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Este domingo, os cubanos são chamados a votar na nova Constituição, texto fundamental que pretende substituir o de 1976 — redigido numa outra era, em que havia, por isso mesmo, uma outra Cuba. Agora, quase um ano após a subida ao poder de Miguel Díaz-Canel, e no 124º aniversário da Guerra pela Independência de Cuba, aquele país pode estar prestes a ter uma nova base para a sua vida sociopolítica.
Antes de chegar à versão final, o rascunho da Constituição que vai a votos este domingo foi alterado 760 vezes, após um processo de consulta popular e a diferentes esferas da sociedade civil, incluindo organismos religiosos, que durou vários meses. No resultado final, contam-se 134 artigos alterados, o que quase chega a 60% da totalidade da Constituição vigente. Entre estas, há mudanças de fundo (como a alteração que dita que um Presidente poderá governar por apenas dois mandatos de cinco anos) e outras que, literalmente, só põem uma letrinha onde estava um sinal de pontuação (como a passagem da formulação “marxismo-leninismo” para “marxismo e leninismo”). Apenas 87 artigos continuam inalterados.
Constituição nova, Cuba nova? A resposta poderá muito bem ser a que se ouve regularmente naquela ilha caribenha, após as mais variadíssimas perguntas: “No es fácil”.
O socialismo e o comunismo são eternos…
Se, até agora, Cuba já era vermelha, a nova Cuba será só vermelha.
Esta é uma subtileza mas, ainda assim, uma mensagem plena de significado. Na Constituição de 1976, o Partido Comunista de Cuba (PCC) era descrito como a entidade que “organiza e orienta os esforços comuns até aos fins superiores da construção do socialismo e o avanço até à sociedade comunista” e merecia uma lista de adjetivos: “Martiano [de José Martí, herói nacional cubano, símbolo da independência cubana de Espanha] e marxista-leninista, vanguarda organizada da nação cubana”.
Ora, na Constituição de 2019, aquela lista de adjetivos tem alguns acrescentos. O primeiro é a descrição do PCC como “fidelista” — numa homenagem declarada ao ex-líder Fidel Castro. Há ali, contudo, outro adjetivo que é acrescentado que é menos óbvio e ao mesmo tempo mais sonante: “Único”. Aqui, não há surpresa nenhuma — o Partido Comunista Cubano já era, de facto, o único partido de Cuba. Agora, porém, essa singularidade está destacada no texto fundamental pelo qual deverá reger-se a vida sociopolítica do país, para que não restem dúvidas.
Esta pequena mudança está em consonância com outras partes da nova Constituição, onde o pendor ideológico do regime político cubano é reafirmado. Logo no preâmbulo, é dito que o “povo de Cuba” está “convencido de que Cuba nunca voltará ao capitalismo como regime sustentado na exploração do homem e que só no socialismo e no comunismo o ser humano alcança a sua dignidade plena”.
No campo ideológico, há uma outra subtileza digna de destaque. Onde até agora se lia “marxismo-leninismo”, passa a ler-se “marxismo e leninismo”. A alteração pode parecer pequena, mas também ela tem significado. De acordo com José Manuel Martín Medem, ex-correspondente da TVE em Cuba, a mudança foi para a frente por alguns dos catedráticos consultados pela Assembleia Nacional do Poder Popular (ANPP) terem dito que a formulação marxista-leninista tinha um tom estalinista.
Seja como for, nuances à parte, o socialismo é para sempre. Logo no preâmbulo é dado como ponto assente que o “sistema socialista” é “irrevogável” e, mais à frente, no Artigo 229, sobre as possibilidades de reforma da Constituição, é sublinhado que “em nenhum caso” serão admitidas propostas que alterem a “irrevogabilidade do sistema socialista”.
… mas o Presidente terá sempre os dias contados
Embora as certezas nas virtudes do socialismo e do comunismo descritas no texto final da Constituição de 2019 continuem inabaláveis, haverá uma nova certeza caso o “Sim” vença: os presidentes já não são para sempre.
Fidel Castro esteve quase meio século no poder, entre o cargo de primeiro-ministro e o de Presidente, mas sempre como líder máximo de facto. Raúl Castro assumiu interinamente funções em 2006, oficialmente em 2008, e abriu caminho à sucessão dez anos depois. Agora, Miguel Díaz-Canel, que, em abril, assinala o seu primeiro ano no poder, tem pela frente um máximo de nove anos — isto se for reeleito entre mandatos.
