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“Vamos manter uma política que seja importante para os europeus, para os russos e para os norte-americanos: a neutralidade militar. E a Sérvia tentará preservar as suas relações amigáveis em muitas áreas com a Federação Russa.” Em abril de 2022, após ganhar as eleições presidenciais sérvias com mais de 58% dos votos, o Presidente do país dos Balcãs, Aleksandar Vučić, deixava bem claro no que iria consistir a gestão da política externa de Belgrado nos próximos cinco anos. E admitia que a crise gerada pela invasão à Ucrânia teve um “grande impacto” nos “resultados eleitorais”.
Embora deseje manter o seu vínculo com a Rússia, a Sérvia não parece querer desistir do seu caminho europeu. Prova disso é que o país é um dos candidatos a entrar na União Europeia (UE). No cenário mais otimista, Bruxelas prevê que Belgrado consiga cumprir todos os requisitos em 2025, 16 anos depois de formalizar o pedido de adesão. Aleksandar Vučić já manifestou o desejo de que esse calendário seja cumprido. “Devemos ser firmes na prossecução do caminho europeu”, assumiu o Chefe de Estado sérvio no final de maio, acrescentando que o país não é “politicamente neutral porque quer entrar na UE”. Em termos militares, a história é diferente — a adesão à NATO não está nos planos da nação balcânica.
Numa altura em que Bruxelas se colocou sem reservas ao lado da Ucrânia, a Sérvia teve uma postura menos entusiasta no apoio à causa ucraniana, mostrando ser uma das poucas exceções no panorama europeu. À medida que as reprovações no Ocidente subiam de tom e se multiplicava a aplicação de sanções contra Moscovo, Belgrado limitou-se a uma condenação da invasão da Ucrânia, logo no início da ofensiva russa. Economicamente, o governo sérvio nunca foi avante com qualquer medida que visasse prejudicar Moscovo.
Vuk Vuksanović, ex-diplomata sérvio e investigador na área das relações internacionais na London School of Economics, reconhece ao Observador que a situação é “complicada”. “A Sérvia está encurralada entre a União Europeia e a Rússia”, define o especialista, explicando que, “neste momento, Belgrado está a ganhar tempo e a tentar negociar quer com os europeus quer com os russos uma fórmula que não leve a Sérvia para nenhum dos lados. É difícil dizer qual será o resultado destas manobras”.
Certos episódios acabam por ter impacto no delicado equilíbrio que os dirigentes sérvios tentam manter nos seus canais diplomáticos. O mais recente aconteceu durante a visita oficial (que acabou por não se concretizar) do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, a Belgrado. A Bulgária, a Macedónia do Norte e o Montenegro, três países fronteiriços com a Sérvia que fazem parte da NATO, decidiram fechar o espaço aéreo à Rússia — o que, na prática, impossibilitou a deslocação do chefe da diplomacia russa ao país dos Balcãs.
O governo russo não tardou em reagir. Numa conferência de imprensa, Sergei Lavrov acusou a União Europeia e a NATO de terem orquestrado um “ato hostil e sem precedentes”, garantindo que as relações entre a Rússia e a Sérvia “não serão destruídas”. O Presidente sérvio, que tinha previsto um encontro com o ministro russo, também criticou aquilo que diz ser “a histeria destinada a um pequeno país”. “Esse pequeno país não pode existir. A histeria mostra o que eles querem. Eles não conseguem aceitar nada que tenha a ver com a Rússia e chega a um ponto em que eles se vingam num pequeno país”, disparou Aleksandar Vučić.
No meio disto tudo, o que liga a Sérvia à Rússia? Por que motivo, apesar de condenar a invasão à Ucrânia, Belgrado continua a manter em aberto os canais diplomáticos com Moscovo? E qual a razão para a adesão à União Europeia?
