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Philip Roth
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Philip Milton Roth nasceu a 19 de março de 1933, em Newark, e morreu a 22 de maio de 2018, em Nova Iorque

Getty Images

Philip Milton Roth nasceu a 19 de março de 1933, em Newark, e morreu a 22 de maio de 2018, em Nova Iorque

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Quem és tu, Philip Roth?

A infância em Newark e a glória em Nova Iorque. As personagens da ficção e a inspiração da vida real. Os amores, os ódios e as manias. Está tudo na monumental biografia publicada agora em Portugal.

Philip Roth detestava que o considerassem um escritor de cariz auto-biográfico. Na sua biografia, pela mão de Blake Bailey, vemos, assim, de que forma transportou episódios-chave da sua vida para a literatura. Não fez o decalque, transformou-os em literatura, usou-os como lhe convinha para dar força a um texto.

A biografia, agora publicada em Portugal, que tem como título simplesmente Roth, revela-se em cerca de 1100 páginas, resultado do acompanhamento do biógrafo junto do autor ao longo de uma década. Ali, parece que tudo foi passado a pente fino: não apenas a vida do escritor americano, mas também a vida de quem o acompanhou. Mesmo aqui, foi muitas vezes às fontes, contrapôs versões, usou diários, verificou factos. O livro foi cancelado no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, na sequência de acusações de agressão sexual e violação feitas ao biógrafo. Meses depois de ser anunciado, foi, ainda assim, publicado em Portugal. Ainda bem, que é para Philip Roth que olhamos, e é impossível encarar a literatura norte-americana do fim do século passado e do início do atual sem ele.

A capa da edição portuguesa da biografia "Roth", de Blake Bailey (Dom Quixote)

Roth é um dos mais importantes e relevantes autores que não recebeu o Nobel da Literatura. No seu percurso, encaramos o prémio como obsessão e sombra, até por parte de quem rodeava o escritor, à medida que este se impunha como o grande autor norte-americano do seu tempo. A abrir a biografia, é lê-lo:

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“Newark é a minha Estocolmo, e aquela praça [Philip Roth Plaza] é o meu prémio. Nenhum outro reconhecimento no mundo me deixaria mais emocionado.” (p. 16)

A frase sabe a defesa, até porque, dias antes, Harold Pinter, seu amigo, tinha recebido o galardão máximo. Para lá disso, valorizar o que se tem, superiorizando-o ao que não se tem, gera o efeito de anular o segundo, ao baixá-lo na hierarquia, assumindo-se a vitória. Ainda assim, ninguém poderá levar Roth muito a sério, até porque, partindo de Newark, sempre foi um escritor para o mundo. Mesmo quando tratava dos assunto do seu bairro, a sua mundividência tinha o objectivo de atingir o universal, ainda que partisse de uma chapa individual. Por exemplo, em Pastoral Americana, Roth expôs a decadência de Newark e a perda de inocência americana no decorrer nas convulsões sociais dos anos 60. O romance saiu das fronteiras daquela cidade e venceu o Pulitzer.

A relação de Roth com a própria produção literária foi passando por solavancos ao longo da carreira que construiu. Em 1959, publicou Goodbye, Columbus, e com o livro ganhou o National Book Award, aos 26 anos. Roth percebia o preconceito contra livros de contos de autores sem romances publicados, mas acreditava que o público potencial deste livro seria tão amplo quanto o que comprava J.D. Salinger aos milhares. Ainda assim, ao longo do tempo, a sua literatura foi sendo feita em torno de algumas obsessões, como as ambiguidades inerentes à bondade. À medida que estas obsessões ganhavam espaço, também aumentava o espaço entre Roth e Goodbye, Columbus, ao ponto de o autor manifestar o desejo de que o livro desaparecesse.

Deplorava a ideia de que era essencialmente um escritor auto-biográfico, ao mesmo tempo que tirava partido estético da questão com alter egos parecidos que incluíam uma personagem recorrente chamada Philip Roth. Alguns romances são mais auto-biográficos do que outros, é certo, mas Roth era uma figura demasiado versátil para se deixar prender a uma personagem em particular.

