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Manuel Sobrinho Simões, médico patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup
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Manuel Sobrinho Simões, médico patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Rui Oliveira/Observador

Manuel Sobrinho Simões, médico patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Rui Oliveira/Observador

Sobrinho Simões: "Não há nada tão parecido connosco como o cancro. Se tiver um gémeo, ele é mais diferente"

Trata doenças, não doentes — mas são as pessoas que o abalam. Sobrinho Simões critica que só 5 mortos por Covid tenham sido autopsiados. Mas acredita que se vai recuperar na luta contra o cancro

Manuel Sobrinho Simões está irritado, chateado, triste e desanimado: como um médico que só se apercebeu que era mortal quando a primeira neta nasceu, ao fim de vários anos a fazer autópsias, esperava viajar mais (e fazer menos vídeochamadas) quando chegasse aos 73. Não sabe o que o tira mais do sério: estar mais parado ou o motivo pelo qual está mais parado. Também não sabe o que mais teme: a morte ou a forma de morrer. Há muita coisa que Sobrinho Simões não sabe e isso é natural para ele. Mas sabe que nunca se sentiu assim.

Em entrevista ao Observador, em vésperas de participar na conferência digital “Saúde: Construir o Futuro”, do Conselho da Diáspora Portuguesa, o médico e patologista, diretor do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup) explica porque é que está mais preocupado com a saúde mental dos portugueses do que com o cancro neste momento, tenta desvendar a origem de todos os medos que o atormentam e apela a que se façam mais autópsias a doentes que morrem com Covid-19 — porque só quatro ou cinco em 17 mil não bastam.

Conferência "Saúde: Construir o Futuro"

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A conferência digital “Saúde: Construir o Futuro”, do Conselho da Diáspora Portuguesa, vai acontecer a 6 de maio e conta com a participação, entre outros, de Durão Barroso, Manuel Sobrinho Simões, Maria Manuel Mota, Eugénia de Conceição-Heldt, Henrique Barros, Ronald de Pinho, Belinda Xavier, John Melo, Alexandre Tavares, Ana Tavares, Rahool Panadiker, Gabriela Gomes, George Perry e Gonçalo Bernardes.

O que tem feito nesta fase em que os meios estão quase todos alocados à Covid-19?
Nós, patologistas, continuamos a fazer o mesmo que eu sempre fiz. No meu caso, estou jubilado e, como professor emérito da Faculdade de Medicina, de manhã venho para o São João e à tarde vou para o Ipatimup, onde sou diretor. Continuei a fazer a minha atividade normal, que é diagnóstico de casos de cancro, sobretudo da tiróide e também de alguns tumores endócrinos. Agora, só para ter uma ideia: antes da pandemia, no Ipatimup faziam-se, em média, 20 casos por mês que vinham do estrangeiro; e agora estou a fazer uns cinco ou seis por mês.

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Aqui no São João continuamos a trabalhar com os nossos alunos — eu, como estou reformado, só leciono disciplinas opcionais —, mas geralmente à distância. E continuamos a fazer a nossa atividade normal de diagnóstico de cancros. Isto diminuiu inicialmente, mas agora está-se a recuperar. E eu ando muito chateado porque nós vivemos de fazer uma investigação clínica a partir de casos difíceis: diagnosticar e tratar bem, mas fazendo investigação.

"O cancro é muito interessante porque é um exemplo da nossa capacidade de continuar a evoluir: temos uma coisa dentro de nós que é uma espécie de gémeo caricatural nosso, mas é muito biológico só. Agora, quando se entra com aspetos psicológicos e aspetos psicossociais e culturais e da civilização, é um mundo muito mais complicado. O cancro não tem cultura nem civilização."
Manuel Sobrinho Simões, patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Com essa diminuição no diagnóstico de cancros, está preocupado com o que ela representa para o futuro?
Está a recuperar, nós vamos recuperar. Não há problema nenhum aí: é verdade que diminuiu a atividade de rotina porque os hospitais ficaram muito sobrecarregados, mas estamos a recuperar. E, do ponto de vista da atividade, nós em pouco tempo vamos recuperar. Agora, a sua pergunta tem outro aspeto: houve pessoas que deixaram de fazer rastreio. Portanto, o problema não é tanto dos hospitais, é mais dos centros de saúde, dos centros de medicina geral e familiar. Há pessoas que iam aos sítios para fazer diagnóstico precoce, para fazer citologia ginecológica, para fazer a mamografia e isto diminuiu.

Isso não é muito para mim como patologista, mas como médico sei que nos atrasámos no diagnóstico de doenças. Não é só do cancro: é também da diabetes, das doenças cardiovasculares… Estamos a ter chatices com as respostas psicológicas a que não estávamos habituados e estamos a aprender como é que as pessoas estão a reagir a uma modificação da situação. Aí juntam-se duas coisas: houve medo de as pessoas irem aos sítios queixarem-se e elas também estão mais preocupadas, o que tem repercussões psicológicas. Sobre isso não sei nada. Eu sou do câncer. O cancro é muito mais fácil do que uma doença psicológica, palavra de honra.

