Ana Paula Fonseca está de pé a preencher o formulário de registo necessário para a vacinação. É auxiliar de limpeza na área das doenças infecciosas (zona F) do Hospital Curry Cabral, em Lisboa — a primeira ala a receber, em março, doentes infetados com o vírus que virou o mundo do avesso, que entretanto teve de aumentar o número de camas de 80 para 150. “A vida continua, tudo normal. Estou tranquila”, diz ao Observador enquanto espera pela sua vez, no grupo de primeiros vacinados deste hospital.
Da sua parte não houve nervos, nem pressão ou uma ansiedade enorme por, a partir de agora, fazer parte da história da humanidade, numa das maiores operações de saúde de sempre. Naquele grupo estavam as primeiras pessoas de 800 neste local, mas nem isso as deixou ansiosas. “Acha que uma enfermeira se sente nervosa?”, comentou uma das auxiliares para um dos jornalistas presentes. Se nem os enfermeiros se sentem, não havia razão para se sentirem, é a lógica da pergunta. Mas, neste dia tão importante, nem tudo o que parece é.
Pelas 10h30, tal como Ana Paula Fonseca, mas no exterior, começaram a juntar-se as primeiras pessoas que receberam a indicação, de forma aleatória, para virem receber a vacina. Enquanto o médico internista e nefrologista, de 68 anos, Fernando Nolasco, se tornava o primeiro, “com alguma surpresa”, a tomar a primeira dose neste hospital de Lisboa, rodeado de repórteres de imagem, jornalistas e profissionais de saúde, Paula Camarca, enfermeira há 20 anos, que trabalha agora na área da transplantação (ligado à área da nefrologia), veio contrariar a tal ideia de que na sua profissão não há nervos. “Estou um bocadinho nervosa por fazer parte da história”, começa por dizer, contando que durante a Gripe A também foi chamada para estar na linha da frente, mas não foi logo vacinada.
Não ficou infetada nem esteve de estar isolada da família (marido e três filhos) durante estes meses, mas, no seu serviço, muitos dos doentes que chegavam apresentavam sintomas da doença e tinham de ser reencaminhados, para evitar contágios. Portanto, o método de trabalho era alterado no meio da incógnita. “Tem sido cansativo, alguns dos doentes acabaram por morrer. É doloroso, acabamos por chorar para dentro, mas depois houve uma adaptação ao longo do tempo, até porque há pacientes para transplante neste serviço que podiam ficar infetados, logo tínhamos de usar máscara mesmo antes da pandemia. Agora espero que seja uma luz, mesmo não sabendo o que esperar”, diz.
Para vir trabalhar, Paula Camarca tem de andar de transportes públicos desde o Seixal, onde mora com a família, mas nunca ponderou parar. Nem mesmo quando a avó , de 95 anos, morreu a 12 de maio, no dia da Enfermagem. “No dia do funeral vim trabalhar para a homenagear, porque sempre cuidou de nós. Nesse dia vim eu cuidar dos outros. Mas não poder abraçar os meus foi o que mais me custou”, termina.
Ao longo da manhã, o ambiente no Curry Cabral foi muito contrário ao que seria expectável. Selfies, sorrisos, humor, numa aparente normalidade que em nada se assemelhava à importância da data. Parecia “mais um dia no escritório”, como se costuma dizer, mas, desta vez, um dia feliz e com um sinal de esperança.
Houve uma enchente dentro da pequena zona de vacinação, o que provocou alguns momentos de tensão entre os profissionais de saúde que estavam a vigiar o momento, mas nada que não se resolvesse com uma indicação de saída forçada — especialmente para os jornalistas, os únicos que não seriam vacinados naquele dia. Isso até deixou a enfermeira diretora do Centro Hospitalar Lisboa Central, Maria José da Costa Dias, que administrou a primeira vacina, mais nervosa, já que tinha de seguir para o Hospital São José, onde estava também a decorrer uma operação de vacinação para 800 profissionais de saúde.
