Durante o debate sobre política geral com o primeiro-ministro, António Costa quis — e fê-lo várias vezes — vincar a ideia de que Portugal “não tem empobrecido” face aos últimos anos e que não há mais pessoas em situação de pobreza por causa do reforço dos apoios sociais. Costa também pintou um cenário positivo nos rendimentos dos trabalhadores face a 2015 — desvalorizando, porém, os efeitos da inflação de 2022. E assegurou, em resposta ao Chega, que as regras do mínimo de existência impedem que quem ganha 800 euros brutos receba menos em termos líquidos do que aqueles que levam o salário mínimo para casa. Já Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS, comparou duas “eras” diferentes da história da união monetária. O Observador fez o fact check a alguns momentos do debate desta quarta-feira.

Rendimento médio dos trabalhadores está 20% acima do de 2015?

Hoje temos um rendimento médio dos trabalhadores 20% acima do que tínhamos em 2015″.
António Costa, primeiro-ministro

António Costa respondia à deputada do PCP Paula Santos — que o confrontou com a perda de poder de compra das famílias — quando avançou com um dado sobre o rendimento médio dos trabalhadores. Disse Costa que está 20% “acima do que tínhamos em 2015”.

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O primeiro-ministro não revelou a fonte da percentagem (20%). Mas há várias entidades, e com metodologias diferentes, que podem ser consultadas para aferir a veracidade da afirmação, ainda que de forma aproximada. Desde logo, o Instituto Nacional de Estatística (INE) — embora também o instituto tenha diferentes indicadores que ajudam a ilustrar a evolução dos rendimentos. Um deles é o rendimento médio mensal líquido da população empregada por conta de outrem. Os dados mais recentes são do terceiro trimestre de 2022, altura em que o rendimento médio era de 1.034 euros. Em comparação com o mesmo período de 2015 (829 euros) há um aumento de 24,7%.

Já se tivermos em conta a remuneração base média, também dos trabalhadores por conta de outrem, agregada pela Pordata com base nos dados do Ministério do Trabalho, a diferença é menos expressiva: é de 18,48% (de 913,9 euros em 2015 para 1.082,8 euros em 2021 — dado mais recente).

O Eurostat também tem dados sobre os ganhos. O salário médio ajustado por trabalhador em Portugal era de 16.500 euros anuais em 2015, passando para 19.301 euros em 2021, uma subida de 17%.

Mas o INE tem um outro dado que mostra o efeito da inflação em cada período. E tendo em conta a inflação elevada de 2022, em termos reais a diferença salarial entre 2015 e 2022 não é tão significativa assim. Nos cálculos do INE, a remuneração bruta total em setembro de 2015 ficou nos 1.126 euros, passando para 1.170 no mesmo mês de 2022. Ou seja, uma subida de apenas 3,9%.

Conclusão

Quando comparadas diversas fontes de dados que correspondem aos salários nominais, os valores obtidos pelo Observador não são radicalmente diferentes dos 20% enunciados por António Costa. A exceção é quando se adiciona à equação a inflação de 2022, que corta uma parte significativa dos rendimentos dos trabalhadores e faz com que os salários só tenham subido cerca de 4% face a 2015.

ESTICADO

Mercados: Em 2013 viram “instabilidade”, em 2023 viram “estabilidade”?

[Em 2013] Tivemos uma remodelação após a demissão irrevogável [de Paulo Portas]. O prémio de risco aumentou mais de 120 pontos. Entre a crise política que cria instabilidade e a confiança que os mercados e os portugueses têm neste Governo, entre o passado e o presente, há uma diferença substantiva que os gráficos mostram.
Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS

O deputado Eurico Brilhante Dias, líder da bancada do Partido Socialista, trouxe para o debate parlamentar desta quarta-feira dois gráficos que fazem uma comparação das taxas de juro da dívida portuguesa em dois momentos: os dias à volta da crise política causada pela demissão “irrevogável” de Paulo Portas (que acabaria por continuar no Governo de Passos Coelho) e, por outro lado, os dias marcados pela mais recente remodelação governamental.

