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Rui Curado Silva sobre o sucesso da missão da China a Marte: "Há um preconceito contra os cientistas chineses"

Há 23 anos que Rui trabalha com investigadores chineses. No dia em que lançaram a ambiciosa missão a Marte, contou como é trabalhar com eles. E aquela vez em que era a única pessoa com roupa lavada.

Daqui a sete meses, a China pode voltar a fazer história no panorama da exploração espacial ao tornar-se o segundo país a aterrar em Marte — um feito nada fácil de conquistar em que apenas os Estados Unidos já tiveram sucesso. O resultado da missão Tianwen-1, lançada na madrugada da última quinta-feira, 23, sem aviso prévio pelo governo chinês, é como escolher cara ou coroa e depois lançar uma moeda ao ar: de todas as missões marcianas lançadas até agora, apenas 50% tiveram sucesso. Mas a China tem-se mostrado ambiciosa. E depois de se ter tornado o único país a aterrar no lado oculto da Lua, tinha mesmo de tentar.

Rui Curado Silva, investigador no Departamento de Física da Universidade de Coimbra e coordenador do Grupo de Instrumentação Espacial do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), acredita que o país de Xi Jinping tem capacidade tecnológica para o sonho marciano. Só não tem a certeza. Desde 1997 que colabora com cientistas chineses através da Academia das Ciências da China, mas ainda há espaços que nunca pode visitar e informações a que nunca teve acesso. Porquê? É mesmo assim, com o regime chinês. Por lá, não se fazem grandes perguntas: “Nunca sabemos quem nos está a ouvir”.

Em entrevista ao Observador, o investigador explica como é a relação entre os cientistas chineses e os ocidentais, como o país evoluiu desde os anos 90 até agora, os desafios de trabalhar com tanto secretismo e os preconceitos contra os colegas asiáticos — porque eles existem, confirma Rui Curado Silva, que recorda ainda aquela vez em que era a única pessoa da aldeia com roupa lavada e passada a ferro.

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O que é que a China vai fazer a Marte?
Esta missão tem duas naves espaciais — uma que vai orbitar à volta de Marte quando lá chegar e outra que vai aterrar para fazer análises do solo, estudos de geologia e da atmosfera. É um bocado semelhante à MarsExpress da ESA [Agência Espacial Europeia], na qual a aterragem do rover não correu bem e só sobreviveu a sonda, que até hoje tem fotografado o planeta com excelentes resultados.

Quando falamos de estudar a atmosfera e o solo marciano, estamos a falar de estudar exatamente o quê?
Eles querem estudar a composição do solo e fazer um mapa geológico de Marte. Querem também perceber quais são os lugares onde pode haver água, sobretudo debaixo do solo — que é o mais provável em Marte, depósitos de gelo debaixo do solo. E outra coisa que querem fazer é saber como é o campo magnético e gravítico do planeta.

Qual é o interesse científico disso?
Sobretudo estudar as condições de habitabilidade de Marte. Mas mesmo que existam depósitos de água gelados no subsolo, dificilmente isso seria uma grande solução para as missões de colonização de Marte. Isso obrigaria a que as missões fiquem quase obrigatoriamente a esses sítios, mas podem não ser os melhores, por outros motivos. A missão tripulada a Marte tem tantas complicações que ficar dependente de um bloco de gelo no subsolo podia ser mais um problema do que uma solução. Se calhar é mais simples, num processo de colonização, procurar outros métodos de produzir água.

"Mesmo que existam depósitos de água gelados no subsolo, dificilmente isso seria uma grande solução para as missões de colonização de Marte. A missão tripulada a Marte tem tantas complicações que ficar dependente de um bloco de gelo no subsolo podia ser mais um problema do que uma solução. Se calhar é mais simples, num processo de colonização, procurar outros métodos de produzir água."

Em que medida é que estes objetivos são diferentes dos perseguidos por outras missões?
Diria que não tem grandes novidades científicas. Grande parte do trabalho já foi feito pelas sondas americanas. A China poderá apenas entrar em detalhes para complementar aquilo que já sabemos. Não será muito revolucionário em termos de estudos.

