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Caravan City é um dos locais de concentração dos adeptos, ficando a cerca de dez quilómetros da zona de Corniche, uma das mais visitadas em Doha por estes tempos
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Caravan City é um dos locais de concentração dos adeptos, ficando a cerca de dez quilómetros da zona de Corniche, uma das mais visitadas em Doha por estes tempos

Caravan City é um dos locais de concentração dos adeptos, ficando a cerca de dez quilómetros da zona de Corniche, uma das mais visitadas em Doha por estes tempos

Queixas sem resposta, dois acidentes em 30 segundos e um galo no metro: uma manhã na Caravan City (a 200 dólares/noite)

Caravan City é um dos espaços espalhados por Doha que acolhem adeptos sem hotel por disponibilidade logística ou financeira. Nem tudo é "una m*****" mas não há ninguém que não procure por algo melhor.

Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

– Sim, é muito fácil. Linha dourada, saída de Al Sadd, são uns cinco a dez minutos a pé.

Quem lia as reportagens no início do Campeonato do Mundo sobre a Caravan City, local onde estão desde o arranque da competição hospedados centenas de adeptos que acabaram por ser quase vítimas da falta de unidades hoteleiras em Doha e dos preços que as mesmas ganharam por estes dias (um hotel que chegue a custar 80 a 100 dólares por noite, e que justifica por completo esse preço, disparava até à altura do Natal para valores na ordem dos 420 dólares, quatro a cinco vezes mais), poderia pensar que era algo mais ou menos segredo, de que todos sabiam mas ninguém queria comentar. Afinal, estava à distância de um par de estações de metro. Mas havia ainda melhor pelos vistos. E demorou apenas 30 segundos a chegar.

– Não, em Joann é ainda mais perto. Está aqui: sair da estação, em frente, direita, seis minutos.

Era tudo menos um bicho de sete cabeças, faltando depois apenas a parte do entrar. Ou, antes disso, a parte do chegar debaixo de um sol abrasador num final de semana onde as temperaturas de manhã, quando está mais abafado, começaram a aumentar. Saindo em Joann, mais uma das estações com o aspeto de novo que na verdade são e com muitas escadas e passadeiras rolantes à mistura, até o pequeno café da estação, em frente a um cabeleireiro (nota importante sobre o tema: toda a hora é literalmente boa para dar um jeitinho na aparência, sendo que há vários cabeleireiros na zona de Al Mansoura abertos e com clientes depois da meia noite), consegue ter um café à portuguesa de mais qualidade do que 90% com que nos cruzámos. Mais uns gatinhos na estrada – e são muitos, com muita gente também a alimentá-los –, o virar da esquina com um cruzamento largo com quatro faixas para cada lado, na parte esquerda um painel enorme que juntava todas as mascotes do Mundial como se fossem amigos de longa data e a meta à vista. Ou não.

– Outra vez Caravan City? Sim, sim, siga para ali e vá sempre até lá ao fundo…

Cruzamento antes da chegada à Caravan City tem um anúncio gigante que junta todas as mascotes dos anteriores Mundiais

Houve um pequeno percalço nesse trajeto porque afinal o dono do restaurante Mon Plaisir, provavelmente já cansado da mesma pergunta, tirou-nos da direção certa, levou-nos a fazer uma chicana e só dez minutos a seguir é que o trilho correto estava retomado. Um aceno ao mesmo dono com estima e consideração por um engano propositado, mais de um minuto à espera que bonequinho vermelho do semáforo passasse a verde, o encontro com pequenas obras que estão a ser feitas num edifício grande e bege que está por ali e que é uma unidade hospitalar, o Al Sadd Health Centre. Nem viva alma por ali, nem viva alma ao dobrar da esquina na longa reta que iria dar entrada na Caravan City. À entrada, veríamos, porque alguma forma deveria haver para controlar o movimento de entradas e saídas. Uma longa lona com caravanas desenhadas preenche todo o espaço, com as janelas rasgadas como se de uma caravana fosse, mas mantém-se a dúvida a propósito da entrada, ainda para mais a tirar fotografias.