Não foi caso único, já que o escritor viria a rejeitar e a arrepender-se de O Complexo de Portnoy (1969). Em 31 livros, parecia-lhe a mais:

“’Podia ter construído uma carreira suficientemente séria sem ele e teria evitado uma torrente de merda insultuosa’” – acusações de ódio à sua condição de judeu, misoginia e ausência geral de seriedade. “’Tinha escrito um livro sobre sexo e masturbação e coisas do género, por isso era uma espécie de palhaço ou artista da foda. Mas acabei por derrotá-los. Nojentos.’” (p 17)

O livro, convém dizer, veio a fazer parte da lista dos cem melhores romances em língua inglesa do século passado, publicada em 1998 pela Modern Library. Para o público, ficava a dúvida: aquilo era uma confissão ou um romance? A recepção dividia-se entre admiração e ofensa. Para Roth, isto era problemático, já que “deplorava a ideia de que era essencialmente um escritor auto-biográfico, ao mesmo tempo que tirava partido estético da questão com alter egos parecidos que incluíam uma personagem recorrente chamada Philip Roth. Alguns romances são mais auto-biográficos do que outros, é certo, mas Roth era uma figura demasiado versátil para se deixar prender a uma personagem em particular, e sabe-se relativamente pouco acerca da vida real sobre a qual supostamente se baseou uma obra tão vasta. No caso de Portnoy, a ideia de auto-biografia poderá pesar mais, já que, num cenário em que figuram Zuckerman, Kepesh e Tarnopol, esta será a personagem que bebe de forma mais indirecta da realidade”. (p.18)

Em concomitância, o autor travava uma batalha com a forma como era encarado como judeu pelo público vasto e pela crítica, assumindo a referência ao judaísmo como um insulto: ao ser um escritor judeu, deixava de ser meramente um escritor. E, da mesma forma que imaginava que Theodore Dreiser, Hemingway ou John Cheever não se vissem como escritores cristãos americanos ou americanos cristãos, também não se podia ver como escritor judeu americano ou americano judeu. “Eu não sou um escritor judeu; sou uma escritor que é judeu” (p. 313), viria a dizer perante uma plateia em que lhe foi questionado como podia contribuir para o pensamento judaico na América sem ter conhecimento da história judaica e da língua hebraica.

Philip Roth

O autor, como todos os grandes, teve de deslaçar amarras para fazer uma coisa em grande. A sua literatura podia encarar o banal, mas Roth queria para si algo bem diferente

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Roth gostava de enfatizar que já ia quase nos 60 quando ouviu uma banda klezmer pela primeira vez. Por isso, quando Alan Yentob fez o seu documentário de 2014, “Philip Roth Unleashed”, o autor irritou-se com “essa música de chacha”, que dava “a ideia errada”. Ao mesmo tempo, Roth viria a admitir que a Talmud Torá da sinagoga de Schley Street foi a única escola onde não brilhou, ainda que acrescente que tenha sido lá que aprendeu a ser engraçado. Depois do bar mitzvah, Roth rompeu com o lado religioso do judaísmo.

O autor, como todos os grandes, teve de deslaçar amarras para fazer uma coisa em grande. A sua literatura podia encarar o banal, mas Roth queria para si algo bem diferente da que desejavam os seus conterrâneos em Newark. À sua volta, tinha gente interessada em dinheiro, casamentos e filhos. Em suma, numa entediante vida suburbana. E Roth queria fugir “ao tédio, ao moralismo, à intolerância, à monotonia e à tacanhez” da sua terra natal, e depois passar o resto da vida a pensar nela, ou a escrever sobre ela, ou a transformá-la numa coisa que, partindo do micro, se transformasse em macro. Isto passaria sempre por sublimar um terreno geograficamente delimitado no prado sem extensão definida da literatura, ou seja, expandir a vida na arte, cristalizá-la numa forma estética que lhe permitisse alcance no outro. Nesta tarefa, não se coibiu de instrumentalizar o que quisesse para criar uma vida paralela. Assim, gostava de citar Czesław Miłosz: “Quando nasce um escritor numa família, acaba-se a família.” Roth cumpriria os seus romances, debruçar-se-ia mais tarde sobre o impacto na família e nos amigos, se é que viria a preocupar-se.

A relação do autor com Margaret Martinson (Maggie), que viria a ser a sua primeira esposa, foi um dos casos em que a vida se transformou em literatura. Foi uma relação de altos e baixos e, segundo o biógrafo, que é tendencioso, mais baixos do que altos. A emboscada com que Maggie atraiu Roth para o compromisso do casamento, e que consistiu num truque com urina alheia para garantir um positivo num teste de gravidez e num aborto fingido, foi um trauma que Roth usou depois como matéria-prima, e os baixos com Maggie atravessaram vários livros.

O escritor, que travou amizade com autores dissidentes, como Milan Kundera ou Ludvík Vaculík, gostava de escrever em ambientes rurais e recusava-se a ceder a distracções. Assim que a vida o possibilitou, foi para a escrita que Roth se voltou, sem dar grande atenção ao periférico, sem perder muito tempo com o acessório.