Então porquê ir?
Acho que o mais importante para os chineses é provarem que conseguem aterrar com sucesso em Marte, é uma demonstração tecnológica. Isso já seria um grande feito porque, até agora, a taxa de sucesso de aterragens neste planeta é de 50%. Depois, tudo o que vier a partir daí é um ganho.

Que consequências terá para a China se a missão falhar?
Se isso acontecer, não diria que é normal, mas é quase normal. A ESA já tentou duas vezes aterrar em Marte e nunca conseguiu. Se tanto a sonda como o rover falharem, isso será negativo — colocar uma sonda à volta de Marte já não é assim tão complicado. Se for só o rover, estamos dentro da normalidade, porque isso é realmente difícil.

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A China tem mesmo capacidade para isso?
Creio que vai tendo capacidade para isso. Mas é sempre muito difícil responder porque há sempre um grande segredo ou discrição em relação àquilo que é feito na China nesta área. Tenho feito colaborações com a Academia das Ciências da China nesta área do espaço e há sítios onde não posso ir, há informação à qual não tenho acesso — coisa que não acontece com as outras academias com que colaboro. Creio que têm pelo menos uma coisa que os favorece em relação às outras agências: começam a ter uma disponibilidade financeira grande que pode vir a aumentar. Mas, por outro lado, têm um grande atraso tecnológico em relação à Europa e aos Estados Unidos.

Como é que tudo acontece quando está lá?
Normalmente quando vou lá o programa já está todo definido. Há sempre um chinês que me acompanha para todo o lado e raramente estou sozinho. Há locais em que os estrangeiros não podem ir e eles próprios dizem isso, mas nem sequer é colocada a questão de ir lá. Um dos sítios em que isso aconteceu foi um dos centros de lançamento de foguetões, onde nem mesmo alguns dos investigadores chineses com quem trabalhei podem entrar. Outro sítio é um acelerador de partículas, embora os Estados Unidos tenham um no Tennessee onde para entrar tive de pedir uma autorização espacial. Mas na China há mesmo umas hierarquias de permissões que é preciso cumprir. Tem a ver com a forma como funciona o regime chinês.

"Há sempre um chinês que me acompanha para todo o lado e raramente estou sozinho. Há locais em que os estrangeiros não podem ir. Um dos sítios em que isso aconteceu foi um dos centros de lançamento de foguetões, onde nem mesmo alguns dos investigadores chineses com quem trabalhei podem entrar. Outro sítio é um acelerador de partículas, embora os Estados Unidos tenham um no Tennessee onde para entrar tive de pedir uma autorização espacial. Mas na China há mesmo umas hierarquias de permissões"

Alguma vez lhe deram alguma justificação?
Eles sabem que nós temos a noção que na China existem essas restrições. Das poucas vezes que falam connosco sobre política demonstram isso claramente, isso está subentendido nas conversas. É mesmo assim. Nós também evitamos que falem desse tipo de aspetos porque podem ser prejudicados, por isso preferimos não entrar por aí. Transmitimos-lhes uma certa abertura e contribuir para a abertura do país através destas colaborações, mas quando estamos lá não puxamos por esse tipo de conversas porque nunca sabemos quem é que está a ouvir-nos.

Como é trabalhar nesse ambiente?
As diferenças culturais são mais importantes do que essa questão porque o programa de atividades para os investigadores estrangeiros está muito bem definido, não dá grande margem para improvisação. Da parte cultural, há uma grande diferença. Temos hábitos completamente diferentes, até na forma de transmitir emoções e de comunicar. Isso às vezes não permite que a relação funcione a 100%. Nós não os compreendemos completamente, nem eles a nós. Mas evoluiu muito. Estou a colaborar com a Academia desde 1997 e há uma grande diferença de parte a parte.

Rui Curado Silva em 1997, numa visita à Muralha da China com os filhos de um colega.

O que mudou?
Há diferenças muito evidentes no espaço público da China. Lembro-me que quando cheguei nas primeiras vezes o aeroporto de Pequim era uma coisa parecida com um aeródromo com um barracão. Quando aterrei fiquei um pouco impressionado. O carro que nos foi buscar ao avião fez-me lembrar os velhos autocarros do início dos anos 70 em muito mau estado. O condutor estava a beber uma coisa muito estranha que parecia ter uns animais lá dentro. Afinal era um chá com umas ervas. E éramos o único carro a andar nas estradas, o resto era só bicicletas. Agora ainda há muitas bicicletas mas não são dominantes. É completamente diferente, há carros por todo o lado. Por terem muito mais dinheiro também estão a desenvolver muita tecnologia cada vez mais avançada.