"Cada vez mais, o cancro não é mortal. Temos cada vez mais cancros, porque estamos a ficar mais velhos — aumentar a duração da vida é coisa pior que pode haver em termos de tempo. Se a pessoa tiver 70, 80 ou 100 anos vai ter muitos pequenos cancros e eles estão a aumentar. Mas as pessoas já não estão a morrer de cancro porque nós estamos a trabalhar muito bem no diagnóstico."
Manuel Sobrinho Simões, patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Porquê?
O cancro é muito interessante porque é um exemplo da nossa capacidade de continuar a evoluir: temos uma coisa dentro de nós que é uma espécie de gémeo caricatural nosso, mas é muito biológico só. Agora, quando se entra com aspetos psicológicos e aspetos psicossociais e culturais e da civilização, é um mundo muito mais complicado. O cancro não tem cultura nem civilização.

Depois, temos de tratar bem os doentes: nós estávamos a fazer um esforço de aumentar a prevenção e o diagnóstico precoce em Portugal. É verdade que, durante este ano e meio de pandemia, piorámos no diagnóstico precoce. E, portanto, vai haver no futuro pioria de resultados porque nós passámos a fazer diagnóstico mais tarde do que estávamos a fazer. Eu, durante este tempo em que tive só cinco ou seis casos, por mais estranho que pareça… quando os casos são muito avançados, eu não recebo como diagnóstico difícil porque infelizmente ele é tão avançado que já se sabe diagnosticar. Então o que é que passei a receber do estrangeiro e também de Portugal? São casos benignos, mas que foram tratados como malignos porque a pessoa tem menos apoio das equipas multidisciplinares: vem um tipo sozinho, um jovem de um sítio qualquer, e na dúvida faz por excesso. Isto é paradoxal.

Isto não é frequente: o que é frequente é a gente diagnosticar mais tarde do que devia. Mas aí não há problema de um diagnóstico mais difícil, porque infelizmente é mais fácil. Agora, quando a gente começa a ter casos muito iniciais, há algumas pessoas que trabalham com ambiente de stress e sozinhas, com menos capacidade de consultar outros, e fazem respostas por excesso. Chamamos a isso sobrediagnóstico.

"Não há nada tão parecido connosco como o cancro: se tiver um gémeo univitelino, ele é mais diferente de si do que o seu cancro. É igual a nós (...). Agora com um estudo genético eu sei de onde é que ele veio porque o cancro marca a origem: um cancro no estômago geneticamente é igualzinho ao estômago."
Manuel Sobrinho Simões, patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Que repercussões é que isso traz para a saúde dos doentes?
Cada vez mais, o cancro não é mortal. Nós temos cada vez mais cancros, porque estamos a ficar mais velhos — aumentar a duração da vida é a coisa pior que pode haver em termos de cancro. Se a pessoa tiver 70, 80 ou 100 anos vai ter muitos pequenos cancros e eles estão a aumentar. Mas as pessoas já não estão a morrer de cancro porque nós estamos a trabalhar muito bem no diagnóstico e estamos a trabalhar bem ou muito bem na maior parte dos tipos de cancro. Infelizmente, temos alguns cancros que não fomos capazes ainda de tratar bem.

Quais são os mais preocupantes?
No sistema nervoso central, os tumores cerebrais — e aí não é por serem muito malignos, mas é por serem num sítio muito fechado, dentro da cabeça, e é muito difícil de tratar, têm muitas complicações e é muito mau. Depois temos um problema com o pâncreas, temos um problema com o fígado e temos um problema com o estômago. Por exemplo, o intestino não, a mama não, a próstata não. E é muito importante: nós temos de ter noção que mais de 60% das pessoas já não morrem com cancro no intestino ou com um cancro da mama ou da próstata.

Porque é que morremos dos outros cancros e não desses?
Não sabemos, não sei… Tenho vergonha de dizer que nós não sabemos, mas eu não sei. É verdade que, com o pâncreas, não é fácil fazermos um diagnóstico precoce. Com o intestino basta procurar um pólipo, é fácil. Mas repare: nesse caso, também seria fácil no estômago porque no estômago também se tem um pólipo, uma lesão no estômago. E é difícil, mas não sei porquê. Porque raio é que a gente trata tão bem o intestino e vê-se tão à rasca para tratar o estômago? Significa que o cancro é diferente de pessoa para pessoa; e, dentro de cada pessoa, de órgão para órgão. É por isso que não devemos dizer: “É um cancro”. Não: há muitas doenças que caem neste nome “cancro” e são muito diferentes e variam muito. Mesmo em mim, se eu tivesse um cancro quando tinha 20 anos, ia ser muito diferente de ter um cancro quando tiver 80. O cancro é o resultado de alguma coisa que cresce dentro de nós, mas em relação com o hospedeiro. É por isso que agora estamos a usar muito as terapêuticas imunológicas para tratar os doentes: estimular que seja a própria defesa do hospedeiro que consiga limitar o cancro.

Centro de diagnóstico de cancro. A imagiologia é uma técnica utilizada para detetar a presença de tumores.

