O link da Direção-Geral da Saúde (DGS) destinado à vacinação de imigrantes sem número de utente permite que portugueses de todas as idades se inscrevam para o agendamento da vacina contra a Covid-19. A task force garante que as inscrições são depois validadas através de um “sistema de filtros”, que “à partida” elimina as pessoas com registos anteriores nas bases de dados do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Mas, ainda assim, não exclui que possam existir erros e pessoas a contornar o sistema.
O Observador sabe de pelo menos um caso de uma jovem portuguesa de 21 anos que se inscreveu através do link dos migrantes, sem se aperceber de que o fazia de forma indevida, e que foi chamada esta semana para ser imunizada, escapando ao limite de idade (23 anos) do autoagendamento. A task force diz que a situação é “pouco provável“, mas admite acionar “as autoridades competentes para averiguação”.
Embora o formulário — criado a pensar em imigrantes em situação ilegal ou em processo de legalização — peça informação como a nacionalidade e a naturalidade, o sistema não exclui automaticamente portugueses que tentam inscrever-se. Foi o caso de Ana (nome fictício), 21 anos, que nem estranhou muito quando o irmão, de 23, lhe enviou o link, “há cerca de três semanas”, para que marcasse a vacinação contra a Covid-19. “Nas notícias começaram a dizer que as pessoas a partir dos 18 anos iam começar a ser vacinadas. Então achei que já podia ser“, conta ao Observador. Na verdade, não podia autoagendar-se, mas o site que lhe foi enviado nada referia sobre esse impedimento. No cabeçalho, lia-se apenas “Vacina COVID-19”, com a instrução para que preenchesse um formulário.
Foram pedidos dados como o nome, a data de nascimento, o país de nacionalidade, mas também o de naturalidade. Sem se aperceber, Ana estava a inscrever-se indevidamente para a vacina sem que o sistema o detetasse. Naquela altura o autoagendamento ainda só começava a abrir para os maiores de 27. No caso dos migrantes, as faixas etárias mais novas começaram antes a receber a vacina por serem “um grupo com um forte potencial para originar focos de disseminação” devido às condições em que “muitas vezes coabitam”, indica a task force, ao Observador. É por isso que o sistema não barra a inscrição de menores de 23 anos.
A mesma fonte diz que o link “não permite o agendamento”, mas apenas “uma inscrição para posterior validação através de um sistema de filtros que, à partida, garante a eliminação de pessoas com registos anteriores nas bases de dados de utentes da Saúde“. Esse sistema de filtros não é automatizado: há uma equipa dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) responsável por cruzar o nome dos inscritos com a base de dados do SNS, para garantir que não há registo prévio e que a inscrição é válida. “Foi dessa forma que das cerca de 150 mil inscrições (muitas repetidas ou sem dados suficientes) apenas 30 mil foram validadas para serem consideradas para vacinação“, adianta a mesma fonte.
Ou seja, embora considere que o caso mencionado “parece pouco provável”, a task force não exclui que o erro tenha sido a esse nível: que a inscrição da jovem tenha passado pela equipa responsável pela filtragem, que a validou indevidamente, e que por essa via tenha recebido a convocatória e sido vacinada. Outra possibilidade é o agendamento ter sido feito a nível local, pelo centro de saúde ou pelo centro de vacinação (em Lisboa), o que também teria acontecido de forma indevida. Esta hipótese é igualmente pouco provável dado que, se nalgumas partes do país (menos populosas), já há jovens com menos de 23 anos a serem vacinados (por haver maior disponibilidade de vacinas e os grupos anteriores já estarem inoculados), Lisboa é a região do continente com menor percentagem de pessoas com a primeira dose.
Enfermeiros no centro de vacinação não levantaram entraves
Na secção do site da Direção-Geral da Saúde dedicada à vacinação, a primeira opção (“agendar a vacinação”) destina-se à generalidade da população. Através desse link, o sistema barra, atualmente, o autoagendamento a menores de 23 anos. Só que por baixo aparece uma outra ligação, bem identificada: “Não tem número de utente”.
Escolhendo essa opção, o utilizador é direcionado para um formulário, sendo que nessa nova página não está identificado a quem se destina a área. Quem, como Ana, recebe o link direto não se apercebe de que aquele não é o sítio certo para se inscrever.
Ao Observador, Ana conta que, depois de preencher os dados, o site a informou de que a inscrição estava confirmada, mas sem especificar a data da vacinação. A mensagem com a confirmação, que costuma ser enviada até três dias após o autoagendamento (quando este é feito pelo site destinado à generalidade da população), não chegou.
“Achei estranho não receber nada. Tentei mais recentemente voltar a fazer a inscrição, mas desta vez pesquisei mesmo no Google. O link que encontrei [o correto] não me deixava fazer a inscrição porque dizia que era só para maiores de 23.” Esqueceu o assunto, mentalizada de que, afinal, ainda “teria de esperar”.
