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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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"Sabem em quem votar, né? Vamos gritar Amén". Começou a guerra aberta pelos votos de evangélicos no Brasil

Após uma luta pelo voto evangélico que tentaram disfarçar, Lula e Bolsonaro estão agora em guerra aberta pelo apoio de uma ala heterogénea que é disciplinada, mas sente a qualidade de vida a piorar.

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Carlos Diogo Santos e João Porfírio, enviados especiais do Observador ao Rio de Janeiro, Brasil.

“Vão para casa e amanhã vão votar, pelo amor de Deus. Sabem em quem, né? Vamos todos gritar: Amén”.

O culto na Igreja Mundial do Poder de Deus, na zona Norte do Rio de Janeiro, estava a chegar ao fim. A noite de sábado, véspera da primeira volta das eleições presidenciais brasileiras, já tinha caído, eram 19h30, e as palavras do pastor eram o espelho de uma guerra ideológica que ainda se tentava disfarçar. Pelo menos do lado de dentro, onde apenas umas bandeiras do Brasil poderiam fazer adivinhar de que candidato se estava a falar.

A guerra disfarçada pelo voto dos evangélicos viria a acabar poucas horas depois, quando se conheceram os resultados e os dois candidatos perceberam que têm de ser ainda mais agressivos na conquista deste eleitorado: agora é mesmo uma guerra aberta.

“Se a abordagem religiosa e a instrumentalização da religião já era forte na campanha de Bolsonaro e colocava Lula numa defensiva no primeiro turno, agora, já no primeiro dia após aa primeira volta, nós vemos uma intensificação dessa campanha. Um apego à questão da religião da parte de Bolsonaro, porque há uma avaliação de que boa parte dos votos que alcançou vem da população cristã, evangélica e católica de viés conservador e também da que foi convencida da construção de uma imagem positiva do Presidente e do pânico moral, criado em vários temas”, explica ao Observador Magali Cunha, investigadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e fundadora do Coletivo Bereia, projeto de fact checking de conteúdos religiosos.

Bombardeamento da segunda volta já começou em força

Uma das apostas do atual Presidente deverá passar exatamente pela intensificação da sua mensagem junto dos evangélicos num dos redutos de Lula da Silva: o Nordeste do país. De acordo com o colunista do jornal O Globo Lauro Jardim, horas após ter conhecido o resultado, o Presidente brasileiro montou uma espécie de task force para forçar a migração dos votos deste eleitorado no Nordeste — terá recebido no Palácio do Planalto, em Brasília, os deputados Otoni de Paula (pastor da Assembleia de Deus Missão Vida) e Marco Feliciano (também pastor), assim como os senadores — igualmente pastores — Damares Alves e Magno Malta para os incumbir de começarem já esta semana um périplo pelo máximo de templos possíveis daquela região.

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E esse é apenas um dos sinais do endurecimento desta guerra pelos votos entre os evangélicos. Nas redes sociais, de parte a parte, tem-se assistido à circulação de fake news, ainda que a especialista aponte um destaque para as que favorecem o atual Presidente. “Tem havido um bombardeio de conteúdo e muito conteúdo falso, tendo em vista esse público religioso para o convencer a favor de Bolsonaro, de que Lula é uma pessoa que não é cristã, que não tem compromisso com as igrejas”, diz, exemplificando com “um vídeo que viralizou e que mostra Lula com um pacto com Satanás, sendo promovido por um líder de uma seita satânica”.

A projeção deste conteúdo foi tal que Lula da Silva teve mesmo de vir justificar-se nas redes sociais, dando conta de que é um homem religioso: “Compartilhe a verdade! Lula sempre acreditou em Deus e é cristão! #BrasilDaEsperança @lulapelaverdade”.

O Partido dos Trabalhadores também pôs a circular esta semana uma campanha publicitária na internet com depoimentos de vários evangélicos a explicar o porquê do seu voto em Lula e não no seu oponente, uma forma de vincar a sua posição entre os eleitores. Numa parte do vídeo, o ex-Presidente diz mesmo que “não teria chegado aonde [chegou] se não fosse a mão de Deus dirigindo os [seus] passos e guiando [o seu] comportamento”.

Com o objetivo de pôr em causa a imagem de Bolsonaro, na internet começou também a ganhar destaque um trecho de um vídeo que já havia circulado em 2017 e em que o atual Presidente fala durante um evento maçónico — vários internautas pró-Lula da Silva e páginas de entretenimento partilharam a gravação, alertando para a alegada ligação à Maçonaria e como isso é contrário à relação que tem mostrado ter com as igrejas, incluindo a evangélica.