Getty Images

Há pouco disse que o cancro é um gémeo de quem o tem. Em que sentido?
Não há nada tão parecido connosco como o cancro: se tiver um gémeo univitelino, ele é mais diferente de si do que o seu cancro. É igual a nós. Nós vimos sempre de uma célula nossa e essa célula teve uma alteração genética, mas nós temos 20 mil genes e uma quantidade enorme de alterações e basta que haja uma ou duas alterações iniciais genéticas para aparecer um cancro. Quando comecei a fazer isto, uma pessoa estava bem e tinha um nódulo no pulmão, víamos e era a metástase de um cancro. Quando não sabíamos de onde é que ele tinha vindo, andávamos a estudar com imagiologia para ver onde é que haveria algum sítio onde estivesse lá outro nódulo que fosse a origem da metástase. Isto era muito chato: as primeiras vezes íamos ver alguma coisa e no fim não era. Porque não tínhamos a certeza. Agora, com um estudo genético sei de onde é que ele veio porque o cancro marca a origem: um cancro no estômago geneticamente é igualzinho ao estômago.

Sabermos mais facilmente a origem do cancro ajuda a que não se morra tanto com ele?
Não é por isso porque, quando estes cancros já têm metástases são muito difíceis de tratar, mesmo quando já se sabe. Infelizmente, esses são os que a gente trata pior. Melhorou porque há rastreio e nós passámos a diagnosticar mais cedo. Outra coisa que melhorou muito foi o tratamento, é verdade: há tratamentos muito mais eficientes, mas antes de os cancros serem metastizados. Não em casos muito avançados. Mas há outra coisa: se eu tiver agora um cancro com a minha idade, sei que, se for pequenino, não tenho de fazer uma grande cirurgia — se calhar vou ser seguido para ver se ele se vai desenvolver. Porque não se esqueça: eu, se tiver 80 anos, quando tenho um cancro, também não tenho muita energia a dar para esse cancro. A energia vem de nós. O tempo de desenvolvimento de um cancro depende de órgão para órgão e da idade: se começar em pessoas novas é pior, quando começa mais tarde é melhor porque depois demora muito tempo.

"Um cancro do rim que tenha cinco centímetros tem para aí, em média, 30 anos de evolução (...). E dá-nos tempo para, mesmo que a gente ande um pouco atrasada, essa mitigação... Só daqui a dois, três anos, quatro ou cinco anos é que vamos começar a ver [se a Covid-19 atrasou os diagnósticos de cancro significativamente], mas não acho que seja muito grave."
Manuel Sobrinho Simões, patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Então é cedo para saber se as sequelas da Covid-19 podem originar cancros?
Exatamente, mas não há motivos para crer que isso venha a ser um problema grande. Mas é verdade que há pequenas exceções que têm de ser analisadas, mas não há para já nenhum motivo para acreditarmos que as coisas… Quem tem uma infeção Covid-19 tem uma resposta imunitária até excessiva. Logicamente que não vamos ter mais cancro por causa disso. É verdade que, por exemplo, na sida, nós temos mais cancro nas infeções da sida — mas aí é uma infeção crónica. A Covid-19 é uma inflamação aguda e nós nunca encontrámos uma associação boa entre uma infecção aguda e cancro, felizmente. Temos as chatices dos aspetos mentais, mas outras chatices são as sequelas respiratórias. As pessoas que passaram pelos cuidados intensivos precisaram de fazer oxigénio, e o oxigénio é muito tóxico. Basta ver uma ponte enferrujada e ver o que o oxigénio faz. As pessoas têm de se aperceber que, quando a gente faz terapêuticas para salvar a vida, estamos a criar toxicidades. Mas em relação à pandemia, não temos motivo nenhum para acreditar que vai haver chatices nos cancros. Mas vai haver outras complicações. E não sei quanto tempo vai demorar a passar e até que ponto é que as pessoas vão ficar afetadas do ponto de vista intelectual.

Acha compreensível que o esforço para diagnosticar cancros mais cedo tenha sido desacelerado por conta da pandemia?
Compreensível é; e as pessoas têm feito o que podem. Nós, em Portugal, temos muito pouca tradição de prevenção. O português gosta é de resolver coisas. De resto, somos assim em tudo: não se esqueça que as pessoas em Portugal não põem o sinal de que vão virar para a direita ou para a esquerda porque, se eles já sabem, porque é que hão de pôr o sinal? Só em Portugal é que as pessoas viram o carro de repente. É uma cultura — e nós não temos uma cultura da prevenção.

Entretanto, é verdade que nós desenvolvemos muito a ciência. A medicina foi sempre razoável ou boa ou muito boa, a enfermagem foi sempre boa ou muito boa, as técnicas cada vez mais também. Portanto, há em Portugal nesta altura uma capacidade muito grande de resolver os problemas, mesmo quando chegamos um pouco atrasados. Porque é que eu estou a dizer isto? É que o cancro demora muito tempo a desenvolver, felizmente. E é por isso que podemos fazer diagnóstico precoce.

Varia de órgão para órgão, mas por exemplo… Imagine o cancro do rim. Um cancro do rim que tenha cinco centímetros tem para aí, em média, 30 anos de evolução. Se calhar no início ainda não era um cancro, chamava-se um tumor benigno, mas demora 30 anos em média. E dá-nos tempo para, mesmo que a gente ande um pouco atrasada, essa mitigação… Só daqui a dois, três anos, quatro ou cinco anos é que vamos começar a ver, mas não acho que seja muito grave. Era muito grave se a coisa se prolongasse. Agora, se tivermos uma coisa, como tivemos agora, que vai demorar um ano e meio ou dois anos com este aperto, não acho que seja grave.

