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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Sobre o novo livro de José Sócrates: ambicioso mas não convincente

Afonso Seixas Nunes escreve sobre "O Mal que Deploramos", livro com que José Sócrates discute o tema dos drones, sendo graves os problemas que estes levantam, só que distintos dos abordados pelo autor

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Um amigo meu enviou-me o livro de José Sócrates, O Mal que Deploramos – O Drone, o Terror e os Assassinatos-Alvo, dado que, em parte, versa sobre os meus estudos mais recentes de doutoramento. Por isso, mesmo antes de começar, penso ser importante dizer que quando me deparo com a obra de José Sócrates é tão só com a obra que eu me encontro. A actual situação do autor perante a Justiça portuguesa não é, nem pode ser, objecto de qualquer tipo de consideração.

Sem querer por um momento vender habilitações, em 2013 fui aluno de mestrado da London School of Economics and Political Science (UK) com a tese “The Legality of the USA Drone Strikes in Pakistan” e, desde Outubro de 2013, sou aluno de doutoramento na University of Essex (UK). A minha área de investigação versa sobre a possibilidade e a responsabilidade internacional pelo uso de sistemas autónomos de guerra segundo o Direito Internacional Humanitário. Isto apenas para dizer que, muito embora a minha reflexão verse essencialmente os aspectos jurídicos, um livro que se debruce sobre estas questões é sempre fonte de interesse intelectual e de questionamento.

A ambição das temáticas tratadas

José Sócrates talvez tenha querido trazer para o espaço público português uma reflexão pessoal sobre um tema complexo e fascinante como o dos “homicídios-selectivos”, levados a cabo por drones, no âmbito da política externa norte-americana. O livro descreve a realidade dos novos conflitos armados e a total falta de transparência da Administração norte-americana no recurso a “drone strikes” no Paquistão, no Iémen e na Somália. Desta forma, o leitor é convidado a reflectir, não apenas na distância física com que os pilotos de drones se encontram face à realidade vivida no campo de batalha (11-14; 26), mas sobretudo no distanciamento moral que emerge do recurso a armas como os drones. Eliminar selectivamente alvos militares torna-se uma mera actividade tipo “playstation” (91).

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“O Mal que Deploramos”, de José Sócrates (Sextante)

De acordo com o autor, apesar das inúmeras vantagens que a tecnologia dos drones traz consigo (infinita capacidade para ver, ouvir, sem descanso necessário, maior precisão, determinação de alvos legítimos, etc), o drone é uma arma que “semeia o terror” porque “não apenas vigia, regista e fere, mas também aterroriza. E não apenas os terroristas.” (52). Os drones aterrorizam populações inteiras, provocam um elevado número de vítimas civis (151) e, para ironia, no entendimento de José Sócrates, o drone como arma está “longe de eliminar o terror, ela espalha-o e amplifica-o” (130).

O plano em que o livro nos coloca é de tal confusão que o mais certo é um leitor desatento desenvolver uma espécie de ódio aos EUA sem perceber como, e eu diria, nem sempre com justiça.

José Sócrates mostra-se ambicioso porque qualquer um destes temas dá por si mesmo um livro. O problema é de “quem tu quer tudo perde” na definição dos termos usados, na argumentação e sobretudo na profundidade necessária. O autor chama a atenção do leitor para os inúmeros problemas que os homicídios selectivos colocam do ponto de vista moral, filosófico e jurídico, mas o plano em que o livro nos coloca é de tal confusão que o mais certo é um leitor desatento desenvolver uma espécie de ódio aos EUA sem perceber como, e eu diria, nem sempre com justiça.

O drama dos drones

Desde muito cedo no desenvolvimento de novas armas — como o livro Arte da Guerra de Sun Tzu do Séc. IV A.C. aliás já reforçava — amplificar a maior distância possível entre o atacante e o atacado. À excepção do período medieval, a dissociação do risco sempre foi almejada em qualquer tecnologia de guerra, de forma a garantir uma invulnerabilidade física a quem combate. Neste sentido, o drone é um exemplo perfeito. Os pilotos podem estar milhares de quilómetros de distância do teatro de operações militares, sem possibilidade de sofrer a realidade do campo de batalha. Mas uma pergunta tem que ser feita: por que razão pode o operador humano estar tão distante do espaço de batalha? Porque, como o autor bem explica, os sensores, câmaras, sistemas de comunicação e posicionamento, que um drone dispõe permite o estabelecimento de “padrões de vida” de determinados indivíduos (33; 47) como nenhum humano consegue. Como alguns autores referem, o drone permite “uma realidade aumentada” do terreno que dispensa, em algumas circunstâncias, os soldados no terreno. Sim, em algumas circunstâncias porque, ao contrário do que autor refere, o drone nunca se encontra sozinho no terreno. Existem sempre tropas no terreno, em qualquer dos casos citados. Ainda em Janeiro o New York Times anunciava a morte de um comando norte-americano, no âmbito de um ataque norte-americano com drones.

O drone não decide nada, o operador humano é quem toma quaisquer decisões quanto à classificação dos alvos militares e cadeia de comando pode ascender a mais de 80 pessoas. Este sim é um verdadeiro problema que podia ter sido abordado mas foi esquecido.