A gravação terá sido feita ainda antes de Bolsonaro assumir a sua candidatura à Presidência da República — diz mesmo que não é candidato a nada — e passa a mensagem de que é necessário largar a “política tradicional”, alertando para o perigo das “questões ideológicas”.

A grande defesa de Bolsonaro foi já feita em público nas últimas horas pelo influente pastor e seu aliado Silas Malafaia, que deixou uma promessa: “Não vão manipular os evangélicos”. “Ele [Bolsonaro] ir na igreja evangélica, na católica, outras religiões ou na maçonaria, que é uma sociedade, isso é questão dele. Não vão manipular os evangélicos. E outra, porque essa mesma gente não quer viralizar um vídeo de Lula num ritual tomando ‘passe'”, afirmou esta terça-feira no seu Twitter.

A experiência de Magali Cunha deixa-a com a certeza de que este “é o tom a que se vai assistir durante todo este período do segundo turno” — as eleições são a 30 de outubro — e vê como muito provável a aposta do Presidente e candidato do PL no Nordeste, onde teve os piores resultados no primeiro turno. “Acredito que seja essa uma das estratégias fortes, para garantir o eleitorado evangélico que tem se mostrado mais vulnerável a conteúdos falsos, enganosos, do pânico moral.”

Foi logo no primeiro dia de campanha da segunda volta que se deu o tom do que aí vem — e que se espera “ser um verdadeiro bombardeamento com excesso de conteúdo circulante e de conteúdo falso, centrado nesse eleitorado religioso”.

O aparecimento de igrejas que se assumiram como projetos políticos

Ainda que menos visível do que agora, a forte campanha dentro das igrejas evangélicas — como a que o Observador testemunhou na Igreja Mundial do Poder de Deus, na zona Norte do Rio de Janeiro — pode ter sido um dos motores para o desempenho acima do esperado de Jair Bolsonaro na primeira volta, admitiu a politóloga e investigadora norte-americana Amy Erica Smith, da Universidade do Iowa, em declarações à BBC Brasil.

Mas para se entender melhor esta realidade, é preciso lembrar que os evangélicos não são um todo e que são sobretudo duas igrejas neopentecostais — Igreja Universal do Reino de Deus e Assembleia de Deus — que se têm assumido como projetos políticos nos últimos anos, explica Magali Cunha.

“Temos essa parcela de duas grandes igrejas, dessas corporações, que se colocaram na arena pública a partir do final dos anos 80, início dos anos 90. E nos anos 2000, via poder legislativo, elegem o que se chama a bancada evangélica no Congresso Nacional, numa faixa que tem variado, mas que fica ali numa média de 100 parlamentares. O que é bastante representativo, cerca de um quinto da câmara. E cresceram bastante”.

Um protagonismo que aumentou a partir dos anos 2000, com a chegada de Lula ao poder, e que agora joga contra o ex-Presidente: “Funcionou por um tempo, mas foram esses mesmos grupos que se articularam contra Lula, logo no processo do ‘Mensalão’.”

Felipe Nunes, CEO da empresa brasileira de sondagens Quaest, detalha ao Observador como nas eleições anteriores foi muito rápido o afastamento dos evangélicos em relação ao PT. “A 23 de setembro de 2018, a pouco mais de 10 dias da eleição, a distância entre Bolsonaro e Haddad [então candidato do PT, partido de Lula] nas sondagens entre os evangélicos era de sete pontos percentuais, e no dia 6 de outubro, quando foi a eleição, a distância entre eles era de 33%, ou seja, houve um crescimento muito rápido, muito significativo.”

Magali Cunha, investigadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e fundadora do Coletivo Bereia, projeto de fact checking de conteúdos religiosos

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As estratégias da guerra não explícita na primeira volta e as migrações de votos

Seria de prever que agora, quatro anos depois, a ala evangélica se mantivesse com o atual Presidente, mas “os resultados económicos muito maus do país acabaram por afastar os evangélicos”, o que obrigou Bolsonaro a ter “que, novamente, reconquistar esse público”.

A quebra da qualidade de vida terá sido determinante, dado que o perfil dos evangélicos no Brasil são mulheres, a maioria vive na periferia e são pessoas negras ou pobres, com rendimentos de até um salário mínimo e meio, contextualiza Magali Cunha.

Desta vez, explica o CEO da Quaest, Bolsonaro optou por uma aproximação diferente da que tinha feito antes. “Ele fechou grandes acordos com as lideranças evangélicas do país para que elas mobilizassem os fiéis nas igrejas. Isso aconteceu mais ou menos entre junho e o começo de agosto deste ano”, diz, frisando que, “em junho, Lula e Bolsonaro estavam empatados, com o mesmo percentual de votos dos envangélicos”.

