
Na última semana, entre 15 e 22 de março, Portugal registou uma média de 466 novas infeções e 12 mortes por Covid-19 por dia. Números que nos deixam bastante distantes da média diária de fevereiro — dez vezes mais alta — com 4.653 novos casos e 137 óbitos diários. Mas, na verdade, ainda não passaram dois meses desde que o país enfrentou os piores dias da pandemia: 16.432 novos infetados a 26 de janeiro ou 303 mortes nos dias 28 e 31 do mesmo mês.
[Evolução do número de novos casos por 100 mil habitantes (média de sete dias) em Portugal e União Europeia]
Passando dos números para os comportamentos, vemos que, entre 19 de fevereiro e 19 março (tendo em conta o que fizeram nas duas semanas anteriores), aumentou o número de pessoas que saem de casa todos ou quase todos os dias sem ser para trabalhar; que quando saem nem sempre mantêm a distância de segurança de dois metros; que se reuniram em grupos de 10 ou mais pessoas; e que nem sempre usaram a máscara quando saem de casa.
Ainda assim, verificaram os investigadores no “Barómetro Covid-19: Opinião Social”, é mais fácil para os inquiridos usar máscara do que ficar em casa ou deixar de visitar a família.
Lavar as mãos sim, evitar visitar a família não
A adoção das medidas de prevenção e controlo da pandemia não são uniformes, porque as motivações para cada um dos tipos de comportamentos também não é igual, explica ao Observador Ana Rita Goes, coordenadora científica do questionário do “Barómetro Covid-19: Opinião Social”, apresentado esta terça-feira por Carla Nunes na reunião do Infarmed.
É mais fácil para os cidadãos aderir a medidas individuais, como o uso de máscara ou a lavagem frequente das mãos — menos de 10% e 5%, respetivamente, têm dificuldade ou muita dificuldade em cumprir estas medidas —, do que, naturalmente, aderir a medidas que dependam dos outros em certa medida, como a distância física e o teletrabalho — com mais de 20% a reportar ser difícil ou muito difícil.
Mas as medidas mais difíceis de todas são aquelas que têm uma componente mais emocional e de saúde mental, como visitar familiares e amigos ou ficar em casa. Nestes casos, mais de 35% das pessoas dizem ter tido dificuldade ou muita dificuldade em respeitar as indicações. As pessoas que se sentem pior a nível da saúde mental têm maiores dificuldades em evitar visitar os outros, mas também as pessoas que consideram as medidas do Governo desadequadas.
Ana Rita Goes explica porquê: “Comportamentos como usar máscara ou higienizar as mãos remetem para a perceção da necessidade e eficácia do comportamento, dependendo largamente do desenvolvimento do hábito e, portanto, do treino desses comportamentos, desenvolvimento de rotinas e influências exteriores para a sua adoção”, diz a investigadora. “Por sua vez, comportamentos no domínio do distanciamento social entram claramente em competição com outras motivações muito fortes, como socializar. Por isso, é natural que seja mais difícil adotar esses comportamentos e mantê-los ao longo do tempo.”
Uma das características de quem tem mais dificuldade em evitar visitar familiares e amigos é estar em trabalho presencial, total ou parcialmente. E também são estas as pessoas que saem com mais frequência sem ser para trabalhar. A este perfil juntam-se as pessoas com menor escolaridade e que têm maior dificuldade em manter o distanciamento físico.
Para Carla Nunes, epidemiologista e diretora da ENSP, a identificação dos perfis de quem tem mais dificuldade em aderir às medidas de contenção da pandemia permite criar estratégias de sensibilização mais adequadas e dirigidas a estes grupos. “Por serem aqueles para quem a motivação para socializar trará mais competição em relação à motivação para se proteger”, acrescenta Ana Rita Goes.