A dependência energética face à Rússia
Na Europa, vários países dependem do gás natural russo — e a Sérvia é um deles. Um dado mostra com clareza o nível de dependência energética de Belgrado face a Moscovo: em 2020, 89% das importações de gás do país balcânico vinham da Rússia, mostra a estatística elaborada pelo portal Statista. “A Sérvia depende da Rússia no que concerne ao fornecimento de energia”, admite Vuk Vuksanović.
Com um acordo de fornecimento de gás prestes a terminar, os dirigentes sérvios decidiram prorrogar, no final de maio (portanto, já em pleno conflito militar), o contrato com a Rússia por mais três anos. “O que posso dizer é que chegámos a acordo em vários pontos, que são muito favoráveis para a Sérvia”, afirmou Aleksandar Vučić após a celebração da parceria, destacando que o tempo de vigência do acordo é um “dos elementos que se coaduna muito bem com a Sérvia”. Se tudo correr como planeado, o contrato termina em 2025 — ano em que se prevê que o país dos Balcãs entre na União Europeia.
Terá este acordo uma vertente política ou será uma questão meramente económica? Vuk Vuksanović não tem dúvidas e aponta para a segunda hipótese. O governo sérvio “precisava desesperadamente de um acordo, uma vez que o antigo tinha expirado”. O contexto também foi fulcral, realça o especialista: “A crise global de energia e a crise de matérias-primas tornam o acordo ainda mais importante para a economia sérvia.”
O ex-diplomata atesta que a “dependência russa é uma realidade”, mas destaca que a Sérvia, a “longo prazo”, não se inibirá “de avançar com outros projetos que possam levar à diversificação das fontes de energia”. “Contudo, o acordo mostra que não é fácil para Belgrado romper os laços com Moscovo.”
Não obstante, a celebração do prolongamento do contrato deu-se num momento em que a União Europeia ultimava a aplicação do sexto pacote de sanções contra a Rússia, tentando diminuir a dependência face às fontes energéticas russas. Bruxelas não avançou com um embargo ao gás russo (apenas a 90% das importações de petróleo, a concretizar até ao final do ano), mas assegurou estar a fazer todos os esforços para que isso aconteça. Pelo contrário, a Sérvia parece não querer percorrer o mesmo caminho.
UE. Crescimento económico ou farsa política?
A invasão da Ucrânia pela Rússia colocou a nu as divergências diplomáticas entre a União Europeia e a Sérvia. No entanto, em termos económicos, Belgrado continua a querer integrar-se no mercado comum. Os 27 Estados-membros são os “principais parceiros económicos do país”, aponta Vuk Vuksanović, que também salienta que o governo sérvio necessita desta “bênção política” de modo a “permanecer no poder”. Para se conseguir juntar à UE, o ex-diplomata antecipa que a Sérvia poderá “potencialmente juntar-se a algumas das sanções europeias”. “Mas não a todas”, ressalva.
Em 2021, a Alemanha e a Itália foram os principais mercados internacionais para onde a Sérvia mais exportou. Os dois países fundadores da União Europeia representam 21,5% das exportações do país. Outros Estados-membros, como a Hungria e a Roménia (dois vizinhos), também são fundamentais para a balança comercial sérvia. Por sua vez, a Rússia totaliza apenas 3,9% das exportações da Sérvia.
A Sérvia mantém esta dependência à Alemanha e a Itália no que concerne às importações, mas a China também é um dos principais mercados que influenciam a economia sérvia.
Por várias vezes, o Presidente sérvio fez questão de sinalizar que os cidadãos sérvios beneficiariam do mercado comum europeu, nomeadamente com a “abertura das fronteiras com a Hungria, Croácia, Eslovénia e os Estados do Espaço Schengen”. Para o crescimento económico da Sérvia, Aleksandar Vučić nota que é necessário “trabalhar com a União Europeia”. Mesmo que Bruxelas não dê luz verde à adesão de Belgrado, o chefe de Estado insiste que os 27 deviam integrar os “Balcãs Ocidentais” no mercado comum: “Significaria muito para os cidadãos e para a economia.”