Mas cerca de três semanas depois, chegou a confirmação via SMS, já após a meia-noite, 10 horas antes da marcação. “A minha primeira reação foi: isto não deve ser mesmo a Saúde 24 a chamar-me. Deve ser um vírus ou assim”. Não era. À hora marcada chegou ao local de vacinação, em Lisboa. Disse que tinha 21 anos quando lhe perguntaram, mas “ninguém comentou ou pareceu desconfiado“.
“Fui seguindo as filas, perguntaram-me se tinha agendamento, eu disse que sim. Mostrei a mensagem e não houve problema nenhum“, refere. Quando esperava no ‘recobro’ — no período de 30 minutos de vigilância após a inoculação —, conheceu outra rapariga, mais nova do que ela, que também tinha acabado de ser vacinada. Ana não sabe como a jovem que conheceu se inscreveu, nem se preenchia um dos requisitos para que, mesmo tendo menos de 23 anos, pudesse ser vacinada.
As regras em vigor ditam que a vacinação de jovens com menos de 23 anos pode acontecer se estes estiverem prestes a ir de Erasmus, a estudar em universidades no estrangeiro, a participar em campeonatos internacionais, ou se tiverem determinadas comorbilidades. Não foi o caso de Ana. O Observador sabe que a política dos centros de vacinação tem sido, regra geral, vacinar os nomes que apareçam na lista, que é sempre validada antes de ali chegar, mesmo que a pessoa em causa seja mais nova do que a idade permitida para a vacinação.
O autoagendamento para pessoas com 20 ou mais anos deveria abrir só a 14 de julho, mas a “rarefação” de vacinas disponíveis perante a elevada procura pelo autoagendamento levou a task force para o processo de vacinação a adiar essa data por duas semanas (só deverá ficar disponível na próxima semana, juntamente com os maiores de 18 anos).
O caso de Ana aconteceu numa altura em que o país lida com um aumento da procura por vagas via autoagendamento e o stock de vacinas não está a conseguir acompanhar. Ao Observador, fonte da equipa coordenadora do plano de vacinação contra a Covid-19 já tinha dito que o problema não é a falta de vacinas, per se, já que os prazos de entregas estão a ser cumpridos, mas sim o elevado recurso a autoagendamento. Aliás, o vice-almirante Gouveia e Melo, coordenador da task force, já fez saber que as vagas para autoagendar a toma da vacina esgotaram em vários concelhos.
Task force. Não faltam vacinas, mas há mais pessoas a querer agendar do que vagas disponíveis
“Embora se continue a inocular cerca de 100 a 110 mil vacinas por dia, existe, também face às necessidade de cumprir com as segundas doses, uma rarefação de vacinas disponíveis para primeiras doses, que limita a capacidade de corresponder à enorme afluência ao processo de vacinação nestas faixas etárias mais novas”, adiantou ao Observador fonte da task force.
O atraso no prolongamento do autoagendamento já foi desvalorizado por Marta Temido. A ministra da Saúde garantiu que as entregas costumam ser feitas no final de cada semana e que os planos de entrega estão “relativamente estabilizados”. Para fazer face à elevada procura, Portugal está a “tentar agilizar a entrega de mais quantidades de vacinas”. Em cima da mesa está a possibilidade de o país receber nos próximos dias uma entrega antecipada de doses da Pfizer cedidas por outros estados que seguem com campanhas de vacinação noutras fases.
Vacinação de migrantes abaixo da faixa etária serviu para diminuir riscos
A task force explica que a vacinação de migrantes não foi feita por faixas etárias, tal como para a generalidade da população, para diminuir o risco de contágio, tendo em conta as “condições como muitas vezes coabitam estes cidadãos”. Esse processo “é possível no âmbito da vacinação de grupos de trabalhadores migrantes utilizando procedimentos semelhantes aos que foram amplamente divulgadas no Alentejo Litoral, por se considerar que, pelas condições como muitas vezes coabitam estes cidadãos, representarem não só um risco para a sua saúde, bem como representam igualmente um grupo com um forte potencial para originar focos de disseminação do vírus na comunidade onde estão inseridos”, afirma a task force.
Por isso, também nos locais de trabalho destes grupos de migrantes, “onde também existiam trabalhadores portugueses, foi decidido também vaciná-los, independentemente da sua faixa etária, não só por uma questão de equidade, mas igualmente para diminuir os riscos destes poderem, da mesma forma, virem a ser potenciadores de focos de disseminação na respetiva comunidade”.
Sobre o site do SNS dirigido especificamente aos imigrantes sem número de utente — “muitos deles em situação não legalizada ou apenas em processo de legalização” —, a ideia foi que o processo de vacinação evitasse “procedimentos que pudessem ser geradores de perda de confiança no processo, optando-se por soluções que maximizam a sua voluntária adesão“.