O mais provável é que quando este texto acabar vocês sintam algum ódio por mim, o que em geral me parece profundamente sensato, mas (se me permitem) não neste caso – de modo que enquanto esse momento não chega vamos debater um pouco de semânica: toda a gente conhece a expressão “Elefante na sala” mas nunca ninguém ouviu falar de “Dor explícita na sitcom”, e é mais que tempo de repor essa injustiça. Elefante na sala é uma imagem que significa que há um problema demasiado grande para ser ignorado; dor explícita na sitcom significa que, no decorrer de uma comédia, há demasiada menção a dor para podermos deixar de concluir que, muito possivelmente, a comédia tenderá (eventualmente) a abordar questões sobre dor.
Isto a propósito de “After Life”, a nova série de Ricky Gervais, um homem com múltiplos talentos – entre os quais nunca se incluiu a subtileza. Gervais é o autor desse monumento chamado “The Office”, um exemplo de precisão impiedosa na observação do que o ser humano comum tinha de mais embaraçante à conta da combinação entre obsessão narcísica e falta de noção. “After Life” é outro tipo de coisa – e, para resumir, onde “The Office” espetava a faca, “After Life” faz de conta que esfola.
[o trailer de “After Life”:]
Um homem perde a vontade de viver depois da morte da sua companheira, o que, traduzido só para os primeiros minutos do primeiro de seis episódios e incluindo uma imensidão de spoilers (porque eu não sou tão boa pessoa quanto este Tony que passa a vida a tentar ser má pessoa), significa que (SPOILER): logo após vermos o vídeo que a falecida deixou ao seu amado, Tony (o viúvo protagonizado por Ricky Gervais) descobre que só tem uma lata de feijão e uma lata de caril de vegetais para comer em casa e uma das latas tem de ir para a cadela; tem a loiça toda por lavar – e assim permanecerá até ao terceiro episódio; insulta um tipo que o informa que a cadela devia estar com trela; trata mal o moço do correio; chama “ginger cunt” a um garoto – mas vá, o garoto chamou-lhe pedófilo; uns episódios à frente vai ameaçá-lo com um martelo.
Na cena seguinte, Tony está no psiquiatra, que lhe conta que tem um cliente que se masturba enquanto pensa em matar a mulher; e, como se tudo isto não fosse suficiente, Tony passa por uma banca de jornais em que se vê uma primeira página acerca de uma velhinha de 93 anos que – a senhora da papelaria informa Tony – foi mutilada “for life”. Tony sente-se compelido a corrigir:
“Mas não foi for life, pois não? Se ela viver até aos 100 são só 7%”.
(Esqueci-me de avisar que vinha novo spoiler.)
Isto tudo, repito, passa-se em cinco ou seis minutos, no máximo e é a forma subtil de Gervais nos informar que Tony sofre – ou de nos esfregar o sofrimento de Tony na cara. Tony, entretanto, chegou ao jornal local em que trabalha, sentou-se em frente ao seu ao cunhado (que é também seu chefe) e este diz-lhe que ele não pode continuar a tratar mal toda a gente, porque (e isto é uma frase que todas as personagens repetirão ao longo dos seis episódios) toda a gente tem problemas. Que faz Tony? Responde ao cunhado que irá continuar a ser bostinha, porque como o cunhado é boa gente nunca o despedirá, de modo que Tony pode fazer o que quiser.
O que aqui temos é um dispositivo semelhante ao de “Curb Your Enthusiasm”, escrito pelo genial (e pai de todos nós) Larry David, o criador (e força motriz) de “Seinfeld”: como Costanza (em “Seinfeld”) ou Larry (em “Curb Your Enthusiasm”), Tony diz o que não pode ser dito, o que por norma pensamos e recalcamos – e de preferência di-lo no pior momento. Mas com uma diferença fundamental: David tem uma regra de ouro, que explicou aos seus argumentistas em “Seinfeld” e manteve em “Curb”: “No hugging, no learning”. Mais que recusar a redenção era uma recusa da lamechice.
Em “After Life” estamos sempre à espera do momento da redenção – que mais não seja porque TODA A GENTE passa o tempo a dizer a Tony que no fundo ele é boa pessoa; pelo caminho temos de atravessar montanhas de misantropia que soa forçada, no sentido em que Tony, sendo meio parvo, não ofende assim tanto (se acham que Tony ofende convido-vos a telefonarem-me antes das 10 da manhã ou a verem a minha reação quando alguém pronuncia as palavras quinoa ou mindfulness).