No entanto, o drama dos drones agrava-se quando o autor refere que “o drone pode identificar bem um alvo bem escolhido, mas não tem condições para nos dizer se esse alvo foi, ou não bem escolhido” (105). Confesso que me sinto perdido perante a preocupação do autor. Como pode um drone estabelecer qualquer critério de determinação do que possa ser considerado um alvo militar legítimo, se todas as suas acções são determinadas por operadores humanos? A confusão ainda é maior quando lemos que “o drone armado só pode ser soldado, não pode ser polícia. Neste caso, como noutros a arma impõe a sua lei. Entre matar ou capturar é o drone a fazer a escolha” (69, nosso destaque). Ao início pensei tratar-se de uma figura de estilo, mas quando o autor se refere ao apelo internacional para “ uma moratória no uso de drones, por forma a permitir um debate internacional sobre as novas regras para o uso desta nova arma e desta nova tecnologia” (159), o meu receio confirmou-se.

Ora muito bem, é preciso saber distinguir drones dos tão anunciados sistemas autónomos de guerra (SAG) e não confundir a realidade do presente com a incerteza do futuro. Se os primeiros dependem totalmente de operadores humanos, os segundos são aqueles para os quais o relator especial C. Heynes pediu em Abril de 2013 uma moratória para que o tema dos SAG fosse debatido entre as comissões de Estados Partes da Convenção para as Armas Convencionais de 1980, quanto à legitimidade e possibilidade destas novas armas. É preciso ter estas noções bem claras! Um SAG, olhando à directiva norte-americana DoD 3000.09 de 2012, é “um sistema armado que, uma vez activado, pode selecionar e eliminar alvos sem posterior intervenção de um operador humano”. No drone todas as decisões são tomadas directamente por operadores humanos, enquanto no caso dos SAG a ‘inteligência artificial’ será o novo comando operativo! Concluindo, o drone não decide nada, o operador humano é quem toma qualquer decisões quanto à classificação dos alvos militares e cadeia de comando pode ascender a mais de 80 pessoas. Este sim é um verdadeiro problema que podia ter sido abordado mas foi esquecido.

José Sócrates foca-se, quase de forma obsessiva, nas vítimas civis provocadas pelos ataques com drones. Na sua opinião, os ataques de drones só amplificam o fenómeno do terrorismo e os terroristas são criminosos e sujeitos a captura de acordo com a lei penal de um Estado e não eliminados porque não são combatentes! Não existe nenhum conflito armado! Mas não podemos correr o risco de ser simplistas. Capturar terroristas? Mas como e onde? Vítimas civis ou dano colateral?

Três comentários

Em primeiro lugar, o fenómeno do terrorismo não é novo, mas é certo que os acontecimentos do 9/11 chamaram a atenção do público para a possibilidade de “ataques armados” serem levados a cabo por agentes não-estaduais. Milhares de vítimas inocentes… não apenas nos EUA mas também em Bruxelas, Hamburgo, Londres, Manchester, Madrid, Paris… Talvez o termo hoje mais usado seja o de “terrorista”, mas é preciso ter em conta que são antes agentes não-estaduais e, de acordo com a interpretação mais recente do Comite Internacional da Cruz Vermelha, são civis que assumem uma “continous combat function”, isto é, integraram um grupo, ou uma organização armada, passando a ter o status de “combatentes ilegítimos”. Os combatentes ilegítimos matam civis, usam armas, não anunciam a guerra e degolam civis em frente as câmaras de TV… Não podem ser, portanto, objecto de um ataque, ao perderem o seu estatuto de civil?!

O drone pode, desta forma, ser considerada uma ‘arma humanitária’, ao contrário do que José Sócrates ironiza. Humanitária como o próprio autor chama ao direito da guerra de humanitário... o raciocínio é o mesmo.

Em segundo lugar, o livro opta pelo termo “guerra contra o terror”, mas esse talvez seja o erro. Não existe guerra contra o terror, mas contra terroristas; não existem ataques contra, mas antes nos territórios do Paquistão, Iémen e Somália. Por que razão? Pelo simples facto de estes Estados terem dado o seu consentimento para que estes ataques ocorressem e, portanto temos a situação de conflito armado de carácter não-internacional. EUA são os maus? O que dizer do Iémen e do Paquistão que, aos nomes de terroristas, somam nomes de inimigos locais ou do governo em funções? O que dizer do governo do Paquistão que, aos quatro ventos, acusava os EUA de terrorismo pelos drones no seu território e, ao mesmo tempo, permitia (pagamento?) o estacionamento dos drones nas suas bases militares e nunca pôs limite a circulação de drones no seu espaço aéreo? Capturar terroristas? Mas como se estes combatentes saltam de Estado para Estado, sem noção de qualquer tipo de fronteira? Para além do mais, os novos conflitos hoje não se determinam por Estado vs Estado, mas Estado vs ameaça…

Em terceiro lugar, as populações vivem aterrorizadas… é o terror da guerra contra terroristas. Não posso imaginar o que seja viver nas circunstâncias de uma guerra sem fim, mas é preciso não esquecer que os EUA não matam civis indiscriminadamente. Esta guerra tem fundamentação jurídica se olharmos as Resoluções do Conselho de Segurança 1369 e 1373, ambas de 2001. E proclamada uma legitimidade de combater qualquer meio de financiamento ou apoio a organizações terroristas ao abrigo do direito dos Estado à legítima defesa!

