Carlos Carreira foi o primeiro a falar nisso publicamente e António Costa, ainda que contrariado, acabou por confirmá-lo, minutos depois de recusar comentar o assunto: o autarca de Cascais e o gabinete do primeiro-ministro falaram sobre a hipótese de ser produzida uma vacina contra a Covid-19 em Portugal. Mas a hipótese tem muitos “ses”. Sem a criação de uma fábrica nova, construída de raiz, não há como a vacina russa ser produzida do princípio ao fim em Portugal, garantem ao Observador várias fontes ligadas ao setor do medicamento. O próprio primeiro-ministro desvalorizou as negociações, afirmando que a indústria portuguesa só tem capacidade para “enchimento de frasquinhos”, uma das fases finais da produção.
A Apifarma não conhece, entre os seus associados, quem consiga fazê-lo. A GenIbet, uma start-up portuguesa de Oeiras, que já foi parceira da Moderna na produção de lotes de RNAm há cinco anos, tem a tecnologia, mas não a capacidade de fazer milhões de vacinas.
“Carlos Carreiras informou-nos que tinha contactos com uma câmara, com quem tem relações de proximidade, num país exterior à União Europeia e que teria condições de poder obter licenciamento para produção dessa vacina em Portugal”, disse o primeiro-ministro, na conferência de imprensa de quinta-feira, depois de apresentar a terceira fase do desconfinamento. “Nós dissemos, com certeza, ótimo, desde que seja licenciada pela UE e o local de produção também esteja licenciado pela UE. Se assim for, excelente. Acho que é um bom desafio para a indústria nacional.”
Antes disso, Costa desvalorizou: “Em Portugal, identificamos um conjunto de 11 empresas que podem dar contributos para o processo de produção de vacinas. Infelizmente nenhuma para a produção da vacina propriamente dita, mas podem dar contributos para a fase final. Tentando falar de uma forma simplificada, para o enchimento dos frasquinhos”.
Carlos Carreiras anuncia vacina portuguesa e causa mal-estar dentro do Governo
A vacina em causa é a Sputnik V, confirmou ao Observador fonte do Governo, medicamento russo que aguarda luz verde da Agência Europeia do Medicamento (EMA) desde 3 de março. Embora não possa ser administrado na União Europeia, a Sputnik é já usada em 61 países. Antes desse OK, não é possível produzir o medicamento dentro do território dos 27 Estados-membros.
O local disponível para a produção portuguesa fica em Sintra, nas instalações da Hikma, uma empresa de capital jordano, que tem autorização do Infarmed para produzir 28 soluções injetáveis nas suas instalações.
Embora a Hikma seja das empresas com maior capacidade de produzir injetáveis no país, Portugal está longe de ser considerado um país produtor de vacinas e a esmagadora maioria das que pertencem ao Plano Nacional de Vacinação têm de ser importadas, explica fonte do setor farmacêutico. Por isso, a mesma fonte não acredita que seja possível produzir a vacina em Portugal sem a construção de uma fábrica nova, por muito que isso fosse uma excelente notícia para o país, já que seria uma enorme fonte de rendimento. As linhas de produção instaladas simplesmente não o comportam.
Os dados da Federação Europeia de Indústrias e Associações Farmacêuticas (EFPIA) são claros: construir uma fábrica de vacinas implica um investimento de 500 a 700 milhões de euros e um prazo de até 10 anos até estar pronta a usar, incluindo a obtenção de todas as licenças. Se fosse esta a solução escolhida, explica outra fonte do setor farmacêutico, demoraria sempre bastante tempo até conseguir ter vacinas no mercado, nunca seria no imediato.
Em contrapartida, adaptar linhas de produção é tão ou mais complexo, já que implica esterilizações e até novas licenças emitidas pelo Infarmed. Se, por exemplo, for detetado um lote contaminado, o regresso à produção pode demorar até três semanas.
Ao que o Observador apurou, foi da Hikma que partiu o primeiro contacto, informal, junto da Câmara de Cascais: embora não conseguisse produzir a vacina do princípio ao fim, poderia garantir boa parte da linha de produção, nas instalações de Sintra onde investiu 30 milhões de euros em obras de expansão. No dia da inauguração dessa unidade, em 2019, a Hikma foi notícia: a Câmara de Sintra encerrou a nova fábrica por falta de licença. A equipa de fiscalização impediu mesmo os convidados de entrarem na unidade de produção de medicamentos estéreis injetáveis e, apesar de multada, a situação foi ultrapassada posteriormente.
Depois de a Hikma falar com a autarquia, a câmara liderada por Carlos Carreiras iniciou contactos com o governo de Moscovo, o mais alto órgão executivo daquele estado russo, já que é uma das cidades com que tem geminações (sinergias a nível cultural, social, económico e educacional). A seguir, entrou em cena o Fundo Russo de Investimento Direto, a quem cabe fazer a exploração comercial da vacina contra a Covid-19 e que mostrou disponibilidade de ceder a patente para que a vacina pudesse ser produzida em Portugal, desde que fosse posteriormente distribuída nos PALOP, servindo o país de acelerador de vacinação.
Portugal não é o único país europeu com quem a Rússia tenta fechar acordos. Itália será o primeiro Estado europeu a produzir a Sputnik V, a partir de julho, segundo anunciou o chefe do Fundo Russo de Investimento Direto, no início de março. Além disso, Kirill Dmitriev anunciou já ter acordos para que ela seja produzida em Espanha, França e Alemanha. Portugal não foi, nessa altura, nomeado.
Tal como o primeiro-ministro, também a Apifarma diz não ter conhecimento de que algum dos seus associados tenha capacidade para produzir uma vacina contra a Covid-19 do princípio ao fim, mas lembra que é à Autoridade Nacional do Medicamento que cabe pronunciar-se sobre a construção de novas unidades fabris neste setor.
“O Infarmed é, em primeira linha, a entidade competente para se pronunciar sobre a construção de uma fábrica de medicamentos ou vacinas. De qualquer forma, até hoje nenhum associado da Apifarma nos transmitiu ter capacidade para produzir, do princípio ao fim, vacinas para a Covid-19. Quando isso acontecer — depois da obrigatória aprovação dos reguladores nacionais — será uma boa notícia para Portugal”, respondeu fonte oficial da Apifarma ao Observador. A Hikma não é associada da Apifarma.
Covid-19. Russos garantem que vacina Sputnik será produzida em Itália, Espanha, França e na Alemanha
O fabrico total ou parcial de medicamentos para uso humano e/ou medicamentos experimentais depende sempre da obtenção de uma autorização junto do Infarmed. Assim, para instalar uma nova fábrica seriam necessários vários licenciamentos e respetivas vistorias, processos que são complexos e demorados. A Bluepharma, farmacêutica de Coimbra, pretende avançar com a construção de uma unidade de produção de vacinas, mas que só deverá estar a funcionar dentro de quatro anos.
Depois de autorizada pelo Infarmed, há mais regras a cumprir e só fármacos autorizados pela EMA — luz verde que a Sputnik ainda não tem — podem ser produzidos e lançados no mercado.
O Observador contactou os ministérios da Saúde e da Economia, pedindo mais detalhes sobre as negociações em curso. A resposta chegou do gabinete de Pedro Siza Vieira: “Nada a acrescentar ao que o senhor primeiro-ministro disse sobre este assunto.”