Ostentando dois gráficos para as taxas de juro, um cor de rosa e um laranja, Brilhante Dias mostrou como os custos de financiamento dispararam fruto da crise política que marcou o verão de 2013 e, por outro lado, evidenciou como as taxas de juro praticamente não se mexeram nos últimos dias de 2022 (e primeiros dias de 2023).

Os dados mostrados pelo deputado do PS estão corretos – na sequência da crise política provocada pela ameaça de Paulo Portas, as taxas de juro da dívida portuguesa dispararam, levando os chamados prémios riscos (diferença face à dívida alemã, referência sem risco para a zona euro) a saltarem mais de 100 pontos-base.

O argumento político, porém, é enganador porque compara duas “eras” completamente diferentes da história da união monetária. No verão de 2013, Portugal estava ainda sob a alçada do programa da troika, a Grécia tinha tido o seu segundo programa de resgate – um segundo resgate que tinha envolvido perdas para os detentores de dívida pública de Atenas.

A principal diferença é que em 2013 o Banco Central Europeu (BCE), sob a liderança de Mario Draghi, já tinha desfeito as subidas de taxas de juro do seu antecessor (Jean-Claude Trichet) mas ainda não tinha lançado o programa de compra de dívida que foi inédito, na altura, e acabou por ser absolutamente decisivo para resolver a crise da dívida europeia.

Esse programa foi lançado só no início de 2015, o BCE passou a intervir no mercado de obrigações com a compra de dívida pública e atuando, na prática, como um credor de último recurso que comprimiu os custos de financiamento de todos os países da zona euro nos anos que se seguiram. O lançamento desse programa trouxe uma mudança tão grande na união monetária que fez parecer os anos anteriores como se fossem anos em que os emitentes de dívida soberana jogaram “sem guarda-redes”.

Em 2022/2023, o contexto é incomparável. É certo que o BCE está a reduzir os programas de compras de dívida da zona euro e já há um plano para começar a baixar o montante total de títulos soberanos no balanço do BCE. Porém, isso não abala a perceção dos investidores de que, na realidade, em caso de problemas o BCE continuará a poder intervir como o tal “guarda-redes”.

O BCE lançou, mesmo, um programa que prevê que a autoridade monetária possa intervir nos mercados de dívida caso algum país veja as taxas de juro subirem em demasia. Esse é um programa que não foi utilizado ainda mas que foi lançado precisamente para dissuadir os investidores de apostarem contra a dívida dos países – caso o façam, arriscam ser apanhados em contrapé pelo BCE, que entra como comprador, faz baixar os juros e, por essa razão, faz com que uma eventual aposta negativa contra o país saia pela culatra.

Além deste enquadramento “macro”, há que sublinhar, também, que no caso específico de Portugal a crise política de 2013 gerou, de facto, receios de queda do Governo – ao passo que na crise política no final do ano passado esse cenário não estava verdadeiramente em cima da mesa.

Conclusão

Eurico Brilhante Dias compara dois períodos totalmente diferentes da história da zona euro, quando fala sobre o impacto nos mercados financeiros da crise política de 2013 e da crise política de final de 2022/início de 2023. Os dados apresentados pelo deputado estão corretos mas isso faz com que a argumentação seja enganadora.

ENGANADOR

Saíram da pobreza 430 mil pessoas desde 2015?

Até à data de hoje, incluindo o retrocesso da pandemia, há 430 mil pessoas que se libertaram da pobreza desde 2015. Não há quatro milhões de pobres, há quatro milhões de pobres antes das transferências sociais. Graças às transferências sociais, que têm aumentado, a taxa de pobreza reduziu para 22%.”
António Costa, primeiro-ministro

António Costa rejeitou, no debate, que a pobreza esteja a aumentar em Portugal. O primeiro-ministro referiu até que há menos 430 mil pessoas em situação de pobreza atualmente do que em 2015 e salientou o papel dos apoios sociais para essa evolução. “O país não tem empobrecido”, voltou a atirar Costa, mais para o final do debate, quando voltou a ser confrontado com o tema.