Numa clara referência a Jair Bolsonaro, algumas pessoas traziam vestidas t-shirts amarelas e verdes, as cores do Brasil, e algumas traziam bandeiras do país

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A estratégia de Bolsonaro surtiu efeito: a distância entre ambos viria a chegar perto dos 20 pontos percentuais entre estes eleitores. Um sinal importante para o Presidente e candidato pelo PL, dado que “o público evangélico é o mais fiel apoiante da sua campanha” — além disso, no total, os evangélicos representam 30% do eleitorado brasileiro e são, de modo geral, “disciplinados e organizados”.

Perante essa aproximação, Lula teve de olhar mais a fundo para esta ala, tendo percebido que, como “não existe um tipo único de evangélico, era possível identificar os que estavam mais próximos do seu oponente”. “Com o Bolsonaro estão sobretudo os neopentecostais; já os evangélicos históricos e tradicionais não eram tão fãs de Bolsonaro”, o que fez o PT avançar na direção deste público específico.

O especialista destaca duas ações: o esforço de Lula por desmentir que quisesse fechar igrejas e o reforço da sua identidade religiosa. O ex-Presidente errou inicialmente, analisa, mas conseguiu ainda assim minimizar os estragos e sentir o efeito da sua estratégia — que pôs em marcha logo na primeira semana da campanha oficial, em agosto.

O papel das mulheres na construção da imagem dos candidatos

Parte da estratégia passou também pelas mulheres dos candidatos. Quando, este ano, Bolsonaro se apercebeu de que precisava de fazer mais para não perder o público evangélico, Michele, a sua mulher, entrou em ação. “Isso teve um efeito interessante, tanto que, em dezembro de 2021, Lula chegou mesmo a estar na frente nas sondagens com evangélicos. Depois disso, a mulher de Bolsonaro entrou em cena, com um protagonismo que nunca tivera durante o governo”, lembra Magali Cunha.

Michele era até aí uma primeira-dama sem grandes aparições, fazendo trabalhos sociais. Um capital muito positivo para o Presidente, sobretudo se se tiver em conta que é evangélica. “O pessoal da campanha do Bolsonaro viu que precisaria de ressaltar a imagem dela com as mulheres e isso surtiu efeito. E assistiu-se a uma recuperação, coincidente com a adoção de um discurso mais intenso e religioso do que acontecia antes”.

Além disso, Michele passou a ter voz: “Ela antes não falava e agora tem uma presença ao lado do marido, mudando inclusivamente o seu visual — antes era vista como uma mulher jovem ao lado de um homem mais velho. Agora cortou o cabelo para parecer mais velha e veste roupas de mulher pentecostal, que ela não vestia (usava vestidos curtos mostrando as pernas). Ou seja, mudou a imagem completamente e passou a ser uma pregadora do Evangelho, ao lado do marido, que os evangélicos sabem não ser religioso.”

Mas Michele não foi a única mulher a entrar na campanha, trazendo uma imagem de família e de determinados valores a um candidato.

Guilherme Galvão Lopes, autor do livro “Evangélicos, mídia e poder: análise da atuação parlamentar na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988)”, explica ao Observador que outros candidatos também usaram estratégias idênticas, colocando as mulheres ao seu lado, para chegar mais próximo dos valores desta ala.

“A Janja [atual mulher de Lula] é uma figura popular no meio da militância do PT. Ela dialogou com as pessoas pelas redes sociais. Está mais engajada, por exemplo, do que a falecida primeira-dama Marisa Letícia, até porque era uma outra dinâmica na época”, diz Galvão Lopes, salientando que o facto de aparecer ao lado de Lula com frequência ajudou também a construir a imagem de que “ele continua sendo um homem de família, que se casou na igreja — é um relacionamento oficial, não é um simples namorico”. Nesse ponto, Lula tem até a ganhar a Bolsonaro junto dos evangélicos, porque o atual Presidente “vem de divórcio atrás de divórcio”.

Com a disputa a fechar-se agora entre Lula e Bolsonaro, as estratégias para conseguir o voto dos evangélicos deverão ser ainda mais visíveis. Tudo passará a ser mais claro, como era já no exterior da Igreja Mundial do Poder de Deus, na véspera da primeira volta. Ali fora, mesmo à porta, estavam dezenas de carros estacionados com material de propaganda do Partido Liberal, o de Jair Bolsonaro, que deixavam pouca margem para dúvidas sobre o sentido de voto que, com meias palavras, o pastor tentava aconselhar no interior.

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