A investigadora apresenta algumas estratégias para incentivar este grupo de pessoas a proteger-se: “Encorajar a manutenção de outros comportamentos de proteção durante momentos de socialização (máscara, distanciamento físico…), evidenciar os efeitos em cadeia de cada momento de socialização encorajando a moderação (cada pessoa com quem estou esteve e estará com outras tantas) e contrariar o ‘excecionalismo’ (a minha situação é especial, eu só vou…), são exemplos de mensagens que podem contribuir para melhores decisões”.
Baixar a guarda, aos poucos, no último mês
O dia 19 de fevereiro marcou o momento em que descemos das 90 mortes diárias por Covid-19, o que não acontecia desde o início de janeiro de 2021. Mas nas duas semanas anteriores (desde 6 de fevereiro), ainda assistimos a uma média diária de 149 mortes. Um mês depois, a 19 março, o panorama era muito menos grave, como uma média de 19 mortes por dia para o mesmo período. A diminuição do número de mortes veio acompanhada da diminuição do números de novos casos diários: em média, 2.785 novos casos de 6 a 19 de fevereiro e 587 no mesmo período de março.
[Evolução do número de mortes diárias por 100 mil habitantes (média de sete dias) em Portugal e União Europeia]
Estas são as semanas de referência usadas pela ENSP para comparar os comportamentos — embora valha a pena lembrar que o plano de desconfinamento do Governo só teve início no dia 15 de março. No espaço de um mês, aumentou de 17 para 26,4% a percentagem de pessoas que saíram de casa, sem ser para trabalhar, todos (ou quase todos) os dias e de 1,8 para 4,9% as pessoas que se juntaram em grupos de 10 ou mais que não pertenciam ao mesmo agregado familiar.
60% saíram à rua esta segunda-feira, o primeiro dia do desconfinamento
Neste período, a frequência com que as pessoas deixaram de cumprir o distanciamento de dois metros na rua aumentou de 8,9 para 12,2%, com os inquiridos a responder que nunca mantiveram a distância ou só o fizeram algumas vezes. Por outro lado, são agora menos as pessoas que usam sempre máscara quando saem à rua, com uma quebra de 91 para 86,3%. De forma geral, são maioritariamente os jovens a terem comportamentos menos adequados, diz Carla Nunes. O nível de escolaridade também parece influenciar, mas varia com o indicador avaliado.
Olhando especificamente para o uso de máscara, no início de setembro cerca de 60% dos inquiridos dizia usar máscara sempre que saía de casa e estava com outras pessoas, mas, nessa altura, mais de 10% dizia que não usava máscara de todo ou só em algumas situações. Os restantes usavam máscara a maior parte das vezes.
Natal: menos precauções, melhor saúde mental
São poucas as pessoas que agora reportam nunca usar máscara na presença de outros ou fazê-lo raramente, muito menos do que em setembro. Mas se, durante meses, se assistiu a uma diminuição na frequência destas respostas — e, até, nos que dizem usar a maior parte das vezes —, a quadra festiva voltou a tornar mais frequente o uso irregular das máscaras.
Conforme o “Barómetro Covid-19: Opinião Social”, o número de pessoas que usavam sempre máscara aumentou até ao início de dezembro, mas caiu entre 11 de dezembro e 8 de janeiro, durante as festividades do Natal. Depois disso, voltou a aumentar até ao final de janeiro e, no último mês, caiu um pouco, mas nada comparável com o que se passou até ao início do ano.
Na época natalícia, as pessoas parecem ter relaxado as medidas individuais de precaução, mas também foi nesta altura que os inquiridos disseram sentir-se menos vezes agitados, ansiosos, em baixo ou tristes devido às medidas de distanciamento físico. Melhor do que o Natal, só mesmo o verão — junho e julho — depois do primeiro confinamento, quando a pandemia parecia controlada no país e a maior parte das restrições tinham sido levantadas.
