A energia contagia. O amor também. É como os brasileiros dizem: “gentileza gera gentileza”. O Maracanã foi o camisola 10 do mundo inteiro durante quatro horas. Teve tudo, aqueceu todos, emocionou muitos. Ritmo, ancas desassossegadas e pedalada. Teve Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chicão. Teve Elza Soares, Zeca Pagodinho e Jorge Ben Jor.

A cerimónia de abertura teve História e uma “Garota de Ipanema”, que, triunfante, caminhou até Tom Jobim. Teve Bossa Nova, pop e 12 escolas de samba. Teve uma inédita equipa de refugiados ovacionada por quase 90 mil pessoas. Nem sequer faltou Wilson das Neves, um dos mestres do samba. Teve um povo brasileiro orgulhoso de si, sabendo de cor que o seu país é inferno e céu ao mesmo tempo. E isto tudo, que não foi pouco, foi apimentado com uma certa justiça poética: Vanderlei Cordeiro de Lima agarrou a tocha e acendeu a pira. No fim, depois de um fogo de artifício majestoso, que parecia bailar ao som da música, os da casa entoaram: “Sou brasileiiiiiiro, com muito orgulho, com muito amooooooor”. Foi bonita a festa, pá…

Quando muitos esperavam um Maracanazo, que significa uma desgraça divina no mítico relvado do Maracanã (aconteceu no futebol, em 1950), tudo rolou “beleza”. O jeito carioca é assim, devagarinho, despreocupado, sossegado e desapegado. Especial. “Não é a linha reta, dura e inflexível, feita pelo homem, que me atrai. O que me chama a atenção é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, nas margens dos meus rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher amada.” A frase de Oscar Niemeyer, o maior dos maiores arquitetos brasileiros, poderia muito bem vestir o Rio de Janeiro. Livre e sensual.

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Tudo começou com “Aquele Abraço” de Gilberto Gil, pela voz de Luiz Melodia. É um hino em jeito de despedida, que diz respeito à altura em que Gil seguiu para o exílio, no final dos anos 60. Entre o drama da ditadura militar para um recuo na história do país, até à invasão dos portugueses, foi um tirinho. Curiosamente, pelo meio, mostrou-se o símbolo da paz, que depois se transformou em árvore. ve seja, o Brasil quer estar em paz com o ambiente, com a floresta, com a flor, com a folha. Quer combater o aquecimento global. Foi esse um dos principais temas da cerimónia: a mão na consciência e o aviso para a tal verdade inconveniente. O homem está a destruir o planeta.

Tocou então o hino brasileiro, com Paulinho da Viola no centro desta novela, para preparar o primeiro momento em que se engole em seco. Ver ali, diante dos nossos olhos, uma representação da ocupação portuguesa do território brasileiro não é um passeio no parque. Um gole em seco maior ainda acontece quando se vê homens negros, musculados, a trabalhar arduamente no campo, enquanto se ouve o arrepiante som do chicote. A escravatura. Aquilo não é só uma coreografia, é um “nunca se esqueçam”. A pele de galinha às vezes dava à costa, como deu o Navio Escola Sagres na Baia de Guanabara, para receber o Presidente da República português há um par de dias. Antes desse capítulo desgostoso, emocionante e poderoso, homenageou-se os indígenas e a densa floresta que existia antes de os europeus chegarem à Terra de Vera Cruz.

Michel Temer, o presidente brasileiro que sucedeu Dilma Rousseff, era suposto ser chamado no início, mas omitiram o seu nome. O guião avisava que ele iria surgir mais uma vez, a solo, para dar o pontapé de saída dos Jogos. Eram 40 segundos, supostamente, ele tentou em dez, mas foi abafado pelos assobios. Aquele momento pouco glorioso foi salvo por mais um fogo-de-artifício.

A voz de Chico Buarque aterrou no Maracanã pouco tempo depois, para aligeirar os ânimos. Mais uma vez, celebrou-se a liberdade, lembrando Chicão quando este compôs “Construção”, em memória ao seu retorno do exílio em Itália, em 1970. Construía-se uma cidade, uma série de blocos que prometiam o abismo, mas que acabavam vencidos pelos mortais dos acrobatas. A coragem brasileira ia sendo desvendada. O verde ia sendo derrubado também, enquanto o betão ganhava protagonismo. A favela espreguiçou-se e subiu para apalpar o céu. As pessoas deliravam.

A “Garota de Ipanema” desfilou depois, em direção ao sorriso malandro de Tom Jobim, um carioca nascido em 1927, que iluminou a Bossa Nova, com músicas como “Águas de Março”, “Wave”, “Chovendo na Roseira” e “Corcovado”. A garota era Gisele Bundchen. E que garota. O caminhar era perfeito, impossível. O sorriso encaixava na cidade maravilhosa, era um Tetris fácil de mais, com o Cristo Redentor lá em cima, piscando o olho ao que se passava na casa do Flamengo.

Ouviu-se depois passinho, funk, samba e MPB, tudo no mesmo gira-discos, com um tempinho legal para cada um. Foi alucinante, com um jogo de cores mágico. Os bailarinos tinham pilhas que não acabavam. O povo brasileiro, e o resto do mundo naquele estádio, estava ao rubro, satisfeito, saciado. Orgulhoso. Isto é Brasil. Elza Soares, a diva considerada pela BBC como a melhor cantora do milénio, encantou. Marcelo D2 e Zeca Pagodinho idem.

