Sandro Veronesi começa por dizer que acabou de vir do oftalmologista. Sem saber dizer o nome da doença em inglês, e enquanto coça o olho esquerdo por debaixo dos óculos de ler de massa grossa preta, explica que tem uma infeção igual à de Silvio Berlusconi em 2013, que serviu para o ex-primeiro-ministro italiano adiar a ida a tribunal durante um ano. Estamos numa sala por cima de um restaurante, que contrasta em cor e detalhes com o branco e o estilizado das galerias do pátio da Cidadela de Cascais.
Nesta sala disposta sobre o comprido, e cujo teto forma um arco de volta perfeita, as paredes de fundo desta espécie de túnel amplo são forradas a papel que imita baús antigos, empilhados, e enquadram as janelas que trazem a luz da rua. Do lado esquerdo, está a secretária onde durante o mês de abril o escritor italiano se encontra a escrever o novo romance, numa residência literária feita a convite da Fundação D. Luís I.
Este túnel é ladeado por estantes com livros e também por quatro relógios a marcarem horas diferentes: as horas que são neste momento para o escritor nova-iorquino Paul Aster, para o escritor turco Orhan Pamuk em Istambul, para o escritor japonês Haruki Murakami e as que seriam para o escritor britânico Somersert Maugham. Este túnel em forma de cápsula do tempo tem ligação ao exterior através destes engenhos redondos e brancos, com o ponteiro vermelho dos segundos a lembrar-nos de que o tempo não para.
Autor de clássicos como Caos Calmo (ed. Asa) e O Colibri, editado em março pela Quetzal, ambos vencedores do prémio italiano Strega, apenas ganho duas vezes por outro escritor, Paolo Volponi, Sandro Veronesi fala sobre o protagonista, o médico oftalmologista Marco Carrera, a quem a mãe chamava de colibri, porque em criança o seu percentil de crescimento estava aquém da média, até que a insistência do pai em levá-lo a um tratamento inovador o tornou normal. Ter-se tornado normal não impediu que a tragédia lhe batesse à porta mais do que uma vez.
“O destino não foi justo com ele. Normalmente, não passamos pelo tipo de perda como a que ele tem”, explica o escritor, com 63 anos acabados de fazer. “Queria que ele fosse atingido, sem perder a sua capacidade de resistir. É uma qualidade rara e não é evidente. É invisível e tem a ver com dor.” A razão da resiliência de Marco Carrera reside, para Veronesi, na sua resistência à mudança. “Pareceu-me um bom começo mostrar a atitude particular desta personagem, em conseguir absorver e enfrentar mudanças.”
Trata-se de alguém que, apesar de sofrer muito, não fica paralisado pela perda. Esta foi a razão pela qual Sandro Veronesi quis escrever esta história: é sempre possível alcançar um amanhã. “Queria retratar uma personagem que, tal como Jó, na Bíblia, aguenta, aguenta, aguenta. Não percebe porquê, é surpreendido, mas não é destruído pelo que lhe acontece.”
A narrativa começa com a visita do psiquiatra da mulher de Carrera ao seu próprio consultório, em que lhe dá notícia de acontecimentos que poderão colocar a sua vida em perigo, daí estar a arriscar e a quebrar o seu dever de sigilo médico-paciente. Esta é a história de Marco Carrera, dos seus pais, dos seus irmãos, dos seus amores, da sua filha, da sua neta, cuja cronologia é cortada aos bocados e nos é assim apresentada numa sucessão de capítulos que andam para trás e para a frente.
“Destruí a ditadura da cronologia, apenas porque não queria o leitor esmagado por lutos e perdas”, justifica Sandro Veronesi. “Não inventei nada. Por vezes, recorre-se à mudança de tempos para criar a oportunidade para todos podermos aguentar, porque alguém morre na página 20 e na página 80 está viva.” São estas as ferramentas da ficção, é este o poder da ficção. “A minha preocupação era que os leitores estivessem o tempo todo ao lado de Marco Carrera, sem existir um hiato crescente entre ambas as partes. Ele pode aguentar tudo, mas o leitor não tem de o fazer.”
Outra ferramenta de escrita a que Veronesi recorreu foi colocar alguns capítulos em formato epistolar: a correspondência que Carrera – que na sua forma de estar avessa à mudança sempre acreditou poder conciliar com o amor que tem pela esposa — vai trocando com a mulher da sua vida; os emails que envia ao irmão a viver nos Estados Unidos dando conta dos assuntos logísticos familiares – foi ele quem acompanhou tanto pai como a mãe nas idas aos hospitais para fazerem tratamentos contra o cancro, que tratou do recheio da casa dos pais e da venda do imóvel depois de ambos morrerem. É sempre ele que não só aguenta, como leva o barco.
Esta diversidade de formatos de capítulos, para escrever sobre as diversas fases da vida de Marco Carrera, dotam o livro de uma maior plasticidade, a que não será alhieo o facto de Sandro Veronesi ser arquiteto de formação. “Acho que tomei uma decisão corajosa, na altura: a ordem será ‘eu escrevo o que eu quiser, no momento’”, revela Veronesi. “’Quero escrever o capítulo da infância, escrevo; quero escrever o capítulo da morte, escrevo’. Decido sem qualquer estrutura prévia. Isto é verdadeira liberdade.”