Se a pornografia é pornografia porque o seu cerne consiste em mostrar o acto de modo a que as pessoas computem a equação “órgão genital + órgão genital + fluído = sexo real”, então “After Life” é um pouco pornográfico porque está sempre a exibir a dor daquele homem, sem que nós tenhamos espaço para imaginar o que a dor operou nele, como é que Tony voltará a respirar sem sinusite existencial – o que temos é uma sequência de situações em que Tony trata mal indivíduos e o resto da humanidade lembra a Tony que, no fundo, ele é bonzinho e está só a sofrer.
Não que todos os momentos em que Tony insulta ou ofende alguém sejam gratuitos – uma boa parte dessas situações enquadram-se num tropo típico da comédia, a irritação aparentemente irracional mas que no fundo revela que a pessoa irritada é mais racional que o bom senso que o resto da humanidade exibe. Quando o cunhado o convida a ir almoçar ao restaurante onde vão todos os jornalistas, Tony aventa a hipótese de não serem bem jornalistas, tendo em conta que o que fazem é reportar histórias como a de o senhor que tem uma mancha de humidade na parede que lembra o rosto de Keneth Branagh.
(Um excelente momento de comédia na série e um ótimo momento de spoiler neste texto. Sendo que eu não estou a sofrer, até estou a ter um certo prazer com isto.)
O problema com este dispositivo é – como diria Bruno Aleixo – dois: o primeiro é que há pouco disto em “After Life”, que é uma comédia dramática boazinha; o segundo é que não raro estes momentos servem para Tony demonstrar que tem neurónios ativos, por oposição às restantes personagens, que estando ocupadas a serem apenas uma caricatura não têm tempo para exercitar o cérebro.
Exemplo um: uma colega de Tony pergunta-lhe porque é que ele não acredita em Deus; Tony responde “Qual deles?”. Outro exemplo: uma senhora que em tempos idos pessoas sem coração poderiam qualificar como gorda é atravessada por um prego; de modo a dita senhora potencialmente anafada conclui que, como o prego não atingiu nenhum sinal vital, foi a gordura que lhe salvou a vida; Tony faz questão de lhe dizer que se ela fosse magra o prego não lhe tinha acertado.
São estes prodígios que rodeiam Tony, o que eventualmente explica que toda a gente perdoe as suas barbaridades e conclua que no fundo Tony é uma ótima pessoa mas que ESTÁ A SOFRER e ainda não reparou que TODA A GENTE TEM PROBLEMAS. Talvez achem que estou a denegrir esta galeria de personagens mas não estou – e talvez apenas duas personagens, a viúva que Tony encontra com regularidade no cemitério e a enfermeira do pai (que sofre de Alzheimer e não reconhece Tony, para sua sorte), parecem ter sido acometidas de algum bom senso e conseguem produzir algumas frases que não dão sinais de terem sido criadas por seres vítimas de lobotomia parcial.
Isto significa que estamos em 2019: já houve “Seinfeld”, “Office” e “Curb Your Enthusiasm” – já não é qualquer homem irritado e com falta de empatia humana que nos faz rir. Gervais suprime alguma da sua maldade natural (que lhe dava tanto charme) em favor de uma série de fórmulas que visam a felicidade e que não se podem qualificar como muito credíveis. A dado momento Tony diz que depois da morte da mulher quis atirar à cara das pessoas os defeitos delas e que isso era como um super-poder; mas que isso só o deixava mais infeliz. E daqui Tony conclui que boas pessoas não fazem coisas más por mal, as ações das boas pessoas são boas, etc.
“After Life” não é propriamente uma má série – é apenas que aborda temas complexos de forma simplista. No mundo é tudo muito mais complicado que isto – boas pessoas têm ciúmes e inveja e são agressivas de forma gratuita; se eu tratar a Manuela e a Francisca exatamente da mesma maneira, há uma boa chance de a Manuela ficar incomodada e a Francisca feliz. Boas pessoas, muito possivelmente, não existem – são apenas simples pessoas que nunca se viram em circunstâncias de ferir alguém. O mundo é composto de muitas camadas de cinzento e Gervais demorou seis episódios a saltar do negro para um arco-íris implausível.
Não se limpam nódoas de café com ácido sulfúrico e a morte não se apaga com diluente. Gervais quer ser popular e ser amado, e está no seu direito; quer que sejamos boas pessoas – e tem razão, devemos esforçar-nos por ser. Mas não nos tornamos bons por pensar de forma simplista. Essa é a ilusão de quem desistiu de olhar em seu redor e compreender que a paleta moral dos seres humanos é ampla não existe um absoluto do que é ser bom. Essa demanda é muito mais difícil, muito mais trabalhosa, muito mais penosa (e muito mais nobre) do que Gervais dá a entender em “After Life”.
Podem odiar-me agora.