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Sexo, drogas e rock 'n' roll. O evangelho segundo Odair José

Nos anos 70, um cantor romântico juntou divórcio e drogas ao Novo Testamento num dos álbuns mais controversos da música brasileira. O compositor crucificado na ditadura renasceu agora num novo disco.

Imaginem que, há 20 anos, o nosso maior benfeitor da canção romântica, Tony Carreira, entra ensimesmado nos escritórios da editora. Em 1999, a solidão amorosa vende-se como pãezinhos quentes e Dois corações sozinhos confirma que basta um carinho para Portugal render-se. Porém, Tony Carreira recusa-se a gravar qualquer outra canção romântica. O próximo álbum, explica, é conceptual, é um enquadramento de Jesus Cristo nos nossos dias, como qualquer miúdo, filho de pais divorciados, com as suas dúvidas sexuais e incursões alucinógenas. Este cenário é obviamente uma fantasia. No entanto, no final dos anos 70, em plena ditadura brasileira, foi exatamente esta intransigência que o popularucho Odair José apresentou à sua editora. “O Filho de José e Maria foi tão além da curva que escandalizou todos os segmentos da época, creio que ainda incomoda”, confessa ao Observador sobre o álbum que resultou em ostracismo e excomunhão, até hoje estampado no seu corpo, feito tatuagem. “Me sinto realizado por ter produzido esse disco, ele define a minha história.”

Se Roberto Carlos é presença comum nas cantorias românticas portuguesas, Odair José é um completo desconhecido. A nossa comparação alegórica com Tony Carreira não é descabida, Odair cantava para a mesma camada popular, era igualmente renegado pela imprensa, enxovalhado com epítetos como “O Terror das Empregadas”. Somente agora, mais de quarenta anos depois de O Filho de José e Maria, é que uma certa franja da população brasileira compreendeu que Odair foi injustamente crucificado, e que tal como o protagonista desse álbum histórico, morreu pelos nossos pecados para nascer novamente. “É com toda certeza o meu trabalho mais emblemático e talvez da história da discografia brasileira”, afirma destemido sobre o disco que começa a germinar inspirado pelo O Profeta de Kahlil Gibran e uma dose considerável de estupefacientes. “Passado quarenta e dois anos do seu lançamento ainda é motivo de análise e admiração.”

“Ele foi pensado por mim como uma ópera, a história de uma pessoa desde o seu nascimento até o seu encontro final, seja com a morte ou com a vida”, reflete Odair, a lembrar que, “musicalmente” tentou “fazer algo que tivesse realmente relevância, na companhia de excelentes músicos e engenheiros”. Além de criar um protagonista transversal para a juventude brasileira da década de 70, entre o sacro e o sacrilégio, a ditadura e a libertinagem, decidiu convidar os embrionários do groove Azymuth e os extraordinários músicos Hyldon e Luiz Cláudio Ramos. O Filho de José e Maria seria a improvável união de uma série de músicos no auge da forma com um compositor a tentar mimetizar Cristo com canções de morte e renascimento, tristeza e alegria, desde o balanço catártico de “Não Me Venda Grilos” ao sertanejo funkeado “De Volta às Verdadeiras Origens”. A principal ambição era superar as vergonhas do passado, admitir que se Jesus nasceu é porque foi homem, é porque sofreu.

"É com toda certeza o meu trabalho mais emblemático e talvez da história da discografia brasileira. Passado quarenta e dois anos do seu lançamento ainda é motivo de análise e admiração.”
Odair José sobre "O Filho de José e Maria"

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Hoje, aos 71 anos, o regresso de Odair José à sua época maldita está distante de qualquer ambição de resolver imbróglios milenares. O 37º álbum de originais, Hibernar na Casa das Moças Ouvindo o Rádio, trata da alegria de estar vivo à margem, de gracejar sem rodeios sobre gang bangs e outros fetiches, na companhia do velhinho rock and roll e uma malta jovem, sejam As Bahias e a Cozinha Mineira ou o Jorge Du Peixe. Porém, neste Brasil conservador de 2019, um septuagenário cantar sobre prostituição e orgias é outro ato de extrema irreverência. “O conceito é de que uma canção plugada na outra vai interagindo dentro do mesmo universo, como se fosse uma pequena ópera, seguindo a temática de O Filho de José e Maria”, descreve, apontando as letras como “observações do tempo” para “combater a hipocrisia estabelecida”, e indica ainda a influência inevitável dos Beatles, Hendrix e Stones nesta espécie de continuação moral do disco de 1977.

