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(c).RuiCarlosMateus.1954

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Rita Cabaço pergunta: "Gostava de ser boa, mas como é que pago a renda?"

A pergunta não é da atriz, é da personagem que interpreta em “A Boa Alma de Sé-Chuão”, de Brecht, no Teatro de Almada. Mas onde acaba a ficção e começa a realidade? Uma entrevista antes da estreia.

Em “A Boa Alma de Sé-Chuão”, Rita Cabaço é Chen Te, uma prostituta que acolhe três deuses que vieram em busca de uma pessoa boa num mundo mau. Só que tanta foi a bondade, tanto foi o abuso do que não tinham, que Chen Te teve de criar um alter-ego, um primo chamado Chui Ta, um empresário capitalista implacável. Assim se dança neste universo de Brecht, onde parece não dar para ser boa pessoa.

Já Rita Cabaço, acredite, é uma ótima pessoa. É uma atriz talentosa, com discurso político, com desejo de fazer diferente. É co-fundadora do Teatro da Cidade, tem um Prémio da Crítica, um Prémio da SPA e um Globo de Ouro – onde sempre fez discursos críticos e desalentados com o meio onde se insere. E tem muita vontade de repensar o “modelo de direito à cultura”. De tal forma que sugere que um dia tudo fosse grátis. Caso para dizer que a utopia comanda a vida. E sempre deu excelentes atores. “A Boa Alma de Sé-Chuão”, um espectáculo de teatro que é quase um concerto de rock, com encenação de Peter Kleinert, estreia esta sexta-feira, dia 19, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, e está por lá até dia 11 de Novembro.

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Interpreta uma prostituta que dá abrigo a três deuses sem pedir nada em troca. Era capaz para albergar três deuses em casa?
Não tenho muito espaço em casa, somos quatro e um cão. Mas era menina para albergar alguém que precisasse de um quarto e não tivesse onde ficar, mas acho que ver uma pessoa a dizer “olha, não tenho sítio para ficar” não é fácil. Claro que estamos cheios de preconceitos e de medos e então acolher uma pessoa que não conhecemos é uma grande questão. Por um lado, a resposta imediata é “sim, claro”, por outro é… “será que ele me vai fazer mal?” Não sei de onde é que ele vem”.

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Pode roubar as joias.
Exato, neste caso era a loiça da cozinha, mas sim. Acho que aceitaria, ainda que também tenha este género de receios.

E se essa pessoa fosse como a figura destas deuses, bem parecidos e bem vestidos, que não parecem assim tanto precisar de um teto…
Pois, se calhar questionava.

Que tal praticar um preço à Airbnb?
Pois é, há essa questão do alojamento local. Mas, como não teria espaço, como iria oferecer o sofá, não ia cobrar por aquele sofá, porque não há condições para isso.

São três deuses à procura de uma pessoa boa num mundo mau. Ainda acredita nesta ordem?
Pessoas boas num mundo mau ou um mundo bom cheio de pessoas más? Bela questão. A Chen Te diz uma coisa que é “a culpada de tudo é a miséria”. Acho que a culpa de como tudo isto anda é a miséria e a ignorância, a ignorância é perigosíssima. A ignorância é a culpada dos Trumps da vida e dos Bolsonaros da vida. A miséria, porque uma pessoa vendo-se sem nada agarra-se a tudo o que tem, seja de que forma for. E depois, alguém que esteja disposto a ajudar, como a Chen Te, que à partida quer dar sem receber nada em troca, mas que é confrontada com o abuso.

Ela chega a dizer: “Eu gostava de ser boa, mas como é que eu hei de pagar a renda?”
Exatamente, imediatamente temos pensamentos bons, mas depois entram questões quotidianas e fúteis, e que nos obrigam a pensar de outra maneira. E este Chui Ta, que de repente surge, é um bocadinho isso, é a necessidade que ela tem de pensar de uma maneira mais racional.

Revê-se nessa possibilidade de criar um alter-ego para ser uma pessoa mais implacável?
Não… acho que todos temos isso.