Aos 27 anos, Roth assumiu a responsabilidades pelos seus dois adolescentes. Depois, viria a retratar o pai biológico em Quando Ela Era Boa (1967), na pele de Roy Bassart, e a convencer-se de que ele era “um tolo inofensivo (…) que, tal como ele, tivera o azar de se atravessar no caminho de Maggie” (p. 273). Maggie é, nesta biografia de Roth, sempre tratada como neurótica e desequilibrada, ciumenta e obsessiva, mas sente-se que Bailey toma as dores de Roth e faz um julgamento a direito, sem contraponto e sem questionar a versão. É que, ao longo de todo o casamento, Roth aparece apenas como vítima evidente, e Maggie é a paródia de uma louca. Na ligeireza com que o biógrafo a trata, e com que vem a tratar outras mulheres que se cruzam com Roth, nota-se uma evidente misoginia de quem não questiona o que ouve de um lado e, ainda assim, dita a sentença, e descreve em primeira mão o que só existe em segunda. Um bom exemplo desta disparidade é a forma como o biógrafo descreve a cena em que Maggie é obrigada a abortar, na medida em que, face a uma gravidez, Roth “não permitiu nenhuma discussão” (p. 242). Ao mostrar isto sem qualquer comentário, ao contrário do que faz nas descrições das acções de Maggie, parece fazer um louvor à firmeza.

A verdade é que a relação com Maggie rendeu muito na literatura do autor norte-americano. Em páginas eliminadas de My Life as a Man (1974), está:

[Zuckerman] tinha propensão para se enfatuar na presença do irmão mais velho, nomeadamente para se gabar (subtilmente, é claro) do seu espírito aventureiro – e, de facto, o que podia ser mais aventureiro do que viver com uma divorciada, cinco anos mais velha, cujo marido lhe tinha roubado os filhos? Uma vítima de incesto, ainda por cima.” (p. 211)

Podemos encarar isto como uma mistura entre vampirismo, catarse e transformação da vida em literatura. Por um lado, Roth tenta afastar-se o mais possível da questão auto-biográfica inerente à sua ficção. Por outro, projecta-se sem grandes pudores na sua literatura. Ainda assim, mesmo o material biográfico tem tratamento estético e é integrado em fios da narrativa que não são os fios condutores da própria biografia de Roth, que se limitou a usar episódios fortes para dar uma coisa nova ao público.

Nesta monumental biografia, seguimos os passos de Philip Roth que nos permitem analisar a sua evolução como escritor

Corbis via Getty Images

Os críticos viriam a considerar My Life as a Man como a primeira incursão a sério do autor na meta-ficção. Roth, por seu lado, advogava a necessidade de se debater com a forma que melhor se adequasse ao material. Ainda por cima, considerava que era aqui que recorria a questão pessoais traumáticas para escrever (e não em O Complexo de Portnoy). Assim, Roth usou a vida com Maggie, prescindindo de qualquer enquadramento romântico, apresentando a ex-esposa como “a pequena criminosa que ela era” (p. 493). O livro serviria ainda para que o público alargado percepcionasse Roth como misógino, já que parecia que só retratava as mulheres como malévolas ou como corpos sexuais que acabam por aborrecer.

Nesta monumental biografia, seguimos ainda os passos de Roth que nos permitem analisar a sua evolução como escritor. Como principiante, assumia a tarefa e o treino e levava-se mais a sério do que os críticos. Podia ver-se alguma megalomania, já que até telefonava para as livrarias a perguntar se tinham um livro seu e desligava, mas dá para se encarar o ofício sem qualquer ironia e assumir que Roth sabia onde estava e para onde queria ir. E ainda que, ao invés de estar grávido de literatura, teria de ir migalha a migalha até se impôr numa biblioteca. Daí, por exemplo, que o seu processo criativo seja uma espécie de dialéctica, já que uma obra é concebida em reacção à anterior.

Em Roth, o trabalho é comummente visto como analgésico da vida. O escritor, que travou amizade com autores dissidentes, como Milan Kundera ou Ludvík Vaculík, gostava de escrever em ambientes rurais e recusava-se a ceder a distracções. Passou temporadas em Israel a investigar aspectos de The Counterlife e Operação Shylock, já depois de se ter emancipado da xenofobia judaica e da “paranoia alimentada pelo gueto em relação aos gentios” (p. 99). Assim que a vida o possibilitou, foi para a escrita que Roth se voltou, sem dar grande atenção ao periférico, sem perder muito tempo com o acessório. Pode ler-se:

Sou um grande apreciador da vida caseira. (…) Não gosto de ficar sentado na merda do Elaine’s. Quero jantar, beber um corpo… ler, meter-me na cama, foder e adormecer. Que mais há para fazer? Depois, de manhã, voltar para o meu canto, trabalhar, etc. E todos os dias mais ou menos o mesmo.” (p. 451)

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

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