Churchill, nervosismo e efeitos secundários fictícios
Enquanto o médico Fernando Nolasco citava Winston Churchill para as televisões, num quase espetáculo improvisado de humor, na sala de recobro partilhavam-se fotografias de familiares, gravavam-se vídeos do momento para televisões fictícias e inventavam-se, a brincar, sintomas pós-vacina, como “o crescimento de cabelo”.
Já Maria Isabel, de 64 anos, médica nefrologista, estava sossegada a um canto agarrada ao telemóvel. Na verdade, estava à procura de uma fotografia dos filhos gémeos para mostrar ao Observador e a todos os presentes na sala. “Já viu? Fui mãe aos 47 anos”, conta. Medo? Nem vê-lo. “Quem vem para esta profissão não pode ser maricas. A minha mãe, que tem 88 anos e vive no Alentejo, é que me foi perguntando se tinha medo. Não tenho. Só pelas pessoas idosas. Mas amanhã venho trabalhar”, afirma.
Mais ao lado, também agarrada ao telemóvel, estava a enfermeira Carolina, de 24 anos, que veio para o Curry Cabral em setembro, tendo estando antes nas urgências do Hospital Lusíadas. “O início foi assustador, mas nunca fiquei infetada nem deixei de ver a minha família”, conta. Agora parece tranquila, ainda que tenha algumas dúvidas sobre a vacina, sentimento partilhado por outros colegas. “Pode ter efeitos secundários, é uma situação algo desconfortável. Mas temos de dar o exemplo e criar a imunidade de grupo, senão isto nunca mais acaba”. Terminado o testemunho, faltava saber se o “efeito secundário” do crescimento do cabelo da outra profissional de saúde já tinha passado. “Posso-te ir buscar uma máquina de barbear, se quiseres”, brincou a enfermeira responsável por acompanhar os vacinados. Não houve cortes de cabelo, nem outros efeitos secundários da vacinação — esses sim, mais a sério — registados pelo Observador.
Ainda que num tom baixo, meio inseguro, como quem não quer ser ouvido na fila, Sandra Coimbra, assistente técnica da nefrologia de 49 anos, também confirma um certo nervosismo com a vacina produzida pela BioNTech/Pfizer, a primeira que chega a Portugal. “Estou um bocadinho nervosa, sim, por causa do desconhecimento. A verdade é que a comunidade científica uniu-se. Só que há médicos que estão cépticos, porque foi tudo muito rápido”, argumenta.
O seu trabalho, que está mais ligado ao transplante renal, também sofreu alterações: medições de temperatura, análises, teste PCR. Ou seja, assim que há algum paciente com febres altas, tem de ser reencaminhado para se saber se está infetado. Obstáculos que, ainda que sejam resolvidos, podem dificultar o sucesso desta área da medicina, o que implica “muito desgaste emocional”. “Mas agora já não me faz confusão, estou de espírito aberto”, termina.
Enquanto Sandra Coimbra esperava pela sua vez, o primeiro vacinado seguia para três dias de férias — só depois, vai regressar ao trabalho. Após 30 minutos no recobro, e a falar com alguns dos seus colegas à saída, confessa, com ironia, já estar a sentir efeitos secundários. “Sim, só se for o de não parar de falar”, diz Fernando Nolasco à saída da sala de vacinação, que chegou a ser comparado ao presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, quando tomou a vacina da gripe — ainda que não tenha despido totalmente a camisa. Mas o médico internista foi igualmente presidenciável no seu discurso. “Não é o fim, nem o princípio do fim, é o fim do princípio”. Com esperança, humor e algumas dúvidas. Afinal, quem está na linha da frente não é assim tão diferente dos que estão atrás. Por agora, o plano do Curry Cabral decorre com normalidade, onde o objetivo será vacinar até às 21h00, com um balanço oficial às 20h00.