Nos anos 60, apesar da omnipresença de Roberto Carlos — que aquece a juventude e condena tudo o resto ao inferno –, o Brasil não ficou indiferente aos quatro de Liverpool. Assim como no resto da humanidade, propagaram-se bandas de ritmos modernos. “Naquela época em Goiânia acontecia o evento Beatlemania e em toda rua tinha uma banda”, recorda sobre a então pacata cidade natal, hoje uma academia da música alternativa, desde os Boogarins ao concorrido Festival Bananada, onde este mês tocaram Os Paus. “Ganhei o meu primeiro instrumento aos sete anos, um cavaquinho. Participei de algumas bandas na minha adolescência, sempre tocando guitarra e cantando.” E será que, tal como o protagonista de O Filho de José e Maria, cresceu numa família divorciada, “seis meses na casa da mãe” e “seis meses na casa do pai”? “Não, meus pais sempre estiveram juntos até o fim de suas vidas, eles trabalhavam na zona rural e sempre foram proprietários de terras.” Uma infância corriqueira de Goiânia, outro sertanejo entre o gado a sonhar com uma mudança de vida, manhas e amigos — como canta em “Não me Venda Grilos”, que teria o infalível destino apontado para uma cidade, cheia de encantos mil.

[“Não me Venda Grilos”, um dos temas de O Filho de José e Maria:]

“Quando me transferi para o Rio de Janeiro com o sonho de me transformar em um profissional da música, eu era sim ‘Um Rapaz Caipira’”, conta, a nomear uma das canções do seu novo disco, sobre um campino que passa a conviver no centro do furacão. “Fui para o Rio de Janeiro no final de 1967 e com intenção de gravar as minhas composições, o que aconteceu a partir do ano de 1970, quando assinei meu primeiro contrato com a gravadora CBS.” Primeiro na CBS — filial brasileira da Columbia, e depois na Polydor –, torna-se numa das principais vozes da canção brega, género popular que podemos descrever atabalhoadamente como um misto de pimba e romântico.

“A música brega no Brasil é toda aquela produção musical não identificada à tradição ou à modernidade, todo artista que não se enquadra neste dualismo encontra grande resistência para obter reconhecimento das elites culturais”, sintetiza ao Observador Paulo César de Araújo, autor de Eu não sou cachorro, não, obra que explica o fenómeno dos músicos considerados bregas. “Para ser bem qualificado pela crítica ou aceito pelas elites intelectuais o repertório precisa estar identificado ao que se considera ‘tradição’ [raízes do samba, baião, folclore] e/ou ao que se considera ‘modernidade’ [influências de vanguardas literárias ou musicais como o jazz, bossa nova, tropicalismo, rock inglês]. Fora desse receituário, não há salvação.”

Odair José, numa fotografia de Vinicius Denadai

Odair José não era tradicional, e muito menos moderno, pelo menos na conceção de quem canoniza a música popular brasileira. Em “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar” consegue surpreender de uma assentada a censura, os fãs, os críticos e a própria editora. O órgão e guitarra arrastada é calcado de Roberto Carlos, com a particularidade do tom exasperante de Odair, que desculpa-se pelo primeiro capítulo desta história amorosa — “Foi só pra me distrair”, que antecede à rendição total, “Olha, a segunda vez que eu estive aqui/ Já não foi pra distrair”. O grito do Ipiranga liberta a mulher deste lugar: o prostíbulo. Ao contrário do Rei Roberto, Odair está entre a plebe, não está fechado em si, está aberto à humanidade, às questões do seu tempo, seja a prostituição ou a propagação da pílula (“Uma Vida Só”), o que enfurece muito boa gente. Em 1973, Caetano Veloso escolhe Odair como parceiro para um concerto comunitário, obrigado depois, a defender a pertinência deste dueto perante a audiência encolerizada.

“O meu jeito de compor é o de trazer assuntos para um debate aberto, e ajudar com isso a esclarecer que temos nossos direitos e que precisamos que respeitem nossas diferenças”, esclarece o compositor sobre os primeiros sucessos na década de 70. Odair exige total liberdade criativa, convida a banda Azymuth e lança uma série de discos surpreendentes, entre eles o homónimo de 1973, que tem “Deixa Essa Vergonha De Lado”, a canção dedicada às empregadas domésticas: “Eu já sei que essa casa onde você diz morar/ Onde todo dia no portão eu venho lhe esperar/ Não é a sua casa”; “Deixe essa vergonha de lado/ Pois nada disso tem valor/ Por você ser uma simples empregada/ Não vai modificar o meu amor”. “Naquela época não havia apenas repressão política, havia também repressão moral”, explica Paulo César de Araújo. “O cantor podia dizer ‘eu te amo, eu te adoro’. Mas Odair cantava: ‘Eu te amo debaixo do chuveiro’. Aí era proibido. As composições de Odair focalizaram temas como prostituição, homossexualismo, adultério, racismo, alienação, consumo de drogas, exclusão social. E por isso ele foi um dos artistas mais censurados pelo Governo Militar”.