Manuel Sobrinho Simões considera "compreensível", mas "lastimável", que a batalha à Covid-19 tenha atrasado os esforços para aumentar o diagnóstico precoce do cancro.

Rui Oliveira/Observador

Agora, é lastimável? É. Mas se calhar preocupa-me mais as crianças que vão ficar menos bem educadas. A saúde para mim é muito importante, mas a repercussão social nas pessoas — os velhinhos, as crianças, os adolescentes, os casais que começam à batatada — é um aspeto muito menos expresso porque nós não falamos nisso. Mas, nos miúdos que tiveram uma formação defeituosa durante dois anos, nós não vamos saber quanto tempo vão demorar a recuperar. Nós temos a certeza que a educação e a formação podem sempre ser capazes de recuperar, mas há sequelas. De novo: é uma área de que não sei nada, mas que é muito importante. Preocupa-me muito, até mesmo por desconhecimento: esta é uma ciência em construção. De resto, este tema é sempre muito desafiante. A gente tem de procurar um compromisso e nós, em Portugal, não gostamos de compromisso. Somos muito a preto e branco. Nós temos de evoluir para o bom senso e para o compromisso. E o compromisso significa que não podemos resolver tudo ao mesmo tempo: temos uma situação que é gravíssima com a Covid-19, e correu bem porque as pessoas se portaram muitíssimo bem, fomos muito bons — as estruturas hospitalares e os apoios foram muito bons. Agora, isto vai passar. Não sabemos como as coisas vão ficar, é natural que fique numa espécie de gripe endémica, se calhar, não sei. Não sabemos como vai acontecer em África ou na Ásia. Mas sei que isto vai passar e vai ficar mais controlado. E aí temos de ter prioridade.

O que faria?
A primeira coisa seria ir para os casos que são mais graves do ponto de vista do futuro das pessoas. Não é só o cancro: é também, por exemplo, as doenças cardiovasculares, as doenças metabólicas. Não temos tradição em Portugal de distinguir o principal do acessório. Somos uma sociedade que gosta é da retórica, é do direito, do “no offense“. Toda a gente diz “pelo contrário” e “por outro lado”. Na saúde temos de ter prioridades e esta não é a nossa cultura. A palavra “understanding“, que é “compreender por baixo”, não é muito portuguesa: nós é mais “apreender”, que é “apanhar pela superfície”. Isto vai ser um problema porque, se tivermos problemas de aprendizagem destes alunos, devemos considerar isto prioritário.

Eu poria isso como prioritário, mas se calhar não é fácil. Nós temos outra característica que também é muito portuguesa: o minifúndio, as tribos, as corporações. Por exemplo: já fui vacinado e sou professor universitário — mas é porque sou médico e trabalho num hospital. Se eu fosse professor de Filosofia, ainda não tinha sido vacinado porque os professores do ensino superior ainda não foram vacinados. E por que raio? Não faz nenhum sentido. No fundo, os professores do ensino secundário devem ser vacinados, mas teve de ser uma luta. É sempre a tribo, o minifúndio, o primo e o cunhado.

E a saúde mental, que referiu há pouco, também seria uma das suas prioridades?
Claro. Não sei nada disso, mas tenho a certeza… De novo, não é só por causa da pandemia, mas por causa também da longevidade, que está a aumentar muito. Vamos ter um problema gravíssimo de problemas cognitivos, de demência nos velhinhos, que está a aumentar muito. Temos de encarar isto do ponto de vista social como uma prioridade. É verdade que, agora com a pandemia, a situação piorou. Estou com este paleio, mas é muito difícil: é mais fácil tratar cancro do que doenças mentais. Exige muita comunicação, muita ligação pessoa a pessoa. Do ponto de vista de organização, isto é muito mais complicado. É por isso que se discute muito… Somos todos hoje em dia a favor da possibilidade de as pessoas, tanto quanto possível, não serem acumuladas em hospitais psiquiátricos. Mas isso também é verdade para as pessoas que têm doenças crónicas, quaisquer que elas sejam. Nós somos dos piores do mundo em quedas. Caímos muito. Os velhos caem muito, têm muitas artroses, porque a gente não teve treino de educação física, as crianças deixaram de saltar à corda… Somos do pior que há a preparar as pessoas para quando tiverem artroses. E eu sei que contra mim falo porque estou com artroses e é horrível. Depois de estar aqui uma hora, primeiro que me levante vou estar mesmo à rasca.