Mas vamos por partes. Costa diz que há hoje menos 430 mil pessoas pobres, um valor que é corroborado pelos dados do Eurostat, agregados pela Pordata. Em 2015, havia em Portugal 2,743 milhões de pessoas “em risco de pobreza ou exclusão social”, um número que desceu para 2,312 milhões em 2021. São menos 431 mil pessoas.

O chefe do Governo defendeu também o papel importante das transferências sociais na atenuação, ou saída, da pobreza, referindo que haveria quatro milhões de pobres se esses apoios não existissem. De acordo com os dados mais recentes do Eurostat, também agregados pela Pordata, se não fossem os apoios 43,5% da população estaria em risco de pobreza. Ou seja, teria rendimentos baixos face à restante população e estaria abaixo do limiar de risco de pobreza.

Se tivermos em conta as estimativas sobre o número de residentes em Portugal nesse ano, estaríamos a falar de 4,5 milhões de pessoas. Com as transferências sociais, a taxa de risco de pobreza desce para 18,4% (23%, se tivermos em conta as pensões), o equivalente a 1,9 milhões de pessoas (2,4 milhões).

Conclusão

É verdade que, de acordo com os dados mais recentes, esteja a diminuir o número de pessoas em situação de pobreza. Também é notório o papel das transferências sociais, incluindo as pensões, na atenuação da pobreza em Portugal.

CERTO

Quem ganha 800 euros brutos não fica a receber menos em termos líquidos do que quem ganha o salário mínimo?

As regras que foram votadas nesta Assembleia da República relativamente ao mínimo de existência evitam precisamente esse efeito, de que haja um rendimento líquido inferior ao salário mínimo.”

António Costa, primeiro-ministro

A pergunta veio do deputado do Chega Pedro Pinto citando uma notícia segundo a qual quem ganha 800 euros brutos acaba por receber menos dinheiro, em termos líquidos, do que quem ganha o salário mínimo (que em janeiro subiu para os 760 euros). “Esta notícia é ou não verdade?”, questionou o deputado.

O primeiro-ministro respondeu-lhe que as “regras que foram votadas” na Assembleia da República relativas ao mínimo de existência, no âmbito do Orçamento do Estado para 2023, “evitam precisamente esse efeito de que haja um rendimento líquido inferior ao salário mínimo”.

De facto, segundo explica o fiscalista da Ilya, Luís Leon, ao Observador, é verdade que em termos de liquidez mensal um trabalhador com um ordenado bruto de 800 euros mensais leva para casa menos dinheiro do que alguém que ganha o salário mínimo, 760 euros. Isso acontece porque os segundos estão atualmente isentos de retenção na fonte, ao contrário dos primeiros.

Um salário de 800 euros (no caso de um trabalhador solteiro, sem filhos) está sujeito a uma taxa de 7,8% de retenção na fonte e 11% de Segurança Social, o que corresponde a um salário líquido de 649 euros. Já um ordenado de 760 euros apenas paga os 11% de Segurança Social, o que lhe dá um salário líquido de 676 euros. Ou seja, mais 27 euros.

Mas, frisa Luís Leon, no momento da liquidação anual do imposto, é feito um acerto, sendo atribuído aos tais ordenados de 800 euros um reembolso que os compensa face aos do salário mínimo (que, como estão isentos de IRS, não recebem nenhum reembolso). Essa desvantagem é, aí, eliminada. Só que, mensalmente, os trabalhadores com salários de 800 euros recebem, de facto, menos na conta do que quem ganha o salário mínimo.

Conclusão

Quem ganha 800 euros brutos mensais recebe menos em termos de liquidez mensal do que quem ganha o salário mínimo. Mas no acerto anual, recebe um reembolso que elimina essa desvantagem (ao contrário dos trabalhadores com o salário mínimo, que como não pagam IRS atualmente, não têm direito a reembolso). Ainda assim, não deixa de ser verdade que, mensalmente, entra menos dinheiro na conta de quem recebe 800 euros brutos do que de para os trabalhadores com o salário mínimo.

ENGANADOR