Alguns homens estão fadados para o estrelato, outros para o esquecimento. Quando a Rhino, no passado mês de fevereiro, resolveu comemorar o Mês da Cultura Negra, anunciou uma série de edições especiais em vinil que incluíam Breezin’, de George Benson em vinil azul ou beige, A Donny Hathaway Collection, de Donny Hathaway, em dois vinis púrpura, Roots, de Curtis Mayfield, em vinil laranja, entre muitas outras obras reeditadas, todas admiráveis.
No fim do press-release, em letrinhas pequenas, vinha uma outra secção, dedicada aos lançamentos digitais, que dizia:
Available Digitally For The First Time: “Baby Huey – The Baby Huey Story: Living Legend” (Expanded Edition)
Há anos que me pergunto quando é que o mundo resolve descobrir Baby Huey de uma vez e estou em crer que, apesar de se disponibilizar de novo o disco, ainda que apenas em formato digital, ainda não será desta que Huey conhecerá o crédito que merece – e que equivaleria a um lugar no panteão dos maiores.
Não entendam nisto nenhuma tentativa de diminuir as restantes obras – A Donny Hathaway Collection está repleto de grandes canções, do super funkalhão “Back Together Again”, com Roberta Flack, a “You Were Meant for Me”, em que por entre cordas, saxofone e teclas delicadas, Hathaway, que se suicidou precocemente, exibe toda a doçura da sua voz; Brezzin’, de George Benson, funde – com equilíbrio admirável – o jazz e a soul e o funk, aliando uma composição imaginativa a um tremendo bom gosto nos arranjos, que vai de longos solos de teclas a flautas pastoris. Podia continuar, citando e descrevendo cada um dos discos envolvidos, mas seria inútil: são todos bons ou muito bons.
[ouça “The Baby Huey Story: Living Legend” na íntegra através do YouTube:]
Mas The Baby Huey Story: Living Legend é outra coisa: aquele tipo de demonstração de força e talento inato que obriga sempre a que se usem explosões e furacões como metáforas para descrever o impacto que aquela música nos causa da primeira vez que a ouvimos. E da segunda. E da terceira.
Living Legend foi o único disco editado em nome de Baby Huey, e nem sequer o foi em vida – quando o disco chegou às lojas, Baby já tinha morrido, aos 36 anos, de um ataque cardíaco relacionado com drogas. O Legend do título foi pensado com um propósito, mas hoje adquire um segundo. Se inicialmente a palavra se referia ao facto de Huey ser uma lenda que passou despercebida do grande público, com o tempo adquiriu outra conotação: entre os amantes de hip-hop, Huey tornou-se mesmo uma lenda, tantas foram as vezes que o disco foi samplado.
Percebe-se porquê: disco de funk puro, suadão, cheio de metais, órgãos Hammond, riffs poderosos, tudo ao serviço daquela voz de — passe a expressão — urso esfomeado que sai do mato para anunciar aos humanos que os vai comer, Living Legend é o tipo de disco que os puros do hip-hop apreciavam samplar: cheio de pedaços à espera de serem cortados e manipulados, claro, mas igualmente repleto de história – fora produzido por nada menos que Curtis Mayfield, que compunha várias canções do disco, que incluía ainda, na sua versão original, uma espantosa versão de “A Change Is Gonna Come” (de Sam Cooke, e a primeira canção a abordar os direitos dos negros), além de um par de canções escritas por James Thomas Ramey, o nome de batismo de Baby Huey. O disco fora gravado em 1970; Huey morreria em outubro desse ano, sem ver o seu rosto na capa do LP, que sairia em fevereiro de 1971.
Por essa altura já Huey adquirira o estatuto de (lá está) lenda ao vivo: apesar de ser enorme e anafadão, Huey em palco era tão eficaz quanto James Brown calçado com os seus sapatos mais confortáveis. A sua banda, apropriadamente chamada Babysitters, criava o caos por onde quer que passasse e há relatos de concertos acabarem com intervenção policial – a explicação dada para estes casos é que os Babysitters enlouqueciam as pessoas com o seu funk possesso. Se os Babysitters fossem uma equipa de futebol não eram o tiki-taka do Barcelona, mas sim o Liverpool nos melhores dias, a pressionar loucamente. Até a delicadeza de “A Change is Gonna Come” é transformada numa bofetada – mas uma bofetada que se aprecia e que se quer levar mais e mais.