"Ando mesmo desanimado. E triste. Continuo muito chateado, ando aqui muito irritado com tudo porque, de repente, deram-me cabo da vida: tenho poucos anos para viver, passava a vida a passear e agora estou aqui metido. Mas fiquei diferente: eu já era bastante irritante, agora estou muito irritante e colérico. Se me acontece a mim, por maioria de razão as pessoas que sofreram mais... A ideia do sofrimento: as pessoas têm de perceber que a saúde, antes de mais nada, é bem-estar."
Manuel Sobrinho Simões, patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Mas nós temos de perceber que isto também é verdade para as doenças mentais por maioria de razão, porque toca muito com a capacidade de convencer… Se tiver um tipo que deve mudar a sua atitude em relação aos medicamentos, por exemplo: é mais fácil convencer um doente do que um doente que tenha uma perturbação mental. Isto exige muito tato, muita capacidade. E nós não temos essa tradição porque infelizmente as sociedades dão cada vez menos valor aos velhos. Portanto, quando depois há o Orçamento do Estado e se decide qual é a fatia que vai para isto, é horrível. Porque o dinheiro é finito. Como é que vamos apostar em políticas que sejam protetoras dos velhinhos? A primeira coisa é indiscutível: perceber que o velhinho já foi novo e, se teve cuidado, teve uma alimentação adequada, não fumou, teve sempre algum exercício físico… As sociedades nórdicas são mais saudáveis do que nós na velhice. O que nos distingue não é a duração da vida, porque a gente está a durar quase tanto quanto os suecos e os noruegueses, mas a gente dorme durante anos sem preparar a velhice. Quando chegamos aos 65 anos, temos poucos anos em média com saúde, com bem-estar. Os nórdicos têm muito mais. Isto traz sofrimento e é caro — por isso é que há tanto recurso aos medicamentos, aos TACs e aos exames complementares. O tuga adora também isso. A gente adora é TACs.

Qual é a solução para esses problemas?
A solução é a educação. Isso não tenha dúvida. Isso já o Guterres dizia, coitado, começou a dizer isso há tantos anos… Não tem alternativa, percebe? E é o nosso problema. Agora tivemos o 25 de Abril: há 47 anos estávamos cheios de pessoas analfabetas, tínhamos taxas de iliteracia e pobreza de conhecimento assustadoras. Portanto, demora uma geração, duas gerações ou três gerações a mudar o conhecimento. O conhecimento agora não é informação. Em relação à sua geração, o que me assusta é que, como as pessoas têm muita facilidade em obter informação (infelizmente, às vezes meio aldrabada por causa da desinformação), não temos tido capacidade para perceber que a pessoa que ganha conhecimento ganha mais do que a informação. Claro que eu já sei que depois há aquela coisa que dizem todos: “Ah, o que era preciso era a sabedoria”. Não é preciso tanto, mas o conhecimento, o “understanding“, ser capaz de perceber o que está por baixo, fazer perguntas, treinar as perguntas — porque nós também temos uma cultura em que temos vergonha de perguntar. Uma das coisas que a gente deve estimular é a capacidade de as crianças serem confrontadas com situações desafiantes.

Sobrinho Simões acredita que falta aos jovens a capacidade de distinguir a informação, que está ao alcance de todos, do conhecimento.

Rui Oliveira/Observador

Se eu tiver agora de pensar, a fragilidade maior no Ipatimup é termos poucos jovens (a maior parte deles é muito boa de cabeça, não tem a ver com inteligência nem com seriedade) com iniciativa para resolver problemas, para montar negócios. Nós temos uma cultura muito marcada por uma educação burocratizada: são muito bons alunos, têm muito boas notas, nós publicamos papers muito bons, mas não estamos a fazer tantas empresas e não estamos a ter tanta ligação ao real como devíamos. Isto não tem nada a ver com a pandemia, tem a ver com o motivo pelo qual não somos tão proativos. Penso que, em parte, é porque os miúdos deviam andar cá fora. Olhe, os meus filhos, eu e a minha mulher estivemos na Noruega um ano. Eles tinham 5 anos, 4 e 2. A rapariga, a Joana, teve de ficar em casa, mas os dois rapazes, mais velhos, foram para o colégio. E com um frio de rachar, durante um ano, só houve um dia em que eles não saíram porque estava uma tempestade de neve e havia o medo de se perderem. Não há nenhuma criança nórdica que não saia. Vão ver as plantas, vão ver os animais, dão uma trincadela se virem um fruto. Nós não: a nossa cultura é uma cultura das palavras. Palavras. Os gajos a decorarem palavras.

E no seu caso, como é que se sente?
Ando mesmo desanimado. E triste. Continuo muito chateado, ando aqui muito irritado com tudo porque, de repente, deram-me cabo da vida: tenho poucos anos para viver, passava a vida a passear e agora estou aqui metido. Mas eu fiquei diferente: já era bastante irritante, agora estou muito irritante e colérico. Se me acontece a mim, por maioria de razão as pessoas que sofreram mais… A ideia do sofrimento: as pessoas têm de perceber que a saúde, antes de mais nada, é bem-estar. Há muitos motivos para que a gente mantenha a ideia de que é fundamental o objetivo do bem-estar. Eu, que nunca na vida estive deprimido, só altos e baixos, tive dias em que não me apetecia levantar de manhã. Nunca me tinha acontecido.

"Durante muitos anos também achei que era imortal. Quando tinha a sua idade achava que era imortal. Não sou burro, foi uma estupidez como é que não percebi que ia morrer. Não pensava sobre a morte, mesmo quando fazia autópsias (...) Quando a minha neta mais velha nasceu, percebi que ia morrer"."
Manuel Sobrinho Simões, patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Chateia-o o abrandamento da vida ou a coisa que motivou esse abrandamento?
As duas coisas. E é um ciclo vicioso. A minha mulher houve um dia que me disse: “Epá, você não vai sair para trabalhar?”. Eu dizia: “Vou, vou”, mas não ia, o que é muito estranho. A cabeça das pessoas… Aprendi imenso comigo próprio, não faz ideia.

