A última vez que o Museu Nacional do Azulejo, em Lisboa, teve direito a uma intervenção foi nos anos 80 do século passado, já lá vão 40 anos. O edifício, o extraordinário Convento da Madre de Deus, fundado em 1509 pela rainha D. Leonor, padece de quase tudo e até os painéis de azulejos da Igreja, primeira encomenda portuguesa de azulejos da Holanda de valor inestimável, estão em risco. Agora, revela o diretor da instituição, Alexandre Nobre Pais, 4,2 milhões de euros vindos do PRR – Plano de Recuperação e Resiliência — podem salvar a casa até 2025.
A aproximação ao museu deixa tudo a desejar. Maltratado, o antigo Convento da Madre de Deus faz pensar que está ao abandono tal a deterioração das fachadas. Mas não. Não está. Lá dentro, uma equipa pequena — 22 pessoas — mas motivada, dá corpo e forma a um museu fantástico, nada convencional, que oferece uma experiência única e verdadeiramente satisfatória, e onde o passado chega ao presente com pompa e circunstância. Azulejaria magnífica que desde o século XVI decora e honra as salas de um espaço religioso dedicado à classe feminina culta, as clarissas da Madre de Deus, até à extinção das ordens religiosas em 1834.
Nessa altura, todo o edifício do convento foi alvo de uma extensa campanha de obras que duraram até praticamente a viragem do século XIX para o XX, mais precisamente até 1895. Dirigidas por José Maria Nepomuceno, primeiro e depois por Liberato Telles, as obras deram origem ao asilo D. Maria Pia, hoje Casa Pia. Mesmo assim, a instituição benemérita albergava já um pequeno núcleo museológico do qual faziam parte a igreja e os coros alto e baixo, claro está, mas também a capela de Santo António e a primitiva igreja, hoje conhecida como Sala D. Manuel.
Na mesma época, foram depositados no edifício numerosos conjuntos de azulejos provenientes de conventos e palácios entretanto demolidos, o que foi valorizando ainda mais aquele espaço, que se torna em 1958 uma dependência do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) ao levar ao público a exposição dos 500 anos do Nascimento da Rainha D. Leonor. O primeiro passo para a criação de um museu dedicado ao azulejo, porém, foi dado mais tarde, quando João Miguel dos Santos Simões, nome basilar no estudo da azulejaria portuguesa e um dos grandes conservadores do MNAA, leva para a Madre de Deus, muito pouco tempo depois, em 1965, todo o acervo azulejar desse museu.
Com Santos Simões na direção, o Museu do Azulejo abre portas seis anos depois, corria o ano de 1971, muito embora só lhe seja adjudicado o título de Museu Nacional do Azulejo em 1980, três anos antes da mostra “XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura”, promovida pelo Conselho da Europa. É então que ocorrem importantes obras de restauro e valorização do património, tendo sido até recuperados para o Museu vários espaços que se encontravam na posse da Casa Pia. O acervo foi crescendo, hoje em dia, conta com mais de dez mil números de inventário que correspondem ao que de melhor se produziu em Portugal ao longo de mais de cinco séculos, no entanto, obras nunca mais houve.
“No âmbito do PRR estão-nos prometidos mais de quatro milhões de euros para renovação das fachadas, intervenções nas coberturas, no claustro e no jardim”, diz ao Observador Alexandre Nobre Pais. A notícia foi recebida com muita alegria, mas sobretudo surpresa. Há muito que sucessivos relatórios avisavam para o estado de saúde periclitante do Museu Nacional do Azulejo, mas, “parente pobre” da área da Cultura, como lhe chama o diretor, nunca mais tinha sido dada atenção à situação.
“O maior problema que temos, e é muito grave, é o causado por uma infiltração na igreja que teve como consequência a deterioração dos azulejos dos painéis laterais, são problemas muito sérios, é preciso fazer novas caleiras, mas só se pode avançar com o restauro depois de toda a intervenção e do levantamento da parede. O restauro e levantamento dos azulejos é necessário para depois serem aplicados não diretamente na parede, mas sim em placas metálicas, para que, mesmo que exista outra infiltração, não haja contágio da parede. Os azulejos, muito fragilizados, serão depois fixados num material que é usado na estrutura dos aviões, ultraleve, compacto, muito resistente às variações térmicas e impermeável. O mesmo material que já foi usado no restauro da capela, uma intervenção que teve o patrocínio do Millennium BCP, mecenas da casa”, explica Alexandre Nobre Pais.
Ainda com o PRR à porta, o responsável lança o alerta: “Se a intervenção tardar, os azulejos podem perder-se!” Azulejos que são “joias, peças únicas”, diz-nos. Vieram para Portugal no século XVII e fazem parte da primeira encomenda nacional de azulejos holandeses. Únicos pela sua dimensão, mas também por serem exemplares pintados pelos mais importantes pintores holandeses de cerâmica do seu tempo. “Vêm da melhor oficina de pintura e são peças inestimáveis para a historiografia da arte holandesa, são peças importantes, pois eles nunca fizeram painéis deste tamanho”, continua o diretor do Museu que alberga além de, por exemplo, “Lição de Dança”, a também extraordinária “Grande Vista de Lisboa”.
“Estamos num ponto de não retorno. Aqui tudo precisa de uma intervenção. Sabemos que a primeira fase está para começar, assim como a revisão dos vidros do primeiro andar do claustro…” Um dossiê sistematizado de tudo o que era necessário fazer foi enviado vezes sem conta para a tutela, mas o dinheiro não chegava para as obras. “O diagnóstico estava feito e nós enviávamos informação constantemente”, garante Alexandre Nobre Pais, que acredita que terá sido a perseverança a vencer.
O Museu Nacional do Azulejo surge em terceiro lugar no ranking dos espaços museológicos nacionais mais visitados, a seguir ao Museu Nacional de Arqueologia e o Museu Nacional dos Coches. Cerca de 85% do seu público são estrangeiros e os restantes 15% serão constituídos por alunos de escolas nacionais em visita de estudo. “Os portugueses não vêm ao Museu”, diz o diretor com alguma tristeza. Culturalmente, considera, o azulejo não é valorizado. Tido como uma arte menor, tão diferente da nobreza atribuída à pintura a óleo, pelo menos, ou à escultura, e de tão popular, a cerâmica azulejar tem vindo a ser esquecida ao longo dos séculos, pois o diálogo criado com ela a partir da própria casa, por exemplo, faz com que a desconsideremos.
Depois, a agravar a situação, “o património é silencioso, é mudo”, não fala, nem grita, nem canta, como outras artes como o teatro, ou a música, o cinema, onde os intérpretes chamam a atenção para a falta de verbas e para as dificuldades de subsistência. Alexandre Nobre Pais garante que foram muitos os pareceres internos a comunicar problemas com a estrutura do edifício, sabe que a DGPC tinha consciência da urgência da intervenção, mas a falta de dinheiro atribuído ao património não permitiu ações anteriores.
A certeza de que as obras vão ser realizadas é dada pela Direção-Geral do Património Cultural, que avança o 3º trimestre de 2023 como a data de início dos trabalhos que se prolongarão até 2025. O valor total da intervenção, diz também a DGPC ao Observador, é de 4.207.500 euros, sem IVA. Alexandre Nobre Pais respira de alívio: “Esperemos que o PRR seja a oportunidade que faltava para salvar o azulejo!”