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Um dos 14 imigrantes alojados no anexo da mesquita, sentado na sua cama. À esquerda, um dos bombeiros que monitoriza o seu estado de saúde. Nem todos os migrantes aceitaram ser fotografados
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Um dos 14 imigrantes alojados no anexo da mesquita, sentado na sua cama. À esquerda, um dos bombeiros que monitoriza o seu estado de saúde. Nem todos os migrantes aceitaram ser fotografados

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Um dos 14 imigrantes alojados no anexo da mesquita, sentado na sua cama. À esquerda, um dos bombeiros que monitoriza o seu estado de saúde. Nem todos os migrantes aceitaram ser fotografados

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Reportagem. Os dias de 14 imigrantes infetados na mesquita de Lisboa

Sem condições para se curarem nos quartos onde viviam, estão isolados num anexo da mesquita de Lisboa. São alimentados pela Comunidade Islâmica e cuidados pelos bombeiros. "É uma coisa muito bondosa."

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A rotina é sempre a mesma. Pelo menos três vezes por dia, um dos bombeiros de serviço naquele anexo, na parte de baixo da mesquita de Lisboa, equipa-se completamente para ir fazer medições de temperatura e oxigénio no sangue aos 14 homens que estão na sala ao lado, separados por grossas paredes brancas e um estreito corredor, uma espécie de antecâmara. Hoje, a tarefa calha a Rafael Correia. O bombeiro enfia as pernas esguias no fato-macaco de proteção, uma a uma, “mas com cuidado para não rasgar com a bota”, segurando o fato pelo elástico que ficará à volta do tornozelo. Aperta o fecho até ao queixo, até não poder subir mais.

Calça o primeiro par de luvas, azuis, e faz um furo com o polegar no fato. “Não se assustem”, avisa ao Observador, antes que o acusem de ter desrespeitado as normas ou arriscado a contaminação. “Quando os fatos não têm esta peçazinha para fechar no pulso, nós resolvemos assim: faz-se aqui um furinho e enfia-se o polegar, ‘tão a ver? Assim, quando formos tirar o fato, as primeiras luvas, que são as que estão possivelmente infetadas, saem logo atrás do fato, sem lhes tocarmos”, explica.

Rafael pode ter apenas 21 anos, mas é bombeiro na corporação da Ajuda desde os 12 e leva muito a sério a formação que teve a propósito da Covid-19. “Nós tivemos formação como deve ser, acreditem. Não ando aqui a brincar”, atira em tom de desafio, ele que aprendeu ao crescer num dos bairros populares da cidade, como quem avisa para não nos deixarmos enganar. Nem pela sua idade, nem pela pouca altura, nem pela Playstation que trouxe no saco para matar as horas de espera — e muito menos pelos ombros estreitos que parecem afundar-se e ficar a nadar dentro do Equipamento Pessoal de Proteção (EPI).

O bombeiro Rafael Correia, de 21 anos, equipa-se com o EPI completo antes de cada visita ao anexo onde estão os imigrantes

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A dureza de Rafael vê-se mais nas olheiras do que no físico — um cansaço que ajudará a explicar parte da emoção que o deixou a “chorar sozinho”, pouco antes de chegarmos, ao ver uma homenagem aos bombeiros no Programa da Cristina. Na noite anterior, esteve com os colegas a desinfetar ruas em Benfica até às 5h da madrugada. Já está aqui de turno, na mesquita de Lisboa, desde as 8h e prepara-se para passar ali mais 24 horas, como de vez em quando lhe calha. A corporação de Campo de Ourique está a postos no local às segundas, quartas e sextas, a da Ajuda às terças, quintas e fins-de-semana. É habitual fazer-se o turno acompanhado, dois a dois, mas, em tempos de Covid-19, as solicitações são muitas e o pessoal é pouco. “Continuamos a ter incêndios, continuamos a ir abrir portas, continuamos a fazer essas coisas todas e agora ainda temos de ir levar mais doentes ao hospital e fazer serviços como este”, relembra Rafael enquanto continua a equipar-se, agora a colocar os chamados “pézinhos” azuis, por cima das botas pretas da farda.

