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Entrevista ao escritor americano Colson Whitehead, que lança agora o seu novo livro "Ao Ritmo do Harlem", um romance sobre a desigualdade e injustiça, que faz também referência ao bairro nova-iorquino do Harlem. 27 de Setembro de 2022 Fundação Luso-Americana - Para o Desenvolvimento, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Regressar a Nova Iorque com um novo ritmo na escrita: dancemos no Harlem com Colson Whitehead

Uma saga familiar com traços de policial e humor à mistura: "Ao Ritmo do Harlem" é um novo caminho para o autor norte-americano, vencedor de dois Pulitzer. Em Lisboa, apresentou-nos o novo livro.

Um americano mata um birmanês. Um americano, negro, soldado raso, esmaga a cabeça a um jornaleiro birmanês, efeminado, alvo de chacota por parte dos oficiais que conduzem o batalhão norte-americano na tarefa impossível de construir uma estrada no meio da selva para ligar a Índia à China. Não foi na sua Newark natal, mas nos bastidores da II Guerra Mundial, aquando da Campanha da Birmânia, que Pepper cometeu o seu primeiro homicídio.

A noite estava escura, era a época do fim das monções e o instinto de Pepper nem sequer permitiu pô-lo à prova sobre a moralidade do que estava a fazer. Fez e pronto. “Os miolos do tipo estavam espalhados na lama, quando Pepper deu com ele. As calças puxadas até aos joelhos.” Limitou-se a acabar-lhe com a miséria, não havia um hospital para trabalhadores nativos nem haveria responsabilização alguma caso relatasse o incidente.

Pepper não é a personagem central do novo livro de Colson Whitehead, que por cada um dos dois romances anteriores – Os Rapazes de Nickel (2020, Alfaguara) e A Estrada Subterrânea (2017, Alfaguara) – ganhou um Pulitzer. Pepper não é a personagem principal de Ao Ritmo do Harlem, a personagem principal é Ray Carney. A um nível macro, até o é o Harlem, um dos cinco bairros de Nova Iorque, aqui com cenário montado entre o final dos anos 50 até meados dos 60. O romance divide-se em três partes: 1959, 1961 e 1964.

As personagens secundárias deste livro servem para, de algum modo, nos ajudarem a definir o que Carney não é. Pepper vem do mesmo contexto social, humilde, feito de pequenos vigaristas que encontram na criminalidade a definição da sua existência e a âncora da sua sobrevivência. Se Pepper matou sem hesitar, Carney seria ultrapassado pela sua vacilação. Filho de um ladrão de pequena monta, Carney conseguiu almejar a ser dono de uma loja de venda de mobiliário no Harlem. Sem mãe desde cedo, formou ele próprio família. Tem uma filha e vem outra a caminho. Os pais da mulher, Elizabeth, consideram que a filha teria conseguido partido bem melhor.

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A capa de "Ao Ritmo do Harlem", a edição portuguesa do novo livro de Colson Whitehead (Alfaguara, 408 páginas)

Carney encontra-se sempre num lugar impossível, a sofrer com as dores inerentes a ter cada pé em mundos antagónicos, o do privilégio e o de todo o resto: quer ser um homem de negócios respeitável, mas não deixa de vender na loja produtos roubados pelo primo. Uns biscates por fora, inofensivos, diria.

O acaso encarrega-se de metê-lo no meio do furacão. O primo envolve-se num assalto a sério, ao hotel Theresa, à época o hotel de luxo onde os negros endinheirados se hospedavam. Lembremo-nos de que, dois anos antes, em 1957, o presidente Eisenhower tinha destacado tropas federais para Little Rock, Arkansas, para assegurarem que nove estudantes negros pudessem entrar no liceu e frequentar as aulas.

Sempre sem querer estar necessariamente dentro, mas sem se impor perante o primo de que está fora destes esquemas criminosos (até porque o dinheiro a entrar com a venda de mobiliário não abunda), Carney dá por si envolvido no assalto, perpetrado pelo primo, por Pepper, por Arthur e por Miami Joe. E Arthur aparece morto. Quem o matou? Os italianos da máfia local? Algum cliente do hotel com negócios no submundo? Alguma traição interna ao grupo?