E na parte social?
Estão muito diferentes. Em 1997, as pessoas que utilizavam o espaço público eram muito reservadas enquanto agora já começam a aparecer comportamentos como os que encontramos por todo o planeta — a forma como os jovem se divertem, como se mostram e se vestem.

É assim em todos os lados da China?
Não. Numa das vezes a que fui à China fizemos uma grande viagem junto à fronteira com o Tibete e encontrámos uma região muito, muito pobre. Durante essa viagem fomos transportados numa carrinha Nissan e parámos numa aldeia para comer porque o guia tinha um acordo na aldeia para almoçarmos lá. Estava vestido de forma muito simples, com uns jeans e uma t-shirt lavados e passados a ferro. Quando sai da carrinha e olhei para as pessoas à minha volta, ninguém tinha a roupa limpa ou passada a ferro. Ficou toda a gente a olhar para mim. Almoçámos na casa de uma pessoa que vivia numas condições muito rústicas, mas foi um grande banquete. No fim, pagámos dois euros.

Como foi recebido pela comunidade científica?
Bem, o primeiro contacto não passou por mim, mas sim pelo meu orientador de tese de fim de curso em Engenharia Física. Ele um dia recebeu um cientista chinês, que através de contactos de Macau veio trabalhar para o nosso laboratório de detetores de radiação com o objetivo de fazer detetores para o espaço. Esteve cá durante cinco anos. Depois, sempre que lá fomos eles estavam sempre muito gratos por ele ter aprendido tanto com os meus colegas do laboratório. Sempre fomos muito bem recebidos porque demos uma ajuda ao grupo de investigação de lá. Havia uma grande confiança, um reconhecimento muito grande.

Rui Curado Silva (terceiro na linha da frente) com investigadores da China em visita à Universidade de Coimbra.

D.R.

Confirmou o que se diz sobre a forma com que os chineses encaram o trabalho?
Existem métodos e hábitos de trabalho enraizados em certos países da Europa que são diferentes noutros países. Na China acontece o mesmo entre regiões e em comparação com outros países da Ásia. Diz-se que os chineses trabalham mais e se esforçam mais, mas tenho alguma dificuldade em entrar nesse tipo de argumentação. Vejo que os meus colegas da NASA trabalham muito, os meus colegas da Agência Espacial Europeia também trabalham muito… No geral, todas as pessoas que trabalham nesta área são muito entusiasmadas. Não vejo que, por aí, haja grandes diferenças. Acho que tem mais a ver com a herança cultural, a forma como a ciência se enraíza nas sociedades.

Em que diferenças reparou?
A China nesse tópico tem um problema especial. Durante a revolução cultural, eles fecharam as universidades durante quatro anos, creio eu. Alguns dos colegas com que nós trabalhamos, que são pessoas mais antigas, passaram por esse período. Tiveram de ir trabalhar para o campo, um deles tinha por ocupação dar comida aos porcos. Isso teve consequências nefastas na investigação na China. Muito desse atraso vem desse período.

No que se traduziu esse atraso?
Notava-se nos hábitos de trabalho e nas metodologias, principalmente quando começámos a trabalhar com eles, porque contrastava com aquilo que já se fazia na Europa ou nos Estados Unidos.

Há um preconceito contra a ciência chinesa?
Sim, isso há. Sobre a questão de terem uma grande capacidade para copiar tecnologia, isso tem a ver com decisões políticas também. Há governos que têm essa filosofia de copiar ou inspirar-se fortemente na tecnologia de outros países, mas isso são decisões políticas. Mas pode até ser bom porque, se copiarmos coisas que estão mais do que provadas que funcionam, é melhor do que estar a inventar grandes ideias que resultem em algum drama. Se não for por uma razão realmente necessária ou inovadora, a verdade é que no espaço há esta filosofia de usar sempre que possível coisas que já foram experimentadas e funcionaram.

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