No entanto, o objetivo sérvio de entrar na UE é questionado pelo professor de História e Política do Sudeste Europeu e diretor de um centro que estuda o mesmo tema na Universidade de Graz (Áustria), Florian Bieber. Em declarações ao Observador, Bieber assinala que a população sérvia tem vontade de entrar na União Europeia, mas contrapõe com a ideia de que Aleksandar Vučić “tem tentado” reduzir a vontade “dos cidadãos da Sérvia em entrar na UE”.
“A pressão [para entrar na UE] dos cidadãos é agora menor do que há uma década. Muitos meios de comunicação social pró-governo têm difundido propaganda a favor da Rússia durante décadas, sendo que este comportamento aumentou no início da guerra na Ucrânia”, expõe Florian Bieber, referindo que a consequência direta desse posicionamento se traduz no facto de a população sérvia tornar-se cada vez mais anti-Ocidente. “Isso faz com que aderir à União Europeia seja mais difícil.”
As últimas sondagens parecem confirmar a tese do professor universitário. De acordo com a Agence France-Presse, um estudo mostra que 40% dos sérvios estão contra a adesão à UE, preferindo cimentar a aliança com a Rússia. “Parece que [os políticos sérvios] passaram a última década a preparar a sociedade sérvia não para aderir à UE, mas antes para formar uma aliança com Moscovo”, comentava, Srdjan Cvijic, membro do think tank Grupo de Consulta de Políticas dos Balcãs na Europa, à agência de notícias francesa.
A memória histórica sérvia
A contribuir para este sentimento anti-UE e anti-Ocidente está o passado da Sérvia e a memória histórica que prevalece atualmente. Enquanto principal centro de decisão jugoslavo, o país esteve anos sob o regime comunista de Tito. Após a dissolução da Jugoslávia, os vários países dos Balcãs envolveram-se numa guerra fratricida que aumentou as tensões na região.
“Existe um forte apoio à Rússia por parte da população sérvia, que é parcialmente fomentado por mitos históricos e narrativas”, clarifica Florian Bieber, que relaciona em parte este “sentimento anti-Ocidente” com as “guerras” que ocorreram na sequência do desmembramento da Jugoslávia, “especialmente a intervenção no Kosovo, em 1999, por parte da NATO”.
Com raízes eslavas e ortodoxas, bem como um passado comunista, a Rússia e a Sérvia foram aliadas em várias ocasiões na História. E isso ainda detém uma grande importância em certos setores da população sérvia que, no conflito entre a Rússia e a Ucrânia, preferem posicionar-se do lado do Kremlin.
No entanto, apesar do apoio popular à causa russa, os dirigentes diplomáticos da Sérvia condenaram, na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, a invasão da Rússia à Ucrânia e também votaram a favor da expulsão de Moscovo do Conselho dos Direitos Humanos.
1/2 I praise the approval by the #UN GA with an unprecedented majority of votes of the resolution with a strong demand to Russia to immediately stop the treacherous attack on ????????. I’m grateful to everyone & every state that voted in favor. You have chosen the right side of history pic.twitter.com/1sb0qjxXKs
— Володимир Зеленський (@ZelenskyyUa) March 2, 2022
As reações nas ruas não demoraram. Em frente à embaixada da Rússia em Belgrado, milhares de pessoas protestaram contra a condenação que a Sérvia fez da invasão russa da Ucrânia. Ecoando cânticos como “não à NATO” e “os sérvios e os russos são irmãos”, os manifestantes faziam acompanhar-se por bandeiras dos dois países. “Eu vim para apoiar a Rússia e dizer ‘não’ às políticas das autoridades de Belgrado, que tomaram uma decisão vergonhosa de votar contra a Rússia nas Nações Unidas”, disse um dos presentes no local à agência Reuters.
A questão do Kosovo e a importância do veto russo na ONU
Outros dos vértices da relação entre a Rússia e a Sérvia passa pelo Kosovo, um território com maioria da população muçulmana que se quer livrar do jugo da ortodoxa Sérvia e que declarou unilateralmente a sua independência em 2008. Contudo, Belgrado tem enveredado todos os esforços diplomáticos para não conceder autonomia às autoridades kosovares. Para isso, conta com um apoio de peso: a Rússia. Vuk Vuksanović corrobora que “as disputas no Kosovo” são um dos motivos para que exista este impasse entre Europa e Moscovo por parte dos dirigentes políticos do país dos Balcãs.