Um dos momentos mais impressionantes ocorreu quando 1500 dançarinos saltaram para o palco e protagonizaram um bailado difícil de seguir. Um caos organizado. Uma tresloucada aventura carioca. Livre e sensual, certo? Tocava o “País Tropical” de Jorge Ben Jor, que deixou célebre a frase “vamos procurar as semelhanças e celebrar as diferenças”. Quem passeia na Carioca, na Lapa, na Uruguaiana, seja por onde for, assina por baixo as palavras sábias do senhor “Mas que nada”.

Mais ou menos 50 minutos depois do arranque da cerimónia, chegou a altura das estrelas serem as estrelas. Estava na hora dos atletas. A língua francesa é a oficial dos Jogos Olímpicos, mas o que conta, para a entrada das comitivas, é a língua do país organizador. Por isso, senhores, seria em português a ordem alfabética. E duraria quase duas horas. Chega a ser penoso, pois depois de arranque tão eletrizante custa baixar tanto a frequência. Mas são os 15 minutos de fama de cada país. Foram quatro anos a trabalhar no duro para chegar ali. É mais do que justo. O maior desafio é perceber os apoios e apupos da torcida. E aqui aconteceram coisas curiosas…

Alemanha e Angola receberam ovações satisfatórias. Ainda antes de o speaker anunciar o país, quando o povo nas bancadas viu a bandeira da Argentina ali a esticar a cabecinha para fora do túnel, ouviram-se muitos assobios. Impossível não esboçar um sorriso. Não perdoam.

A Colômbia tinha muita gente nas bancadas. Ou então havia muitos brasileiros encantados com o país de Sofia Vergara. O Canadá e China também obtiveram nota positiva nos decibéis. Mais surpreendente foi o muito apoio a Cuba. Na hora da entrada da Palestina, o público dividiu-se. O mesmo aconteceu com a Rússia, que tem estado sob os holofotes devido ao escândalo de doping.

E chegou o “P”. Está quase, está quase. Já íamos com hora e tal, a fadiga já beliscava o corpo. Já se suspirava por café ou bebidas com açúcar para abrir a pestana. As cadeiras não eram as mais confortáveis. Faltava um incentivo, um sinal. Afinal, estamos no Maracanã, okay? E ali surgiu ela, a bandeira bonita, vermelha-sangue e verde-esperança. Ouve-se um irresistível “Portugaaaaau”, num português com sabor a água de coco. João Rodrigues erguia a bandeira bem alto, sorridente, vaidoso. Foi uma das comitivas mais divertidas, estão de bem com a vida. Estão serenos, motivados. Há energia naquele grupo. Há curvas livres e sensuais.

Portugal's flag bearer Joao Rodrigues leads the delegation during the opening ceremony of the Rio 2016 Olympic Games at the Maracana stadium in Rio de Janeiro on August 5, 2016. / AFP / Leon NEAL (Photo credit should read LEON NEAL/AFP/Getty Images)

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A seguir ao segundo desfile mais sedutor da noite — sim, o primeiro é de Gisele, que encerrou esta noite a carreira –, seguiram-se os aros olímpicos, que vestiam a pele de arbustos, naquela que foi mais uma associação à natureza.

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Esta cerimónia, que se prolongou por quatro horas sensivelmente, teve algo a seu favor, embora isso tenha significado uma ausência de peso: Pelé não podia levar a tocha ao seu destino, por isso pairou no ar a dúvida de quem seria. E o povo foi feliz, mais uma vez. Guga, ou Gustavo Kuerten, foi o primeiro a dar uma fugidinha com a tocha que ardia. A meio do caminho, o ex-tenista fez um passing shot para Hortênsia, uma senhora com nome pesado no basquetebol brasileiro. Bom, bom, foi o que aconteceu a seguir: tocha na mão de Vanderlei Cordeiro de Lima.

Em 2004, Vanderlei seguia na frente da maratona dos Jogos Olímpicos, quando um ex-padre cometeu o pecado de invadir o seu palco e abalroá-lo, obrigando-o a quebrar. Perdeu dois lugares, mas correu para a meta aos “S”, satisfeito da vida, como se corresse para o ouro. Esta cerimónia teve tudo: a História, as histórias que desmontam este país, o ritmo das mil e uma formas de (re)inventar o Brasil. Mas teve também este ato mágico de justiça poética. Vanderlei merecia ser olhado como um herói pelo povo, que o aplaudiu em êxtase. Como diria Guga depois do evento, “ele não tem ouro, mas tem…”

Former Brazilian athlete Vanderlei Cordeiro de Lima lights the Olympic cauldron with the Olympic torch during the opening ceremony of the Rio 2016 Olympic Games at Maracana Stadium in Rio de Janeiro on August 5, 2016. / AFP / Thomas COEX (Photo credit should read THOMAS COEX/AFP/Getty Images)

Vanderlei Cordeiro de Lima, o herói da tocha olímpica que emocionou o mundo em 2004 (THOMAS COEX/AFP/Getty Images)