“É difícil encontrar alguém que não tenha uma história com uns Sanjo”, afirma Paulo Fernandes, o homem que em 1997 comprou a marca de ténis portuguesa em hasta pública, depois desta ter sido declarada insolvente. Por quanto? O administrador prefere manter em segredo. A Sanjo pode ter nascido bem mais lá para trás, mas é no final dos anos 90 que esta história, a de Paulo, começa. O empresário já estava no ramo do calçado e andava com vontade de criar uma marca de ténis. “Soube através de amigos que a Sanjo estava à venda. Na verdade, o que comprei foi a patente, a fábrica tinha sido desmantelada em 1994, não havia máquinas, moldes, nem modelos antigos”, conta.
O nome estava garantido, mas grande parte do trabalho continuava por fazer. Foi preciso pôr pés a caminho e correr as pequenas sapatarias de aldeias e vilas. Nos stocks bafientos, encontrou o arquivo que nunca chegou a conhecer. Comprou todos os ténis antigos que apanhou, dos clássicos K100 e K200 brancos e pretos às variações de cor que os anos 70 e 80 exigiram, ao mesmo tempo que as histórias, fotografias e antigos cartazes e anúncios começaram a vir parar-lhe às mãos. Alterar o design dos Sanjo nunca foi o objetivo, mas sim voltar a produzi-los tal e qual como Portugal os calçou durante décadas a fio.
São João da Madeira a todo o vapor
Sabia que os ténis Sanjo eram feitos numa fábrica de chapéus? Em 1933, a Empresa Industrial de Chapelaria (dos mesmos proprietários da Oliva) criou a primeira marca portuguesa de ténis batizando-a em homenagem à terra onde eram feitos, São João da Madeira. Esta foi a década em que o desuso do chapéu no quotidiano começou a ameaçar o negócio, daí que a empresa tenha procurado novos produtos e matérias-primas, como foi o caso da borracha. Com ela fizeram-se as solas dos Sanjo, mas também saltos e massas de recauchutagem. O mesmo aconteceu com a palha, que a partir do mesmo ano deu origem a novos modelos de chapéus. Eram vendidos em Portugal e exportados sobretudo para a Suíça.
Nos anos 40 e 50, enquanto a fábrica de chapéus continuava a explorar outros segmentos, os Sanjo já eram um fenómeno. O Estado Novo e as suas leis protecionistas impediam que se importassem bens produzidos no país, por isso, mais do que os ténis da moda, os Sanjo tornaram-se uma espécie de farda. Do ultramar aos atletas de várias modalidades desportivas, todos calçavam o mesmo e apenas com duas variações possíveis: ou os ténis todos brancos ou os brancos e pretos.
Escusado será dizer que a Associação Desportiva Sanjoanense estava em vantagem, sobretudo a equipa de basquetebol, que chegou a usar pares de ténis como moeda de troca nas transações de jogadores. Foi a era dourada da Sanjo. Os ténis eram tão indispensáveis aos militares como às aulas de ginástica nas escolas. Paulo Fernandes, hoje com 42 anos, chegou mesmo a encontrar o nome Sanjo em listas de material escolar já nos anos 80. Um outro documento, este de 1978, faz referência a uma encomenda de 1355 pares para o Instituto dos Pupilos do Exército. Nas primeiras décadas, a fábrica chegou a contar com 500 operários a trabalhar em três turnos e a produzir uma média de 2500 pares por dia. Ainda assim, comprar uns nem sempre foi fácil. A marca não tinha concorrência e não conseguia produzir ao ritmo da procura. Resultado? Meses de espera para conseguir ter um par e, em alguns casos, também de poupança, no caso das famílias menos afortunadas.
Um par de ténis e uma tareia
Paulo teve o seu primeiro par de Sanjo quando tinha cinco anos. Felizmente, a sua primeira história com a marca não teve o desfecho doloroso daquela que conta na terceira pessoa. “Quando estava à procura de ténis antigos, conheci um senhor que, em pequeno, levou uma grande tareia por causa de uns ténis Sanjo”, conta. Resumindo a peripécia, parece que o pai tinha passado três ou quatro meses a fazer horas extra e a poupar dinheiro para comprar os ténis que o filho tanto desejava. Um dia, fez-lhe a surpresa. O delírio durou dias, mas menos de uma semana depois, por causa de travar a bicicleta com o pé na roda traseira, um dos ténis ficou com um buraco enorme. Conclusão: o pai descobriu e o drama familiar incluiu uma tareia daquelas (diz que com cinto e tudo).
25 de Abril: abrem-se as fronteiras, entram os All Star
Até 1974, a Sanjo detinha o monopólio dos ténis em Portugal e só com dois modelos diferentes. Com a abertura das fronteiras e a chegada das grandes marcas estrangeiras, ainda que mais caras, o cenário alterou-se. Nike, Vans, Converse, –ilustres desconhecidas para os portugueses tornam-se rapidamente objetos de desejo, não só pela novidade e pelas influências culturais às quais o país se abriu (entre elas, a MTV e os seus artistas), mas acima de tudo pelo design, pelas cores. É no final dos anos 70 e início da década de 80 que a Sanjo tenta dar a volta à situação.
“Nessa altura, a marca tenta acompanhar as tendências. Começa a trabalhar borrachas diferentes, a ter lona de outras cores, chegou mesmo a fazer solas com uma risca como os All Star”, explica Paulo. Foi nessa altura que os preços começaram a descer. Os All Star, da Converse, eram adversários de peso, mas continuava a haver uma fatia da população que não conseguia comprar os novos ténis importados. Ao mesmo tempo, usá-los representava um reduto de orgulho nacional, ainda assim, insuficiente. Paulo fala numa empresa que não sabia viver com concorrência e numa direção sem visão competitiva. No culminar de uma morte lenta, a Sanjo, bem como a Empresa Industrial de Chapelaria que a detinha, faliram em 1996.