“A Sérvia não se junta às sanções para manter uma boa relação com a Rússia”, indica, por seu turno, Florian Bieber, que salienta que a “Rússia ajudou a Sérvia na questão do Kosovo, o que é importante para a Sérvia por causa do papel russo no Conselho de Segurança das Nações Unidas”.
Para um país ter o estatuto de independente aos olhos da comunidade internacional — e num caso de uma declaração de independência unilateral (a Sérvia não aceita a autonomia do Kosovo) —, é necessário que o Conselho de Segurança da ONU (composto por EUA, França, Reino Unido, Rússia e China) não vete o reconhecimento do território. Ora, o corpo diplomático russo tem exercido o seu direito ao veto, impedindo, por conseguinte, a independência do Kosovo, algo que a Sérvia vê com bons olhos.
Maxim Samorukov, membro do think tank Fundo Carnegie para a Paz Internacional, explica, num relatório sobre o impacto da influência russa no Kosovo, que esta relação de dependência concede uma”grau de influência” à Rússia na região dos Balcãs e também na Sérvia. “O Kremlin receia que o fim do conflito entre a Sérvia e o Kosovo vá diminuir o poderio na Sérvia e possa minar severamente a sua influência nos Balcãs.”
“Moscovo está bem posicionado para deter” a independência do Kosovo, reforça Maxim Samorukov, que constata que Vladimir Putin “desfruta de uma elevada popularidade em praticamente toda a sociedade sérvia” e também é capaz de influenciar “as elites políticas sérvias”. O especialista vinca que, “de todos os ângulos, Moscovo também espera usar a sua influência sobre a questão do Kosovo para alavancar o seu relacionamento conflituoso com o Ocidente” — e exportar essa animosidade para a Sérvia.
Sérvia substituiu Rússia pela China?
As razões históricas e ideológicas mantêm bem viva a aliança entre a Rússia e a Sérvia. Porém, o sentimento anti-Rússia, que é transversal em toda a Europa, leva a que os diplomatas de Belgrado procurem outro parceiro económico, que já estava definido antes da guerra que Moscovo começou no final de fevereiro.
“Mesmo antes da guerra, a Sérvia substituiu a Rússia pela China enquanto o principal parceiro fora do Ocidente”, frisa Vuk Vuksanović, que enfatiza que, à “luz dos últimos acontecimentos”, “todos os olhos estão na Rússia”. O resultado? Para o ex-diplomata, “Pequim e Belgrado sentem-se ainda mais motivados a valorizar a sua parceria”.
A compra de vacinas contra a Covid-19 revela que a aliança entre a China e a Sérvia já se estava a consolidar antes da invasão da Ucrânia. Como não fazia parte da União Europeia e não teve acesso ao processo de compra conjunta dos 27, Belgrado teve de procurar outras alternativas para adquirir o fármaco. Assim, as autoridades sanitárias sérvias compraram dois milhões de doses da vacina desenvolvida pelos laboratórios chineses (Sinopharm), além de ter adquirido outros equipamentos de proteção individual oriundos da China.
Recentemente, a cooperação entre os dois países manifestou-se também no domínio militar. A Sérvia comprou sistemas de mísseis terra-ar à China. No final de abril deste ano, Belgrado revelou o negócio (que até então havia sido mantido em segredo) e realizou uma demonstração do armamento. O Presidente sérvio esteve no local e assegurou que não permitirá que a Sérvia se transforme “num saco de pancada para ninguém”.
“A China é a grande vencedora na guerra da Ucrânia em todos os lugares, incluindo na Sérvia”, sentencia Vuk Vuksanović. E Belgrado já fez questão de deixar claro que quer estar ao lado dos vencedores.