Fazemos isso sem um alter-ego?
Sim, se não fosse assim, caramba, toda a gente abusava de nós. A questão que a peça levanta é: podemos ser bons para nós e para os outros ao mesmo tempo? Somos bons para os outros e acabamos por nos prejudicar. Para sobreviver neste mundo mau precisamos de ser frios, “olha, gostava muito de ajudar, mas não vai ser possível”.

Esta peça, se simplificarmos a questão, resume a vida a duas opções: ou somos humildes ou somos capitalistas.
Mas como é que se é só uma coisa ou só outra? Quando surge o dinheiro, a possibilidade de progressão na vida? Porque ela é prostituta.

"Uma pessoa não é só capitalista, nem é só humilde, estamos cheios de outras coisas, não quero que ela seja só generosa e que ele seja só terrível. Eles têm que ser humanos, têm que ter essas contrariedades."

E a seguir é um empresário capitalista implacável.
Exatamente. E acaba por ficar nesse empresário, porque percebe que neste mundo não há outra opção. Se existisse uma continuação acho que ela teria o bebé, mas não voltaria a ser Chen Te, tudo aquilo que ela passou, com murros e enganos… ela vai ter dinheiro, o dinheiro corrompe as pessoas, já não voltaria, acho que não.

Como é que surgiu esta hipótese de trabalhar com o Peter Kleinert?
O Rodrigo Francisco [Director Artístico da Companhia de Teatro de Almada] ligou-me e disse-me que o Peter ia estar cá e ia fazer audições. E o Rodrigo fez-me assim uma pergunta ao telefone: “Olha, tu cantas?”. Disse logo que não cantava nada. E ele disse “ah OK, era só para saber”. Fiz a audição, fiz um excerto do texto e fui ficando. Depois, quando percebo que isto é um texto dentro de um concerto de rock, percebo que se calhar pus os pés pelas mãos, porque não é de todo uma linguagem onde me sinto confortável, sei lá, não sei cantar…

E teve aulas de canto para esta peça?
Não, não tive, acho que as pessoas vão perceber ao ver o espectáculo. Apesar de não me sentir confortável, não é algo que me assuste, confio muito no Peter e no Pedro [Melo Alves, diretor musical do espectáculo].

Como é que tem sido trabalhar com o Peter Kleinert? É um espectáculo louco, rápido, que deve ser estafante.
É estafante é. E acho que é, neste momento, o espectáculo mais difícil que já fiz. Outros, de certeza, já me convocaram outras coisas e exigências, mas este, por ser o espectáculo com que à partida me identifico menos, é o mais difícil de concretizar. Não é que tenha menos prazer, não sei como é que isto se faz, mas hei de descobrir, isso dá-me muito prazer. Em relação a ser rápido e tudo mais… no “A Estupidez”, o espectáculo que fiz com encenação João Pedro Mamede, tinha isso. Claro que o palco era mais pequeno, não fazia tantas piscinas, mas era igualmente louco, exaustivo e alucinante. Essa experiência está-me a ajudar muito aqui. Essas transições já não me preocupam.

O que a preocupa então?
Preocupa-me a complexidade desta personagem, que a meio cria uma outra mas que é a mesma. Uma pessoa não é só capitalista, nem é só humilde, estamos cheios de outras coisas, não quero que ela seja só generosa e que ele seja só terrível. Eles têm que ser humanos, têm que ter essas contrariedades. É um espectáculo grande, com muitas coisas, é preciso pensar em questões existencialistas dentro de um concerto de rock… pensar na bondade humana dentro de um concerto de rock… não é fácil.

Então o rock não é o som que mais a agrada.
Pois, está um bocadinho longe daquilo que costumo ouvir, oiço muita coisa, muita música brasileira, Caetano, Maria Bethânia… este rock nunca me disse muito. No entanto, adoro música em cena, uma banda ao vivo, acho que engrandece um espectáculo.