As medidas agora apresentadas são inspiradas nalgumas que vigoraram na China durante vários anos — e que, curiosamente, foram eliminadas no Congresso Nacional Popular chinês de 2018 —, como a limitação do número de mandatos e também a fixação de uma idade máxima para chegar ao cargo de Presidente. De acordo com a Constituição que vai ser referendada este domingo, o Presidente poderá governar durante um máximo de dois mandatos de cinco anos cada e terá de ter entre 35 e 60 anos à altura da sua eleição para o cargo.
Ainda assim, a eleição do Presidente continuará a ser feita de forma indireta. Tal como a China, também Cuba vai ter de esperar pelo dia em que o sufrágio universal será o método para escolher o chefe de Estado.
O Estado continua a mandar em quase tudo, mas a propriedade privada avança
Na Constituição de 1976, a propriedade privada não era uma opção. Agora, há seis tipos de propriedade não-estatal prevista pelo texto de 2019. Além da propriedade “socialista de todo o povo”, na qual o “estado atua em representação e benefício daquele como proprietário”, a nova Constituição prevê:
- Propriedade cooperativa, em que os trabalhadores de uma empresa são também seus proprietários;
- Propriedade das organizações políticas, de massas e sociais, sobre os “bens destinados ao cumprimento dos seus fins”;
- Propriedade privada, que prevê que “determinados meios de produção”, que têm uma “papel complementar com a economia” do país, sejam detidos por “pessoas naturais ou coletivas cubanas ou estrangeiras”;
- Propriedade mista, que consiste na “combinação de duas ou mais formas de propriedade”;
- Propriedade de instituições ou associações, que dirá respeito a todos “os bens para o cumprimento de fins de carácter não lucrativo”;
- Propriedade pessoal, que dirá respeito a todos os bens que “contribuam para a satisfação das necessidades materiais e espirituais do seu titular”, desde que não se trate de um meio de produção.
O que não vai deixar de ser 100% ligado ao regime, seja ao Estado ou às associações que este patrocina, são os media. Embora seja reconhecida a liberdade de imprensa, a Constituição assegura, ainda assim, que esse direito “é exercido em conformidade com a lei e os fins da sociedade”. Como tal, o texto que este domingo é votado assegura que os media “são de propriedade socialista de todo o povo ou das organizações políticas, sociais e de massas” e que, por isso, “não podem ser objeto de outro tipo de propriedade”.
O casamento homossexual fica para segundas núpcias
No processo que levou à versão final da Constituição de 2019, nenhum tema teve tanto destaque, e foi tão discutido, quanto a possibilidade de o casamento entre pessoas do mesmo sexo passar a ser legal.
Este não seria um desenvolvimento de somenos no regime comunista, que conta com um negro historial de repressão da comunidade homossexual nas suas primeiras décadas — e que, logo nos primeiros anos, enviava homossexuais para supostos campos de educação, onde eram submetidos a trabalhos forçados. Mais recentemente, o nível de repressão diminuiu, embora não tenha desaparecido. E também a pairar estava a menção na Constituição de 1976, em cujo Artigo 36 se lê que “o casamento é a união voluntariamente acordada entre um homem e uma mulher”.
O casamento homossexual chegou a ser uma opção em cima da mesa. Numa entrevista, em setembro de 2018, à Telesur, o Presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, disse: “Defendo que não haja nenhum tipo de discriminação”. Mas, depois, elencou alguns “mas”. “Eu estou de acordo, mas o o que se passa é que há pessoas que analisam este artigo de maneira diferente, alguns do ponto de vista semântico, outros do ponto de vista da adoção de crianças e a responsabilidade familiar, e há outros elementos tradicionais que marcam o pensamento de algumas pessoas”, acrescentou.
A posição do Presidente era, pois, de meio-termo — e foi a meio-termo que a questão ficou na Constituição de 2019. Por pressão de alguns setores mais conservadores, em particular das igrejas evangélicas, que fizeram campanhas públicas e abertas de promoção do casamento como sendo exclusivo para casais heterossexuais, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não foi levado à Constituição.
A proposta que vai a votos abre, porém, espaço a que o casamento homossexual seja discutido dentro de dois anos e alvo de um referendo nacional. “Atendendo aos resultados da Consulta Popular realizada, a Assembleia Nacional do Poder Popular irá, no prazo de dois anos de vigência da Constituição, iniciar o processo de consulta popular e referendo do projeto de Código de Família, no qual deve figurar a forma de constituição do casamento”, diz o novo texto.
Seja como for, o projeto constitucional que vai a votos este domingo afirma, no Artigo 42, que “todas as pessoas são iguais perante a lei” e que, por isso, não podem ser discriminadas, inclusive pela sua “orientação sexual” ou “identidade de género”.