Confiança na resposta da Saúde e do Governo oscilou nos últimos meses
A proporção de pessoas se sentem muito ou pouco perturbadas por causa do distanciamento tem variado desde o início da pandemia, com mais pessoas a dizerem que todos (ou quase todos) os dias se sentiram agitadas, ansiosas ou tristes, entre 18 de abril e 15 de maio (a apanhar o final do primeiro confinamento) e entre 9 e 22 de janeiro, quando enfrentávamos a pior fase da pandemia.
Desde o início do ano que mais de 20% dos inquiridos dizem sentir-se ansiosos ou com outros tipo de perturbações todos os dias ou quase. Esta situação afeta principalmente as mulheres e os mais novos — e vai diminuindo com a idade —, conforme os resultados do inquérito da ENSP.
A saúde mental foi muito afetada pela pandemia, ainda que com grandes oscilações como referido, mas a perceção sobre a saúde global é pior agora do que no início da pandemia, com mais de 40% das pessoas a dizerem que o seu estado de saúde não é mais do que razoável.
Desde 21 de março e até ao final de agosto, a perceção sobre a saúde global piorou sempre — a quantidade de pessoas que achava ter uma saúde muito boa caiu de 20 para 10% neste período. Quanto mais velhas as pessoas ou quando menor a escolaridade, pior a perceção que têm sobre o seu estado de saúde, revelou o inquérito, embora possa dever-se tanto à pandemia como ao facto de a autoperceção do estado de saúde também piorar à medida que envelhecemos.
Além da perceção sobre a própria saúde não ser muito positiva, o número de pessoas que reportam precisar de uma consulta e optar por não a fazer ou ver a sua consulta desmarcada é preocupante, diz Carla Nunes ao analisar os dados durante a reunião.
Entre meados de dezembro e início de fevereiro houve um aumento das pessoas que optaram por não comparecer nas consultas que precisavam fazer — ultrapassando os 20% no final do mês de janeiro (30% se considerarmos também quem viu a consulta desmarcada). A 19 de março, a situação estava a melhorar, com 17,4% das pessoas a dizer que não tinham ido à consulta por um destes motivos.
A falta de confiança atinge sobretudo o tratamento de outras doenças que não a Covid-19, embora a oscilação no nível de confiança na capacidade de resposta dos serviços de saúde tenha variado, desde agosto, da mesma forma para a Covid-19 e doenças não-covid.
O nível de confiança diminuiu, consideravelmente, de agosto até outubro. Nos meses de outubro e novembro, quase 40% dos inquiridos diziam-se pouco ou nada confiantes na resposta dos serviços de saúde à Covid-19 e quase 70% no caso da resposta às outras doenças. A confiança melhorou até ao final de dezembro, mas caiu a pique até 22 de janeiro, na pior fase da pandemia. Nessa altura, 55,7% das pessoas estavam pouco ou nada confiantes na resposta dos serviços de saúde à Covid-19, mas, pior, 80% sentiam o mesmo em relação à resposta às outras doenças.
A melhoria da situação pandémica também fez aumentar a confiança e, a 19 de março, apenas 20,7% se mostravam pouco confiantes na resposta à Covid-19. Nesta data, no entanto, mais de metade das pessoas (50,9%) continuavam sem confiar na resposta dada aos restantes doentes. A desconfiança na resposta dos serviços é maior entre os mais novos, que também são aqueles que tendem a ter comportamentos menos adequados.
Curiosamente, a perceção da adequação das medidas implementadas pelo Governo no combate à Covid-19 descreve uma curva semelhante à confiança na resposta dos serviços de saúde, mas aqui são os homens com menos de 65 anos e escolaridade superior, logo indivíduos em idade ativa, a considerar que as medidas são desadequadas.
Durante o mês de janeiro — e até dia 22 de janeiro — aumentou bastante o número de pessoas que considerava que as medidas impostas, e que incluíam o encerramento de várias atividades, eram pouco ou nada adequadas — embora se tivessem mostrado satisfeitas com o alívio das medidas na quadra natalícia. Desde então — e lembrando que as escolas estiveram encerradas desde 21 de janeiro —, os inquiridos têm gradualmente considerado as medidas mais adequadas.