O autor, repetimos, é Colson Whitehead, filho de Manhattan e formado em Harvard. E é com Colson que conversamos, num encontro que acontece na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), em Lisboa, horas antes do lançamento do livro. A sala é anulada pela imponência da luz outonal do sol lisboeta e do seu reflexo no rio Tejo, cuja vista é apenas mediada por uma mancha verde de jardim.

E é assim em "Ao Ritmo de Harlem", como nas ruas desse mesmo bairro. “Há brincadeiras, há piadas, mas estão coisas sérias a acontecer ao mesmo tempo. Como em muitos lugares”, diz. “No Harlem, as pessoas tentam viver esperançosas, mas, ao mesmo tempo, cada fachada de loja, cada esquina de rua, tem a sua história secreta.”

Dancemos o shuffle no Harlem

O título em inglês, Harlem Shuffle, foi buscar o nome a uma canção da dupla Bob & Earl, que integra o álbum, de 1963, com o mesmo nome (e que foi alvo de muitas revisões). O início desta música veio a ser usado como sample no clássico do trio de hip hop House of Pain, a canção “Jump Around”. Quer numa quer noutra, esta linha de sopros serve de prelúdio à própria canção: o jogo vai começar.

“A letra desta canção é acerca de uma dança, de mover-se para a esquerda, de mover-se para a direita”, explica Colson Whitehead, referindo-se ao excerto “You move it to the left, yeah and you go for yourself/ You move it to the right, yeah if it takes all night”. Há também a versão dos Rolling Stones, de que Whitehead não gosta tanto. “Na versão original, apesar de a letra ser muito leve, os arranjos musicais são muito soturnos. Os sopros são muito descoordenados, as cantoras do coro soam sinistras. Apesar de haver leveza na letra, a música é muito obscura e inauspiciosa.”

E é assim em Ao Ritmo do Harlem. “Há brincadeiras, há piadas, mas estão coisas sérias a acontecer ao mesmo tempo. Como em muitos lugares”, diz. “Nas ruas do Harlem, as pessoas tentam viver esperançosas, mas, ao mesmo tempo, cada fachada de loja, cada esquina de rua, tem a sua história secreta.”

Com a leveza estrutural de um policial, mas que encerra, na verdade, uma complexa saga familiar, a história de Ao Ritmo do Harlem é escrita com uma fluidez que, apesar dos saltos, temporais ou geográficos, acontecimentos ou memórias, nos fazem mergulhar no livro e lê-lo de uma assentada. Parte da pesquisa passou por encontrar momentos e lugares da História de Nova Iorque que servissem a narrativa.

Entrevista ao escritor americano Colson Whitehead, que lança agora o seu novo livro "Ao Ritmo do Harlem", um romance sobre a desigualdade e injustiça, que faz também referência ao bairro nova-iorquino do Harlem. 27 de Setembro de 2022 Fundação Luso-Americana - Para o Desenvolvimento, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

“A meio de Ao Ritmo de Harlem, apercebi-me de que me deparava com mais e mais histórias. Gosto das personagens, daquele mundo. Num segundo livro, terão direito a mais páginas", revela Colson Whitehead

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“O hotel Theresa desempenha um papel importante na primeira parte, mas, antes de começar o livro, não tinha qualquer ideia acerca da história daquele local”, explica Whitehead. “É um edifício alto, na 125th street, já passei por ele muitas vezes. Não tinha ideia de que nos anos 50 e 60 era um lugar de glamour, muito famoso. Foi divertido encontrar lugares de Nova Iorque, do Harlem, com uma espécie de história perdida.” Fala-se também muito em mobiliário, os modelos, os materiais, as tendências. Carney é um vendedor entendido. “Independentemente de seres ou não fã, há sempre imagens no Pinterest que podes ver. Há catálogos inteiros de mobiliário do Harlem de meados do século [XX], deste fabricante, daquela marca.”