E já disse que era medroso por natureza, que até do cancro tem medo.
Ui… De tudo, eu tenho medo de tudo. Tenho medo do gás, tenho medo da noite, em Nova Iorque tenho medo de entrar no metropolitano, percebe? Houve situações em que tinha de andar de metropolitano e ia aterrorizado.

De onde é que vem todo esse medo?
Não sei. É engraçado. Só não tenho medo de andar de avião, que é uma estupidez. E é verdade que, em relação ao ter cancro ou uma doença grave, tenho medo. Depois, se tiver, tenho também pena — por mim e pelos outros.

Como assim?
Não sei. Sei que é difuso. Tem muito a ver com a morte, claro, isso é indiscutível, mas durante muitos anos também achei que era imortal. Quando tinha a sua idade achava que era imortal. Não sou burro, foi uma estupidez como é que eu não percebi que ia morrer. Não pensava sobre a morte, mesmo quando fazia autópsias. O que é horrível, não é? Significa que a gente tem uma coisa qualquer de proteção da sua própria angústia. Eu adorava o meu pai e ele morreu com um cancro — eu era novo e o meu pai também era novo, tinha 70 e poucos anos —, ele era o meu grande amigo, mas eu não percebi que também ia morrer.

Quando é que percebeu que ia morrer?
Quando nasceu a minha neta mais velha. Não foi catártico, atenção, foi bom, por acaso. Mas nunca me tinha apercebido. Esta perceção depende de pessoa para pessoa. Por exemplo, as pessoas que tiveram pouca sorte — quem teve um irmão que morreu quando eram novas ou se um pai foi muito novo e ficaram órfãs muito cedo — de certeza que se apercebem disso. Mas para as pessoas que tiveram sorte… O que também é importante porque sou muito favor da ideia de que nós nos devemos lembrar mais das coisas boas do que das coisas más — até por causa da família e dos outros. Mas não quer dizer que não tenha medo. Isso tenho.

Medo da própria morte ou da forma como vai morrer?
A forma de morrer é horrível, aí tenho mesmo medo do sofrimento. E eu queria morrer em casa, se conseguir. Há aí uma estupidez de uns tipos que acham que têm de ir morrer não sei onde. São malucos, pá. Nós temos é de morrer em casa, com as pessoas de quem a gente gosta. Mas isso é o sofrimento. Mas a ideia da morte para mim é assustadora. Porque infelizmente não sou crente e, portanto, tenho pena. Estou aqui tão bem a ver os meus netos a crescer e não sei quê, e agora um gajo vai morrer?

Se tem medo de tanta coisa, também tem medo de ter Covid-19?
Aí é a tal coisa: tive. Tenho. É engraçado, isso. Mas é mais. Como tenho muita capacidade de interiorizar e perguntar a aproximação científica, sei que tenho um risco, mas sei que é um risco limitado. E foi por isso que continuei a vir para o Hospital São João. Na altura pior, ia com o meu filho, que mora perto de mim, para o hospital. E, quando estava numa fase muito má, ele disse: “Oh pai, é uma vergonha o pai ir. O pai está velhinho”. E eu, durante uma semana, tive vergonha de ir. Mas não foi medo, foi mesmo vergonha. Mas depois pensei: a minha mulher em casa dava-me cabo da vida porque ninguém estava disposto a aturar-me. Eu ficava em casa a fazer o quê? E voltei a ir.

"Infelizmente fazemos poucas autópsias. Por exemplo, morreram cerca de 17 mil pessoas com Covid-19 e nós só fizemos quatro ou cinco autópsias, o que é vergonhoso porque nós devíamos perceber os casos que correram mal."
Manuel Sobrinho Simões, patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Vou todas as semanas a Arouca almoçar com a minha mãe, que tem 92 anos e está numa forma estupenda. Já foi vacinada, acha-se a melhor do mundo e agora tem uma coisa muito engraçada: conta sonhos porque, como está sempre dormitante durante o dia, à noite dorme menos e o sono é menos profundo. Conta histórias extraordinárias e boas! A gente sabe que há sonhos associados à Covid-19 e tal, mas neste caso não é por isso. Ela teve uma fase, na fase pior da segunda vaga, em que tinha muito medo e sonhava que tinha morrido e os filhos e os netos choravam porque não se podiam ir despedir dela.

Depois teve muita graça porque passou a ter sonhos bestiais. O meu pai trabalhou em Oxford e a minha mãe foi para lá com o meu pai. Ela nunca tinha voltado a Oxford e eu fui lá com o meu filho mais velho levá-la para ela ver o sítio onde tinha trabalhado, onde eles tinham vivido, a igreja onde ia, o supermercado — e até se lembrava que os chocolates tinham o mesmo papel, que os ingleses são muito conservadores. Há 15 dias, ela disse-me: “Nunca falei muito bem inglês, mas sabes que agora sonhei que estava em Oxford com o teu pai e olha, falo fluentemente”.