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– Bom dia sir…
– Bom dia sir…

Tanta coisa e o código de entrada era afinal a simpatia e cordialidade que se teria em qualquer lado e com qualquer pessoa. Só faltava mesmo não enterrar muito os pés por entre a terra batida e as pequenas pedras que andam por ali numa receção que parecia estar assim antes e alguém se esqueceu de apagar. Mais uns passos, mais um salto para não pisar uma flor branca, verde e vermelha desenhada com pedras entre caravanas. E uma buzinadela que vinha de trás, de um dos vários tuk tuk que vão circulando ao longo das ruas para seguirem para o sítio desejado. À frente, vazio. Dezenas e dezenas de caravanas sem pessoas, surgindo à porta de uma delas devidamente equipada com adereços da Tunísia um Mohammad acabado de acordar.

– Isto costuma estar sempre assim vazio?
– Sim, sim, de manhã sai tudo. Nós ficámos porque jogámos ontem e chegámos tarde.
– E onde posso encontrar mais pessoas?
– Sempre em frente, na zona dos restaurantes e do ecrã. Aí deve haver…

Nem todas as caravanas são iguais. Mediante a letra que têm colada, beneficiam de mais ou menos regalias e podem ficar mais ou menos caras, com a B a ser uma das mais básicas e a X a ter mais espaço, incluindo uma quase sala além das camas. Qualquer que seja a tipologia, são agrupadas de forma seguida, a certa altura quase milimétrica, nunca deixando de parecer um qualquer cenário do Squid Game, que em vez de um piso plano tem pedras escuras que quase parecem gravilha (e a olhar para o aspeto com que os ténis estão a ficar, quem sai dali de banho tomado quer voltar para tomar outro dez minutos depois). Uma longa caminhada depois, o tal espaço enorme de convívio. Em vez de uma série da Netflix, parecia já um local de lazer de um festival de música com campismo, com uma série de pequenos restaurantes cada um com as suas mesinhas e no meio muitos puffs e mesas corridas em frente ao ecrã gigante.

Lá ao fundo, na receção, continuam a chegar mais pessoas com bagagens vindas diretamente do aeroporto. É nesta altura que nos cruzamos com um casal argentino já acima da casa dos 50 que se vai encaminhar para o pequeno autocarro que transporta as pessoas dali diretamente para a estação de metro mais próxima (o que quase todos aproveitam para depois fazer). “O que acho disto? Pois que para este preço não está mal… Aqui pagamos 200 dólares, se tivéssemos ido para um dos hotéis que ainda havia eram 700 dólares por noite… Mas têm aqui um problema, posso estar a ligar para a receção que nunca me atendem. Olhe, vou lá agora”, diz Alejandro. “Sim mas não tem sequer um sítio para aquecer água para fazer aquele café da manhã, não tem nada. Cama, duche e não tem mais nada”, acrescenta logo de seguida Marilin.

Alguns dos ocupantes da Caravan City explicaram que irão mudar para um outro sítio entretanto construído que é melhor

“Aqui não estamos mal”, volta a dizer Alejandro, quase como se fosse um pingue pongue entre olhar para o copo meio cheio e meio vazio entre marido e mulher. “Temos a nossa cama, é um sítio limpo, é melhor em vez de pagar um hotel. Depois temos aqui este autocarro que nos deixa no metro e podemos ir conhecer a cidade”, acrescenta. “Mas não nos ajudam em nada, podemos estar a ligar para o telefone da receção que no final acabamos sempre por levantar e ter de vir a pé até aqui”, responde Marilin, perante um sol abrasador que começa a incomodar quando se está parado mais do que um par de minutos sem sombra. “De Portugal? Aaahhhh, estivemos agora no Porto”, contam. “É uma cidade muito bonita, com comida muito boa, gostámos muito. Uns amigos nossos disseram-nos que o Porto era mais bonito do que Lisboa e fomos lá, deixámos Lisboa para uma outra viagem que façamos para a Europa”, explica o casal argentino.