É absolutamente impossível ouvir “Mighty Mighty”, com as suas palmas e os seus coros e os seus espasmos de metais e o seu falsete esganiçado e o seu ar de ter sido criada neste exato instante no meio de uma festa, é impossível ouvi-la e não querer dançar AGORA. É este o poder de Baby Huey, mas não fica por aqui: a canção seguinte, “Hard Times” é demolidora e comovente.
Ramey sofria de uma desordem glandular que exponenciava o seu crescimento, fazendo-o ganhar peso em excesso; não era propriamente um preferido das raparigas – mas quando Huey e os Babysitters começaram a bater os clubes e conseguiram o lugar de banda residente no bar Thumbs Up, em Chicago, fizeram-se ouvir de tal modo e com tal impacto que as miúdas eram atraídas para ele como limalhas de ferro junto de íman gigante.
Em breve os Babysitters eram uma banda de oito elementos (o que dá uma ideia de quão poderoso podia ser o som deles) com dois singles cá fora, um deles, “Monkey Man”, um pequeno êxito na região, a rodar constantemente nas rádios da grande Chicago. Não era difícil adivinhar um futuro de super-estrela para Huey e os seus Babysitters.
Huey começou a usar roupões africanos em palco e deixou crescer uma afro; a música tornou-se mais psicadélica (como “Running”, que faz parte de Living Legend, demonstra); a consciência da tradição de onde vinham cresceu; Huey desatava a fazer versos improvisados e falados durante os instrumentais – estava, sem o saber, a fazer rap antes de haver rap. Tudo isto significa que: o que quer que Huey fizesse era um acontecimento.
Donny Hathaway sentiu isso mesmo quando o viu ao vivo pela primeira vez, trazendo consigo Curtis Mayfield para a segunda – nenhum deles teve a mínima dúvida que estava na hora de os enfiar num estúdio, encontrar as melhores canções para eles e, simplesmente, pressionar no botão de gravar.
Mas à medida que se tornava um fenómeno, a vida de Huey colapsava: os elementos originais da banda haviam saído (zangados por o contrato com a Rhino ter sido assinado apenas por Huey), a sua saúde deteriorava-se e, pior ainda, Huey havia-se viciado em heroína. Com o tempo, começou a faltar a ensaios, a ter de ser arrastado para concertos e em breve passaria a maior parte do seu tempo deitado, isolado, em depressão.
Houve uma tentativa de desintoxicação que não correu bem porque os dealers simplesmente iam entregar-lhe heroína dentro do estabelecimento. Seis meses depois de sair da desintoxicação, Huey morreu de ataque cardíaco. Não morreu de sobredose, como por vezes se lê, mas as drogas contribuíram bastante para o deteriorar da sua saúde. Tinha 36 anos.
Os Babysitters ainda tentaram uma segunda vida, com Chaka Khan, mulher do baixista Hassan Khan, a tomar o microfone, mas não era a mesma coisa, não era a mesma banda. O disco foi lançado e vendeu pouquíssimo; a sua existência eclipsou-se da memória melómana coletiva até que Eric B. & Rakim, os A Tribe Called Quest, os Public Enemy, Ice Cube e outros começaram a samplá-lo, altura em que lentamente Huey se tornou um daqueles nomes passados de boca em boca, mesmo que nenhum de nós tivesse o disco em sua posse.
Living Legend foi reeditado, um grupo de melómanos fez uma valente festa (e passou as suas canções em muitas festas), mas isto é pouco: Huey merece o seu lugar na lista de imortais, estar no patamar logo abaixo de Curtis e Gaye, ser venerado, ter um feriado dedicado a si, que todas as crianças o conheçam e o cantem. Baby merece ser adotado pela humanidade.
Se não for desta vez, tentamos da próxima e da seguinte e de novo e mais uma vez, tantas quantas forem necessárias. Entretanto passem a palavra. Ouçam-no no carro, com os filhos, mandem-no à/ao vossx garotx, partilhem-no no Instagram, até no Twitter (que não é só odiadores). Porque o dia vai chegar em que toda a gente vai amar Baby Huey.