E o Brecht, agrada-a?
Agrada-me porque ele traz questões muito atuais. Depois tem outras que não me agradam tanto. Sinto, neste texto em particular, que o Brecht é um bocadinho machista e misógino.

Porquê?
Em muitas questões é sempre o homem a figura que vai resolver, é sempre superior. Ela está grávida e é logo um filho que vai nascer, é sempre a figura masculina. Ele tem que criar um homem para resolver as questões e para ter credibilidade. Levanto estas questões porque ainda estou a levantar comigo, se calhar ele até escreveu isto como provocação.

Antes disto esteve no CAL – Primeiros Sintomas, com “Que boa ideia, virmos para as montanhas”, criação do Teatro da Cidade, companhia da qual é co-fundadora. Correu bem?
Adorei fazer a peça, dizia-me muito aquele texto que o Guilherme [Gomes] escreveu. Mas acho que correu bem, não tivemos sempre salas cheias, mas foi quase, ou seja, quando não estava cheio andava sempre perto disso. Há a possibilidade de repormos o espectáculo e isso é o nosso objetivo, não queremos tê-lo feito e ficar por ali. Queremos arranjar digressões ao mesmo tempo que já estamos a pensar noutros. Como companhia ainda jovem, ainda não muito ágil, temos de ter a destreza de não deixar morrer um espectáculo que está feito e pronto. Temos que rodar, se for preciso durante anos, como fazem muitas companhias, é uma ótima forma do espectáculo continuar a ser rentável e de chegar ao maior número de pessoas. É isso que ainda nos falta.

Face ao Teatro da Cidade, esta realidade é bem diferente. Aqui está numa companhia que, apesar de ter levado um corte de financiamento sério, tem um edifício com estas valências e toda esta estrutura. Ainda não é demasiado louco formar uma companhia?
É louco, porque nos prestamos a maior parte das vezes a pagar para trabalhar. Mas não é louco porque criamos as nossas coisas, porque pensamos num projeto a longo prazo, que se calhar um dia vai ter um lugar, uma estrutura. É nosso objetivo poder ter um espaço. E aí surge outra questão: os apoios que existem hoje não têm que ser só financeiros, não tem que ser só dinheiro, a Câmara de Lisboa tem inúmeros espaços… não percebo… cedam, arranjem forma de se criarem protocolos para as companhias terem um espaço. E não só companhias, pessoas que queiram expor, ateliers, oficinas, no fundo, lugares que estejam abertos para se produzir arte.

Em casa consegue-se chegar a outros lugares, certo?
Claro, sem dúvida. Criamos o nosso espaço, não temos de alugar mais um espaço, gastar mais dinheiro, para ensaiar. É a nossa identidade, é um lugar que as pessoas já reconhecem, aquela casa é daquele grupo.

Já ganhou alguns prémios…
Sim, ganhei o Prémio da Crítica com o “Música” [São Luiz Teatro Municipal, encenação de Luís Miguel Cintra]. Ganhei o da SPA e o Globo de Ouro com “A Estupidez” [Culturgest, encenação de João Pedro Mamede].

Em todas estas ocasiões fez um discurso muito desalentado. Nos Globos de Ouro chegou a mencionar o Carlos Avillez, com quem deu os primeiros passos, ou gente como o Cão Solteiro, que ficaram arredadas dos subsídios da DGArtes. É importante utilizar estes momentos para falar destas questões?
Não temos espaço de antena no teatro. Não há câmaras, não há muita imprensa, então, se me estão a dar esse minuto, mesmo que seja com música por trás, não vou perder um minuto a agradecer às pessoas quando o posso fazer todos os dias, pessoalmente. Ali quero falar de questões que acho relevantes.

Levanta uma questão essencial que é o público não ter consciência ou não reivindicar o direito de acesso à cultura, que é seu, por lei.
Quando houve a problemática dos subsídios, o grupo de pessoas que se juntou, a comissão feita para falar com o Governo, esta questão também esteve presente. Agora, claro que é uma questão que não se ouve. Fiquei chocada nessa altura com as caixinhas dos comentários das pessoas… Fiquei muito desalentada, triste, dá vontade de…

"Se o público acha isto dos artistas, então mais vale não fazer... quer dizer, não é bem isto, mas perco as forças, isso perco."