As perguntas já se tinham transformado mais numa conversa do que noutra coisa, com esse ponto do Porto a servir de base para os papéis de inverterem entre quem faz as perguntas. “Sabe como é que são as coisas se formos para o Dubai? Estávamos no outro dia ali a ver um jogo [apontando para a zona onde está o ecrã gigante que passa os jogos do Mundial] e uns rapazes estavam a falar nisso, que o melhor era ir para lá e na altura dos jogos fazer a viagem para cá. Agora, não sei como é depois com os papéis, se pedem alguma coisa quando voltamos a entrar no país. Mas pronto, eles também nos disseram ontem que uma outra zona da cidade que não sei onde é está pronta e vamos mudar para lá”, vai contando Alejandro, num cenário que foi também a aposta de alguns portugueses perante a falta de alojamento em Doha e os preços que estão a ser praticados durante o Mundial. Nisto passa um outro argentino, este com a camisola vestida (Alejandro tem um cachecol), que percebe que somos jornalistas e, sem questões à mistura, deixa logo a sua sentença.

– Es todo una m*****, todo. Una m*****

Todos se riem, todos percebem o estado de espírito. Mas por alguma razão em especial?

– Todo una m*****

Era só mesmo uma passagem para a receção sem paragem perante os pedidos, mas serviu para mostrar que nem todos estão satisfeitos com aquele sítio. Alejandro e Marilin despedem-se e seguem para a receção, na tentativa de perceber o porquê de haver falhas na rede de wifi que uma chamada nunca resolve porque ninguém atende. Seguimos no resto do contorno daquela que é a principal zona de lazer do espaço. Há mais uma zona de entrada e saída por ali, neste caso uma que dá para outra entrada de metro, mas da linha verde a 20 minutos a pé, um supermercado em forma de mini mercado para pequenas coisas e um local para alugar bicicletas para andar pela cidade, sendo que a primeira meia hora é grátis, a partir daí uma hora custa 25 qataris reais (6,60 euros) e o dia todo sobe para 100 qataris reais (26,4 euros). É prosseguindo por essa volta que encontramos Óscar, que nos engana a nível de nacionalidade no início.

– Brasileiro?
– No, mexicano.
– Perdão, como tem a camisola do Brasil vestida…
– Sim, vamos ver o jogo do Brasil, conseguimos comprar bilhete.

Começando pelo fim, a ligação de Óscar ao Brasil vem da filha, que é professora lá do ensino primário e que quase colocou o gosto na família pela canarinha. Também ele alinha pelo mesmo diapasão dos argentinos, falando daquilo que tem e não tem com a opção das caravanas. “O preço, para como estão agora os hotéis, é bom. Fica muito mais barato vir para aqui, eu a seguir ao segundo jogo do México vou-me embora mas espero voltar se nos qualificarmos para os oitavos e já tenho a reserva feita. A minha mulher é que já está a ficar cansada”, vai contando. “O ar condicionado tem alguma coisa que não está a dar como dava e com este calor fica muito mal lá dentro. Vou ver se consigo tratar disso ali à receção. Mas isto não é nada daquilo que tinham dito, era um sítio muito melhor do que na verdade tempos apanhado”, acrescenta.

Entre o espaço para jogar futebol e a zona de maior afluência estão dois distintos convidados: um camelo e um cavalo (que de manhã só descansam)

“À noite isto fica com um ambiente engraçado, pessoas de muitos países só a ver os jogos, sem chatices. É a melhor parte disto. De resto, aquilo que costumamos fazer é sair de manhã, apanhar o autocarro que têm aqui para ir até ao metro, seguir para a zona de Corniche e West Bay e depois voltamos ou antes ou depois do jantar. Mas não consigo perceber isto da receção, é muito desorganizado. Sempre que precisamos de saber alguma coisa, ter ou não telefone é a mesma coisa”, conta Óscar, na esperança de poder resolver essa situação e voltar à rotina diária. “Tem estes carritos pequenos, isto acho piada”, atira ao ver um dos tuk tuk.

Mais uma volta, a entrada numa outra dimensão que não tínhamos ainda visto: tudo está vazio mas existe uma zona ampla do espaço com dois campos de futebol (com tamanho dos de futsal) com relva sintética, dois campos para voleibol de praia com rede e uma tabela de basquetebol para quem quiser também juntar os amigos e aproveitar nas horas de menor calor. Ao lado, logo ali ao lado, um cavalo numa espécie de mini estábulo e um camelo que olha para nós de frente a mexer a boca sentado sem nada para fazer. Por uns momentos, há alguma coisa diferente que não seja só caravana, caravana, caravana, caravana. No entanto, é essa realidade que vamos outra vez encontrar em mais uma volta para a zona de saída. Caravana, caravana, caravana, caravana, quase sem pessoas e umas equipas de limpeza em trabalho. A Caravan City durante a manhã vai-se tornando uma espécie de cidade dormitório que com o baixar do sol tende a normalizar.