Colson Whitehead acrescenta ainda que aproveitou para roubar nomes e adjetivos, descrições. “Finalmente, há também a linguagem do mundo do crime. Há livros como Junky, de William S. Burroughs”, diz, acerca do primeiro e mais autobiográfico romance daquele escritor americano, referência da geração beat (1914-1997). “Ele prostituía-se, era pedinte e ladrão na Nova Iorque dos anos 40 e 50. Há calão fantástico, nesse livro.” A história de vida do gangster afro-americano Bumpy Johnson, nos anos 50 e 60, serviu também de inspiração. Whitehead leu o livro de memórias que a mulher de Johnson, Mayme Hatcher Johnson, escreveu, intitulado Harlem Godfather: The Rap on My Husband, Ellsworth Bumpy Johnson.

Depois de “Os Rapazes de Nickel”

Colson Whitehead estava já a tirar notas, a planificar Ao Ritmo do Harlem, quando o colocou de parte e começou a trabalhar em Os Rapazes de Nickel. “Tinha Ao Ritmo do Harlem e Os Rapazes de Nickel, e Os Rapazes de Nickel parecia mais irresistível”, explica. “Os Rapazes de Nickel lidava com: devo ser pessimista ou otimista em relação ao rumo que este país está a levar?”, diz, referindo-se ao momento que os Estados Unidos estavam a viver, a era Trump.

Os Rapazes de Nickel conta a história de dois jovens, Elwood Curtis e Jack Turner, encarcerados num reformatório masculino, inspirado na Arthur G. Dozier School for Boys, na Florida, cujas atrocidades cometidas aos alunos institucionalizados vieram a lume aquando de uma investigação levada a cabo pelos jornalistas Ben Montgomery e Waveney Ann Moore. Elwood via o mundo de forma otimista, Jack de forma sarcástica. Em entrevista, Whitehead chegou a referir tratarem-se de duas partes do seu eu.

Agora, em Ao Ritmo do Harlem, o otimista e o sarcástico, o idealista e o realista, fundem-se numa alma só. Carney é uma personagem mais leve, mas mais dividida, mais indecisa. “Depois de A Estrada Subterrânea e Os Rapazes de Nickel, estava disponível para algo mais leve, não tão sombrio. Algo em que pudesse acomodar o meu estranho sentido de humor. Definitivamente, Ao Ritmo do Harlem foi o projeto certo, depois de Os Rapazes de Nickel.”

“Depois de A Estrada Subterrânea e Os Rapazes de Nickel, estava disponível para algo mais leve, não tão sombrio. Algo em que pudesse acomodar o meu estranho sentido de humor. Definitivamente, Ao Ritmo de Harlem foi o projeto certo, depois de Os Rapazes de Nickel.”

Ao Ritmo do Harlem acabou de ser escrito a apanhar ainda dois meses de confinamento, devido à pandemia. Vai ser o próximo livro a ser editado e faz
parte de uma trilogia que vai dar continuidade à vida de Carney. Esse sim foi todo escrito em contexto de confinamento. “Significou que, em vez de trabalhar das dez às três da tarde, fazia um intervalo e começava de novo às quatro (até às sete). Tinha dois turnos, nesses dias, uma vez que não podia ir a lado algum.”

O escritor revela ainda que os danos pandémicos em termos laborais traduziram-se no facto de não se interessar por nada que não fosse crime ou relacionado com Nova Iorque. As leituras por lazer diminuíram, via televisão durante horas.

Whitehead não quer revelar muito acerca desta nova história. Decorre em 1971, 1973 e 1976. Este último ano, 1976, assinala o bicentenário da independência dos Estados Unidos. “Nova Iorque é muito diferente nos anos 70 face àquilo que foi nos anos 60. O crime é muito desenfreado, a cidade está em bancarrota, a polícia faz greve. Há, por exemplo, a greve do lixo, de que falo um pouco em Os Rapazes de Nickel.” Já o terceiro livro da trilogia vai situar-se nos anos 80. “A meio de Ao Ritmo do Harlem, apercebi-me de que me deparava com mais e mais histórias. Gosto da personagem [Carney], daquele mundo, gosto das personagens secundárias, Pepper, Zippo, Elizabeth. Neste segundo livro, terão direito a mais páginas.”

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