Sapatilhas com sistema antirroubo
Aos 48 anos, Jorge Buco já não tem ténis Sanjo, mas as histórias de infância ninguém lhe tira. Tinha uns quantos pares — K100 e K200 em mais do que uma cor — e quando ia para a escola usava-os para esconder o dinheiro não fosse um gandulo qualquer querer assaltá-lo no caminho. Como? Descosia metade do logotipo de borracha e escondia uma moeda de 100 escudos de cada lado.
“Nos anos 80, os Sanjo caíram no goto dos mais novos. Já havia All Star mas eram mais caros. Apareciam de vez em quando numa ou outra loja da Baixa [Lisboa], mas quem comprava ia quase sempre a Badajoz ou a Ayamonte. Dr. Martens só se mandássemos vir de Londres e era preciso que os nossos pais tivessem cartão de crédito, o que era raro na altura”, conta o fotógrafo e músico. Na falta de outras marcas, eram os Sanjo os ténis oficiais do movimento punk lisboeta, no início da década. “Quase toda a gente na escola usava, na Graça a mesma coisa”, acrescenta Jorge. Hoje, já não tem nenhuns, mas parece que passou o gosto ao filho que anda com uns vermelhos, já da nova vaga.
Os ténis portugueses made in China
Depois de comprar a marca, em 1997 (através da Fersado, uma empresa, na altura, ainda dirigida pelo pai, Manuel Fernandes), Paulo manteve-a adormecida. Fez trabalho de campo para reunir arquivo e só daí a dez anos começou a preparar o relançamento. “Comecei a ver que o revivalismo estava a chegar às marcas portuguesas. Foi quando abriu A Vida Portuguesa e voltámos a ver a Pasta Medicinal Couto e algumas conservas”, explica. Três anos depois, os primeiros Sanjo regressaram ao mercado.
“Agarrámos na bota, um ícone, e produzimo-la numa vertente moda”, afirma. Mas não foi o toque fashion que mais surpreendeu no regresso da Sanjo. Na impossibilidade de produzir solas vulcanizadas em Portugal, por questões de legislação, a marca rumou à China. Para Paulo, foi uma deslocalização essencial para manter os ténis o mais semelhantes possível aos que eram fabricados em Portugal no século XX. Ainda assim, parece que não foi fácil. “Ou parávamos com o projeto, ou desenvolvíamos uma sola cosida em Portugal, ou produzíamos no extremo Oriente, onde as marcas grandes produzem”, relembra. “Em 2008, fomos para a China com meia dúzia de sapatos antigos e chegámos à fábrica, sem moldes nem nada, a querer fazer um exemplar igual. Demorou imenso tempo até que saísse um modelo, pelo menos, 90% igual aos antigos”, completa.
Os fornos eram colossais (chegavam a levar 300 e 400 pares de uma só vez) e Paulo viajava para a China oito vezes por ano. Em Portugal, o foco estava no “made in China” e no quão estranho a etiqueta soava num produto tão português. “É um país gigante, tem o muito bom e o muito mau e eu sempre trabalhei com fábricas que me deram garantia de qualidade”, admite. O empresário diz que nunca desistiu de produzir em Portugal, pelo selo e pela logística desfavorável a uma marca que se estava a reerguer. Além das grandes quantidades que tinha de produzir, a impossibilidade de introduzir cores da moda, pelo período de produção e pelo tempo que os ténis demoravam a chegar a Portugal, torna tudo mais desvantajoso, apesar do custo de produção mais baixo.
Em 2014, com a utilização de fornos de pequena escala, a produção passou a ser feita em Portugal. Desde então que a marca fabrica em quantidades menores apostando em coleções cápsula e em cores de edição limitada. Os componentes chegam de várias fábricas e são montados na Venda do Pinheiro, numa unidade onde trabalham dez pessoas.
Aos 85 anos, a nova vida da Sanjo
Dos clássicos K100 e K200 a outros modelos que fizeram parte da história da Sanjo no século XX, a marca tem hoje à venda 46 ténis diferentes. Além dos formatos, diversificaram-se as cores e os acabamentos e concentrou-se a oferta numa loja online relançada em setembro do ano passado. A plataforma representa 70% das vendas, várias delas são para fora do país, onde os saudosistas não resistem à ideia de voltar a calçar umas sapatilhas destas. A imagem também levou uma volta. Está nas mãos da Luva, agência responsável pelo branding, pela comunicação e pelo design de produto da marca.
Mais do que coleções sazonais, a marca quer apostar em novos lançamentos de dois em dois meses. Os últimos a chegar foram as K100 em verde militar e terracota, mas há mais novidades a caminho. Em fevereiro, a Sanjo abre caminho para a Vintage Collection com recriações de alguns dos modelos mais especiais do século passado. Os primeiros são em ganga e apontam para uma nova orientação de mercado: as tendências de moda.
Para vê-los ao vivo, o principal ponto de venda físico continua a ser A Vida Portuguesa, embora a marca esteja à procura de espaço para abrir uma loja própria no centro de Lisboa. A nova casa terá muito mais do que ténis à venda, até porque, aos 71 anos, a memorabilia já merece lugar de destaque. Recordações e memórias não faltam. A partir do momento em que a Sanjo se fez notar nas redes sociais (Facebook e Instagram), choveram mensagens com relatos e fotografias antigas. Parece que é mesmo verdade: toda a gente tem uma história com a Sanjo.