É assim que imagina a sua velhice também?
Acho que sim, era o que queria. É a hipótese que a gente tem de não darmos cabo uns dos outros. A gente teve sorte, as coisas correram bem e isso é um elemento muito importante. E fazer, eu fui sempre treinado a fazer: fazer sempre. E é também por isso que aumentou o meu desânimo por perceber que já não podia sair. No ano passado, eu teria estado em Porto Alegre, no Paquistão, ia a sítios… E pronto, não fui. Agora este ano já comecei a ver: marquei uma coisa para novembro na Áustria. É a minha primeira ida formal fazer um curso. Não sei se vai ser possível. Mas este é o aspeto positivo: o pessimismo na análise e o otimismo na ação.

Para alguém que se habituou a lidar com a morte tão diretamente, a quantidade de óbitos por Covid-19 que Portugal chegou a registar ainda o abala?
Nunca fui muito sensível a números, fui sempre muito sensível às pessoas. Fico muito irritado que as pessoas andem todas com a mania dos “big data“. A epidemia dos dados é uma epidemia terrível: não é só desinformação, é mesmo a ausência de retirar dos números os seus valores. Digo sempre a mesma coisa: sou analógico, não sou digital. Um tipo que morreu não é digital, percebe? A pessoa que está com diarreia ou com uma cólica não é digital — é analógica. A minha experiência com autópsias foi sempre muito investigacional, mas eu não percebia que as pessoas tinham morrido. Percebe? Isso é que é impressionante: como é que eu fazia autópsias… Nós fizemos uma escola muito boa de estudar as autópsias, por isso é que o São João é o único sítio onde se podem fazer autópsias difíceis — quando foram as vacas loucas, as tuberculoses resistentes, as sidas. Continua a ser assim, eles são muito bons nisso. Mas infelizmente fazemos poucas. Uma sociedade interessada e com conhecimento… Por exemplo, morreram cerca de 17 mil pessoas com Covid-19 e nós só fizemos quatro ou cinco autópsias, o que é vergonhoso porque devíamos perceber os casos que correram mal.

"Agora estou a fazer uma coisa um pouco psicanalítica barata, mas é assim: o meu pai perguntava muitas vezes porquê, porquê, porquê, porquê. Era sempre a pergunta: "Porquê?". Estava muito treinado com o meu pai a estas perguntas do porquê e respondia: "Epá, não sei" (...). Fui treinado, até para me defender, para não ser apanhado a dizer uma coisa que depois não fosse, a dizer que não sabia."
Manuel Sobrinho Simões, patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Porque é que fizemos tão poucas?
É muito cultural. E depois também preguiça. Mas é muito cultural porque há sempre um aspeto negativo de as pessoas não estarem de acordo, têm vergonha, acham que fazer uma autópsia tem um aspeto que é… Nós agora estamos a trabalhar com o Brasil, na Universidade do Estado de São Paulo, numa biópsia: metemos umas agulhas e tiramos tecido, para evitar retalhar. É biópsia, não é necrópsia. Não sei se está a ver: biópsia é quando tiramos um bocado que está vivo, mas necrópsias não fazemos. Não é para estudar tecido morto, é uma biópsia para nós nos entendermos a nós mesmos. “Autópsia” é olhar para si mesmo. E aprendemos imenso. E nós temos de perceber que o nosso corpo é parte de nós. E não há coisa melhor do que estudar em autópsia.

Uma das secções do Cemitério do Alto de São João que acolheu vítimas mortais da Covid-19 durante a terceira vaga da epidemia.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Se calhar a questão é essa: olhar para si mesmo pode ser difícil.
É muito difícil, mas quem conseguir lidar com isto sem sofrer… E eu não sofria. Eu, que tenho medo de tudo, não tinha medo porque sentia que estava a fazer uma coisa útil. Chamávamos os clínicos e discutíamos porque é que aquela pessoa tinha morrido ou não, o que podia ter sido feito, e isso era uma aprendizagem brutal. Aquilo que acho que me mantém muito ativo é esta procura de aprender, mesmo velhinho. Aquilo que me chateia agora é que às vezes estou a estudar alguma coisa e penso: porque é que estou a estudar uma coisa que não vai servir para nada? Já devia ter aprendido, mas há aqui um elemento cultural e civilizacional. Nós devíamos ter sido mais capazes de convencer a cultura portuguesa a estimular a pergunta. A autópsia é como outra coisa qualquer: é uma avaliação. Não temos tradição de saber o que está a correr mal porque escondemos, temos vergonha de dizer: “Epá, eu sou um bluff“.

E no seu caso, porque é que tem essa tradição?
Não sei, mas aprendi quando achava que era imortal. Se calhar, se começasse hoje a fazer autópsias, já não era capaz — tanto que já não faço. Era uma atitude que tive quando aquilo não me dizia nada. Estou a inventar, mas é o que penso.