Mudar de profissão?
Sim… claro que era incapaz, mas fiquei a pensar “então afinal para quem é que faço isto?”. Claro que isto também é para mim, mas fazemos para servir um público. Se o público acha isto dos artistas, então mais vale não fazer… quer dizer, não é bem isto, mas perco as forças, isso perco.

Voltamos à questão da ignorância como um problema sério.
Perigosíssima.

Ao mesmo tempo, sobretudo para uma camada da nossa sociedade, é legítimo que não se conheça esta coisa do direito à cultura, certo?
Concordo. Utopicamente falando… o Teatro da Cidade, os Auéééu Teatro e Os Possessos têm-se juntado muito, para falar. Temos falado enquanto amigos e enquanto companhias. E lá, utopicamente, claro, disse que gostava que um dia a cultura fosse grátis, tudo grátis.

E depois?
Claro, como é que eu como? Como é que pago a renda?

O ensino também é tendencialmente gratuito.
Pois, exatamente, sem ser os livrinhos, não é? Adorava um dia ter resposta, arranjar uma forma de ser sustentável para os artistas poderem não cobrar. As pessoas às vezes realmente não podem ir. E não é só isso, tem a ver com hábitos, perante aquele discurso do “são 7 euros, é o mesmo que ir ao cinema” convém pensar que as pessoas, eventualmente, escolhem filmes que não os vão cansar ainda mais depois de virem do trabalho e dos problemas diários. Acho que seria uma solução a cultura ser gratuita.

E isso não afastaria ainda mais as pessoas? Isto porque certamente que o que leu naqueles comentários foi que os artistas são subsidiodependentes. Se tudo fosse gratuito os subsídios teriam que aumentar significativamente.
Certo, mas as pessoas têm que saber que nós também comemos, os artistas também se alimentam. Nós estamos a arranjar os subsídios e as pessoas têm que pagar o acesso à cultura na mesma, aqui os subsídios cobriam as duas partes, era um modelo geral justo que gerasse esta possibilidade. Era a minha proposta.

Acha que teríamos os teatros cheios?
Acho que sim, nem que fosse aquele “epá, é grátis, deixa lá ver o que isto é”. E depois o hábito, porque é preciso criar uma rotina de ida, uma cultura.

Há uma nova ministra da Cultura.
Já sei, já sei. É mulher, foi uma das primeiras políticas a assumir-se como homossexual, claro que não tem nada a ver com cultura, mas antes com a força daquela pessoa. Resta saber se está atenta aos problemas da cultura, se sabe o que está a fazer. Mas fiquei com esperança que uma pessoa assim seja capaz de criar uma linha de diálogo.

Chega a esta peça como protagonista. A sua imagem é usada em outdoors, nos anúncios… como é que se sente com isto?
Espero que ninguém me leve a mal porque sei que o fazem porque confiam no meu trabalho, porque me reconhecem, são caminhos bons e que agradeço. Mas acho que já não se faz, já não se devia fazer, não é uma pessoa que vai trazer mais público ao espectáculo, é aquele grupo de pessoas naquele espectáculo. É algo com o qual não me identifico, por mim não se fazia.

Até porque as imagens podem enganar. Uma atriz com espaço no teatro português, reconhecida, com prémios, mas ninguém aqui faz vida de estrela…
Não, de todo. É tão bom e ingrato ao mesmo tempo. Vivo com mais três pessoas, por muito que goste de viver com eles, não é porque quero, é porque tenho de dividir a renda. Num mundo melhor adorava ter a minha casa. Devia ter direito a poder pagar uma renda sozinha. Mas não dá.

Nem ser uma boa pessoa, como a Chen Te?
Não posso, não posso.

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