[“Deixa Essa Vergonha de Lado”, um dos temas do álbum Odair José de 1973:]

“Olha, desde o primeiro trimestre de 1972 que a Censura apareceu no meu trabalho”, confessa Odair José. “Quando ‘Eu Vou Tirar Você Desse Lugar’ fez sucesso, fui chamado ao departamento de Censura e ouvi que, a partir daquele momento, estariam de olho nas minhas composições.” “Odair José foi realmente corajoso, ainda mais porque, ao contrário de artistas como Caetano Veloso e Chico Buarque, que atingiam um segmento de classe média, universitário, progressista, Odair falava para os baixos estratos da população, um público maioritariamente católico, conservador”, contextualiza Paulo César de Araújo. “As suas canções convidam o ouvinte à reflexão e ao questionamento.” “Foram muitos momentos desagradáveis, mudar letras, tirar música do disco e ser detido após cantar alguma canção proibida em shows e ser levado para assinar termos de desobediência”, recorda Odair, a sublinhar no entanto que, “no meu caso a censura ainda continua, é a hipocrisia das pessoas, pois eu falo o que elas escondem”.

E um certo dia, o ganha-pão da Polygram entra ensimesmado nos escritórios da editora. Consentem editar mais canções sobre sexo no chuveiro ou prostitutas, mas derivações do Novo Testamento, isso é um suicídio coletivo. O compositor mantém-se firme na urgência de editar o projeto ambicioso e convence a RCA Victor. Mal por mal, deve ter pensado a editora, este cantor excêntrico pode ser um novo Roberto Carlos. Aliás, numa audição supérflua, “Fora de Realidade” de O Filho de José e Maria é o mesmo soul musculado que o Rei fez na década de 70, trata o sexo e consequente gravidez com o devido respeito, existe o “mais lindo dos segredos” escondido no corpo após a visita de um anjo, que apareceu num fim de tarde. As complicações estão na sequência do arco narrativo: após a singela Anunciação, começa um estranho debate entre um sacristão e padre em “O Casamento”, uma desconfiança agressiva dos mistérios da fé, e depois, em “O Filho de José e Maria”, é o diabo a quatro:

“Maria e José se amaram e um lindo menino nasceu
Depois eles dois brigaram e o menino sofreu
Maria seguiu seu caminho, José voltou para Belém
E o pobre menino sozinho sofreu mais que ninguém”.

“A reação das pessoas foi a de que a quantidade de droga estava além do permitido, e que eu estava louco. Mas não era nada disso. Drogas eu usava, mas a ideia do disco era a vontade de não ficar repetindo fórmulas e trazer algo diferente, se possível melhor."
Odair José sobre "O Filho de José e Maria"

“A reação das pessoas foi a de que a quantidade de droga estava além do permitido, e que eu estava louco”, relembra o compositor sobre o fiasco de vendas do álbum. “Mas não era nada disso. Drogas eu usava, mas a ideia do disco era a vontade de não ficar repetindo fórmulas e trazer algo diferente, se possível melhor.” “Na época, Odair tentava dar uma virada na carreira, talvez com o desejo de participar do circuito cultural, adquirir prestígio, ser aceito pela intelectualidade, o público universitário e a crítica musical”, considera o escritor de Eu não sou cachorro, não. “O facto é que, combatido pela Igreja, desprezado pela crítica e ignorado pelo público, o álbum foi recolhido e dissolvido na fábrica da gravadora.” Segundo reza a história, um bispo de Campo Grande não perdeu tempo e procede à excomungação do autor deste sacrilégio. “Não sei se cheguei a ser excomungado pois não me importei com o facto. Tenho fé mas não sou religioso, não preciso de intermediários para falar com Deus.” A carreira de Odair demoraria décadas a recuperar da hecatombe. “Não soube fazer a leitura do que estava acontecendo e fiquei fragilizado como pessoa e como profissional. O resultado foram vinte anos de trabalhos sem o conteúdo a altura dos ideais do compositor Odair José.”

Lentamente, Odair José começa a ser recuperado pelas novas gerações. Em 2015, com o álbum Dia 16, o cantor crucificado renasceu como fértil compositor, tendo o último capítulo do evangelho no álbum deste ano: Hibernar na Casa das Moças Ouvindo o Rádio. Quatro décadas depois, Odair tem o distanciamento necessário para mirar novamente o conservadorismo vigente, criticar abertamente Bolsonaro e companhia, que nutrem nostalgia pelos tempos da mesma Ditadura Militar que castrou este cantor popular. “O Filho de José e Maria era para ser um álbum duplo com dezoito canções. Oito foram proibidas pela Censura e as dez lançadas foram odiadas pelo sistema e toda sociedade”, reflete Odair, quando questionado sobre a hipótese deste álbum controverso ser editado agora. “Infelizmente os tempos de hoje estão ainda piores. Houve um retrocesso político e o ser humano como parte de uma comunidade piorou.” E que triste conclusão, assumir que vivemos num tempo que renega um compositor de cometer a sua maior loucura, que não é uma interpretação bíblica, mas somente cantar a complexidade da vida:

“Mas que loucura
A gente ter que viver”.

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