"Nós temos um sistema que gasta muito na assistência, no dia a dia, na rotina — as consultas, as urgências, as reuniões de diagnóstico. Só podemos evoluir nas autópsias e nas investigações clínicas... Somos muito bons em investigação básica, mas não somos tão bons em investigação clínica porque os clínicos não têm disponibilidade, não têm o tempo protegido."
Manuel Sobrinho Simões, patologista no Hospital São João e diretor do Ipatimup

Não tem pudor em dizer: “Não sei” e esta entrevista revela-o. Porquê?
Não é muito comum em Portugal. E também não somos muito bons a perguntar. Eu pergunto sempre… E atenção, há um aspeto muito chato: quando faço uma pergunta estúpida, quando o outro tipo percebe que é uma pergunta estúpida e eu também percebo, é horrível. Então com ingleses, quando eles dizem: “O que quer dizer com isso?”. Ou… isto é horrível: “Importa-se de repetir a pergunta?”. Eu, por minha vontade, desapareço. Mas fui sempre treinado, isto é muito por educação do meu pai: perguntávamos muitas vezes porquê. Agora estou a fazer uma coisa um pouco psicanalítica barata, mas é assim: o meu pai perguntava muitas vezes porquê, porquê, porquê, porquê. Era sempre a pergunta: “Porquê?”. Estava muito treinado com o meu pai a estas perguntas do porquê e respondia: “Epá, não sei”. A gente perguntava, gostávamos de perguntar — até havia aquela questão: “Porque é que perguntas se não sabes a resposta?”. Cá em Portugal só se pergunta quando se sabe a resposta, é uma estupidez. E fui treinado, até para me defender, para não ser apanhado a dizer uma coisa que depois não fosse, a dizer que não sabia. Sempre disse muito facilmente que não sabia, que não tinha a certeza.

Era diferente se eu fosse matemático, ou engenheiro, ou físico. Mas sou biólogo, sou patologista. E na biologia sabe-se muitas coisas mal. A gente não sabe muito. Eu quis ser patologista porque lido mal com o medo e com a incerteza. Odeio a incerteza, mas temos de viver nela. Não quis ser clínico, quis ser diagnosticador. Se agora for ver a gente que está nos “big data” e nos algoritmos, nós somos muito bons a encontrar respostas para prescrição. Para prever não é bom. Se vai resultar ou se vai dar para o torto, não se faz a mínima ideia. Como rapidamente percebi isso, se calhar aumentou esta facilidade com que digo “Não sei”.

O patologista utiliza muitas vezes a expressão: "Não sei". Diz que é um hábito que tem de criança: prefere assumir que não sabe alguma coisa do que dizer algo que não corresponde à verdade.

Rui Oliveira/Observador

O que revelaram as poucas autópsias que se fizeram às vítimas da Covid-19?
Revelaram todas uma doença aguda com repercussão direta no pulmão, por excelência. E dois casos, por exemplo, tiveram repercussões no sistema nervoso central e nós sabemos que isso acontece. Mas devíamos ter feito muito mais autópsias para perceber porquê. Sabemos que são doenças em que as lesões mais graves são as pulmonares — se calhar porque a entrada, no fundo, era respiratória — e também sabemos que tem muito mais chatices no sistema nervoso central do que a gente pensava. Depois há outra coisa que também vimos: como é uma doença sistémica, porque o vírus está em circulação, vamos ter lesões nos órgãos que têm recetores para as partículas víricas entrarem. Também aí há uma variação de pessoa para pessoa, mas com quatro ou cinco não podemos ter nenhuma regra geral. Mas temos a certeza que há uma variação interindividual. E também não sabemos se as partículas nestes quatro ou cinco eram da mesma estirpe. A variação é muito fatorial, o que para mim é muito interessante.

Como sugere que se ultrapassem estes constrangimentos?
Este é um problema de todo o sistema hospitalar. Os hospitais, para terem disponibilidade para fazerem autópsias, têm de ter tempo protegido para isso. Nós temos um sistema que gasta muito na assistência, no dia a dia, na rotina — as consultas, as urgências, as reuniões de diagnóstico. Só podemos evoluir nas autópsias e nas investigações clínicas. Somos muito bons em investigação básica, mas não somos tão bons em investigação clínica porque os clínicos não têm disponibilidade, não têm o tempo protegido. Portanto, a primeira coisa a fazer, quer para as autópsias quer para a investigação clínica, para o ensino de alunos ou de jovens especialistas, é ter tempo protegido. Deviam ter 25% a 30% do seu tempo a não ser consumido em atos médicos — contratávamos mais gente para colmatar essa falta — a fazer autópsias com vertente investigacional e de formação. Este dinheiro para fazer investigação não tem de vir dos hospitais: pode vir da FCT, dos centros europeus, dos concursos internacionais. E deve!

Mas mesmo resolvendo essa questão, teríamos sempre de lidar na mesma com o lado emocional desta questão. O que se faz nesse sentido?
Pois, isso tem melhorado muito, sabe? Quando comecei a fazer isto, há muitos anos, demoravam-se 24 horas. Agora não: o Hospital de São João funcionava muito bem e as regras são muito certas. Nesse aspeto, se nós conseguíssemos que as pessoas sentissem que ganham, do ponto de vista social, com a informação e com o conhecimento, as pessoas aceitam. Nós, portugueses, não somos burros e não somos maus tipos. Somos é “lousy“. Se eu tivesse de escolher alguma coisa para mudar, eu melhorava muito a formação agora de futuros médicos, enfermeiros e técnicos. Porque aquilo que a gente conseguiu pode estar agora a entrar em perda se não mantivermos.

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