Olhando aos dados publicados do Bureau of Investigative Journalism, desde o início das drone strikes até Janeiro de 2017, é possível afirmar que no Afeganistão as vítimas civis ronda os 9%; no Paquistão 29%; no Iémen 23% e, por fim, na Somália 9%. Olhando aos dados comparativos de qualquer outro conflito armado (intervenção humanitária unilateral no Kosovo, por exemplo), o facto é que o número de casualidades civis desceu exponencialmente.

Drone norte-americano: "Não posso imaginar o que seja viver nas circunstâncias de uma guerra sem fim, mas é preciso não esquecer que os EUA não matam civis indiscriminadamente."

LT. COL. LESLIE PRATT / HANDOUT/EPA

O drone pode, desta forma, ser considerada uma ‘arma humanitária’, ao contrário do que José Sócrates ironiza. Humanitária como o próprio autor chama ao direito da guerra de humanitário… o raciocínio é o mesmo. O uso de drones, ao contrário do que parece ser defendido por José Sócrates, permite uma maior protecção da população e objectos civis em comparação com quaisquer “alternativas existentes para a mesma função tática” (103). E mesmo que fosse comparável, uma questão ética tem de ser respondida. Se grupos como Al-Queda, ISIS não respeitam qualquer tipo de direitos, quer das populações civis e dos prisioneiros que fazem, não têm os Estado combatentes o dever de proteger moralmente os seus soldados e a sua população e agir preventivamente? Ou esperamos que tudo arda a nossa volta para lidar com mortos e destruição?

Por último referir o dano colateral. O direito internacional humanitário visa estabelecer um equilíbrio entre o princípio da humanidade e a necessidade militar dos estados para levar a cabo operações militares. O princípio da proporcionalidade, para quem tem que decidir sobre a eventualidade de um ataque, permite que haja vítimas civis, danos ou destruição de objectivos civis, sempre que estes não sejam excessivos e a vantagem militar seja antecipada! Os danos civis resultam como um resultado indesejado e não procurado, ainda que o secretismo insistente da política norte-americana nos deixe no escuro sobre a identidade dos seus alvos. Mas, um elemento importante é que os danos com drones não existem apenas do lado das populações civis… José Sócrates poderia ter mencionado os estudos levados a cabo pelos EUA, porque já os existem, de como os pilotos de drones, dado que acompanham indivíduos durante meses, desenvolvendo mecanismos de empatia com o inimigo, sofrem da síndrome pós-traumático semelhante aos soldados em combate e que, de facto, existe um êxodo destes pilotos da Força Aérea norte-americana (93-94). Que conclusão tirar? Os pilotos de drones procuram mais do que ‘padrões de vida’ mencionados pelo autor, “padrões de comportamento”. Perceber quem é quem de forma a realizar um homicídio selectivo e não colectivo e indiscriminado como outras formas de armamento podem conduzir.

Se o autor do livro entende que o uso de drones só é possível no contexto conflitos armados é precisamente o que temos nos países mencionados. Na minha opinião, os problemas que os drones levantam são bem graves e distintos dos que José Sócrates aponta no seu livro.

Se o autor do livro entende que o uso de drones só é possível no contexto conflitos armados é precisamente o que temos nos países mencionados. Na minha opinião, os problemas que os drones levantam são bem graves e distintos dos que José Sócrates aponta no seu livro.

Por último, um apontamento sobre a bibliografia e oportunidade do livro. Aqui não me dirijo tanto ao leitor mas ao autor do livro:

Sr. Eng., o senhor estabelece no seu livro um critério moral muito elevado quando refere “é nos meus atos que me projeto como ser moral, que me defino como ser humano e com eles, de certa forma assumo um ideal de humanidade”(150). Por isso, fiquei desapontado. Existe, no meu entender, uma relação de excessiva proximidade com o livro de Gregoire Chamayou Drone Theory. Os autores citados por Chamayou, os exemplos dados, as citações feitas mereciam mais cuidado. As obras de M. Walzer, Ignatieff, Melzer, Singer, Strawser, Anderson, citadas pelo Sr. Eng., podiam ter ajudado muito mais. Certamente estarei errado.

Permitam-me apenas uma nota de graça, antes de terminar. Este livro foi escrito por José Sócrates. Existem assinaturas das quais ninguém pode duvidar. Quando lemos neste livro — “talvez para a imprensa se possa dar um nome de um líder terrorista de topo morto aqui, um tenente morto ali ou um grupo de militantes morto acolá” (p.106) – qualquer dúvida que o leitor pudesse ter desvanece.

Afonso Seixas Nunes é padre jesuíta e aluno de doutoramento e assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Essex (UK)

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