Caravan City tem perto da zona de maior movimento com vários pequenos restaurantes e o ecrã para ver os jogos um espaço para jogar futebol, basquetebol e voleibol de praia

Na zona de entradas e saídas, um sul-coreano com a camisola de Son fala com o segurança. Será que haveria agora problema para deixar o local? Não, era só mesmo pedir indicações para o metro. E como vamos ambos para o mesmo sítio, nada como meter a conversa em dia tendo Paulo Bento como ponto de partida. “É muito bom treinador, acredito que podemos ganhar ao Uruguai agora”, diz Hu, que procura apenas um sítio bom para comer depois de lhe terem recomendado a zona perto do metro. “Sim, ali para aquele lado há o centro comercial, já lá estive. Agora queria ir a um restaurante para ser rápido antes de ir para o jogo”. “O que acho disto? É muito limpo mas tive uns problemas com a água quente… E o wifi funciona mas só porque trouxe o meu que nunca se desliga. É isto, tem estas coisas…”, aponta sem querer criticar.

É nesse momento que chegamos ao cruzamento que não promete de novo facilidades para passar para o outro lado tendo em conta o número de carros e o tempo de espera. É nesse momento que acontece todo um fenómeno de acidentes. Primeiro, de quem olha para o lado direito estando de costas para o anúncio gigante das mascotes, a mota de um estafeta bate com o carro da frente, o condutor cai com a mota por cima, um polícia começa desde logo a apitar para que o colega chamasse ajuda, pouco depois com a ajuda de mais pessoas que também pararam os seus carros já está de pé mas visivelmente combalido. Sinal verde dos peões, início da passagem para o outro lado, um acidente do lado esquerdo, neste caso carro contra carro a ouvir-se e bem o barulho, mas sem marcas na traseira ou dianteira das viaturas, mais tráfego.

– O melhor se calhar é sairmos daqui ou somos os próximos…
– Pois, isto é de loucos, de loucos!

As coisas estranhas ainda não tinham acabado e, entrando na carruagem da frente do metro, onde todos os locais para se sentar são numa versão família real e não comum mortal como nos outros locais daí para trás, eis que tudo está fascinado com um fenómeno para nós mais conhecido: Clément Tomaszewski, o adepto francês conhecido por apoiar a equipa gaulesa com o seu galo Balthazar em várias campanhas de Campeonatos da Europa e do Mundo, e que fazia as delícias de todas as pessoas ali presentes (e dos telemóveis, claro está) agarrando no animal quase como se fosse um cão ou um gato antes de pousar na sua perna e ir tirando fotografias. Neste caso, por ser um dos adeptos apontados pela organização como uma das marcas da equipa francesa, está hospedado num outro local. Provavelmente nem paga nada, ficando a conta para quem investe ao máximo para ter estas figuras no Qatar (um assunto que trataremos nos próximos dias quando tivermos mais bases de como tudo funciona). Se estivesse, o encontro teria sido a caminho da receção…

A Caravan City acaba por ser o melhor retrato das respostas possíveis a um Campeonato do Mundo que traz muitos milhares de pessoas a cada país, a par da Fan Village Cabins Free Zone, onde todos os hóspedes ficam em contentores num modelo muito parecido com este mas onde pelo menos os acessos e toda a envolvência não parece estar ainda por acabar. Neste caso, a construção de um novo aeroporto e das respetivas infraestruturas já estava pensada, bem como de mais hotéis e de um ou outro estádio. No entanto, acabou por não haver tempo para conseguir fazer tudo e esta foi a melhor forma de disfarçar essas carências por falta de tempo (um exemplo: em frente aos apartamentos onde estamos estão outros que na sua globalidade estão construídos mas sem tempo para os acabamentos que os pudessem colocar a postos a tempo da competição). Depois os preços, esses, foram tudo menos adaptados ao adepto comum…

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