Antes de começar a escrever uma história, Sandro Veronesi tem imagens na cabeça. Algumas ficam lá durante anos. Em O Colibri, uma das imagens era a de uma mulher que aparece morta junto à orla do mar, de manhã cedo. Esta mulher tornou-se na irmã de Carrera, cuja depressão a levou ao suicídio. “Ouço as imagens, oiço as histórias que elas podem trazer”, explica Veronesi. “Outra imagem é a do jogo. Não jogo, mas sei que ninguém melhor do que os jogadores sabe o quão estúpido é jogar, sabe o quão mais vale a vida do que jogar.” E acrescenta: “Após ter acabado de ganhar, tenho esta imagem de um jogador que na verdade acabou de perder.” Veronesi sabia também que Marco Carrera enfrentaria experiências duras e quais.
“Tudo o que é crucial numa história surge sempre durante o ato de escrever, enquanto bato com os dedos no teclado. Isto para mim é mágico. É o gesto mágico que cria a história”, confessa Veronesi. “Neste romance em particular, tive de confiar muito nesta magia, porque não ter cronologia implica não ter uma estrutura. A estrutura é um edifício, é algo que tem de ficar de pé.”
Veronesi escreve por vezes à mão – não de forma sistemática, porque diz que não há nada de sistemático na sua vida. “Quando não estou a escrever não me sinto escritor. Apenas me sinto escritor quando estou a escrever”, clarifica Veronesi. “Na minha vida quotidiana, não me sinto diferente de qualquer outra pessoa. A minha identidade é-me dada por um conjunto totalmente díspar de coisas: sou um pai, sou um marido, fui um filho. Nunca penso que sou um escritor enquanto estou a levar o meu filho ao ginásio, sou um pai enquanto estou a levar o meu filho ao ginásio.”
Para Veronesi, a literatura, as histórias, o estilo, a linguagem, estão aprisionados dentro da caneta ou dentro do teclado. E o ato de escrever liberta-os. “Esta é uma sensação muito intensa, quase insuportável. Por vezes, tenho de parar, sinto-me demasiado envolvido por forças. E depois retomo”, conta. Diz ser assim desde sempre: o problema não é escrever, mas criar as condições para ter a coragem de escrever. “Há quem lhe chame inspiração ou ter as ideias certas. Para mim, é uma questão de coragem.”
Este conceito Sandro Veronesi encontrou-no no “Evangelho segundo Marcos”. “Um dos primeiros ensinamentos que Jesus dá aos seus discípulos – eles não sabem nada, são completamente estúpidos, ele conta-lhes alguns segredos do início do caminho até à cruz – é dizer-lhes que ‘quando o momento chegar, não tenham as palavras preparadas, as palavras surgirão. O Espírito Santo visitar-vos-á para sugerir as palavras certas, no momento certo’.” O ato de escrever não tem a ver com ser sagrado, explica Veronesi, mas com algo semelhante à decisão de Samuel Beckett em escrever em francês e não em inglês, a sua língua materna. Deste modo, refere, o ego e a necessidade de demonstração do talento não ofuscarão o que se escreve.
A religião é algo que não está explicitamente retratado em O Colibri, mas, sim, a ciência. Muitas das personagens, à exceção de Marco, fazem psicoterapia, mas o peso do catolicismo está presente em todos e em todo o lado. “Se és italiano, és católico romano. Tens uma educação católica romana. Podes decidir não acreditar, não ser ortodoxo, não rezar, mas tens esta marca em ti”, diz Veronesi. “Isso não é mau. Mesmo que queiras ser livre, é importante que tenhas começado por algum lado, que não tenhas estado totalmente sozinho, que tenhas uma educação, uma tradição.”
O Colibri é o quarto romance de Sandro Veronesi a ser adaptado ao cinema, depois de La Forza del Passato, Gli Sfiorati e Caos Calmo. Em Caos Calmo, Nanni Moretti interpreta o papel de Alberto Moradia, que tem também de lidar com a perda, desta vez da sua mulher. Veronesi esclarece que não participa na escrita dos guiões. “A primeira vez que fui ver La Forza del Passato no cinema foi no Festival de Veneza. Fui à passadeira vermelha, juntamente com o resto da equipa. Para lidar com a emoção, isto foi há mais de vinte anos, fumei uma ganza”, conta Veronesi, que confidencia ter já sido um cinéfilo inveterado, ao ponto da total alienação de tudo o resto. “Ganza que, e isto acontece muitas vezes, me provocou a reação oposta: estava furioso. Pensava: ‘Como é que se atrevem a fazer algo que eu já fiz?’, esquecendo-me de que tinha vendido os direitos da história. Quando o efeito da ganza passou, percebi que estava emocionado com tudo: de ‘quando escrevi isto’, ‘por que escrevi aquilo’, ‘surgiu daqui’. Foi emocionalmente muito forte.”
A imagem com que Sandro Veronesi anda agora na cabeça e que está a usar no novo romance que se encontra a escrever em Cascais é a de um rapaz, sentado à hora de almoço num banco em Paris, nos anos 80. “O seu almoço são dois cigarros Gitanes seguidos, porque não tem dinheiro.” Veronesi também já foi fumador, mas deixou há uns anos. “Não tem dinheiro para viver em Paris, tem de escolher entre almoçar e jantar. Às vezes, quando tem muita fome, fuma três Gitanes seguidos.”