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O “serviço” que lhe calhou desta vez consiste em acompanhar 14 imigrantes, um deles sem-abrigo, que ali estão a pedido da Câmara Municipal de Lisboa, por se ter concluído que não tinham condições para fazer a quarentena em suas casas. Muito se tem falado sobre a situação dos requerentes de asilo, alojados em hostels como o Aykibom — cujos residentes acabaram também por passar pela mesquita de Lisboa, mas apenas por algumas horas. Este domingo, o Ministério da Administração Interna lançou mesmo uma operação para testar o maior número possível de requerentes de asilo em Portugal, alojados sobretudo em unidades hoteleiras deste tipo pela capital.

Testes em massa aos refugiados a viver em hostels. Cerca de 59 hóspedes da Residencial Beirã testados durante a tarde

Mas nem todos os estrangeiros que residem no país são requerentes de asilo. Alguns, como estes homens aqui alojados, são migrantes que vieram do outro lado do mundo. Entre eles há quem já esteja a regularizar a sua situação junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Outros não. A maioria passa quase despercebida: são fantasmas na grande cidade, visíveis a olho nu, mas invisíveis no papel. Poucos falam português. A maioria vive em casas partilhadas com pessoas do mesmo país, amontoados em quartos cujas condições se adivinham precárias. Como em quase todas as grandes cidades, também eles andam por Lisboa e, tal como todos os outros, podem ser infetados pelo novo coronavírus. Foi o caso destes 14 homens que a Autoridade Regional de Saúde (ARS) de Lisboa identificou — e que, por não terem domicílios com condições para fazer a quarentena sem infetar outros, foram trazidos para a mesquita de Lisboa e alojados no anexo inicialmente destinados a sem-abrigo.

A Rafael falta pôr a touca branca, semelhante às que via as senhoras da cantina da escola usarem quando era pequeno. Com isso feito, o bombeiro coloca por fim a máscara, encaixa os óculos de plástico transparentes por cima do nariz e tapa a cabeça com o capuz branco do fato. Apenas a testa fica ligeiramente descoberta, um pequeno pedaço de carne exposto ao vírus. Rafael faz uma última inspeção para garantir que os jornalistas da equipa do Observador também estão bem equipados, enquanto revela que não dorme em casa há já um mês, como toda a sua corporação. E os avós, com quem vive, não ficam preocupados? “Não, a minha avó sabe que eu me equipo bem, que sou responsável. Ela confia”, assegura, como que a garantir que um serviço Covid-19 não é assim tão mais perigoso do que os outros.

Rafael com os sacos com refeições para os 14 homens, entra na antecâmara que separa o anexo do resto do edifício. É ali que se desequipa quando sai da sala

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Nas mãos, o bombeiro leva os sacos de plástico com as refeições para os 14 homens que estão no anexo ao lado. São preparadas por pessoal do refeitório da mesquita de Lisboa e oferecidas também aos bombeiros de turno. Rafael não é o maior fã de pratos com picante e não se sente muito tentado pelo caril oferecido pela Comunidade Islâmica, mas agradece o gesto a Mohamed Abed, o vice-presidente da comunidade que ali vai todos os dias para verificar se lhes falta algo. Rafael diz-lhe que tem que chegue e aponta para a mesa ocupada por vários pacotes de bolachas e bolos, para a máquina preta de café a que recorre várias vezes ao dia e para a televisão. Ao fundo da sala estão duas camas montadas, tapadas com cobertores quentes, para que possa descansar durante a noite.

Sobre os doentes que estão à sua responsabilidade, Rafael explica que não consegue conversar muito com eles pela barreira linguística, mas que a comunicação vai existindo: “Alguns deles falam inglês, mas eu não falo. É com o Google Tradutor e pronto”, conta. 

Sobre os doentes que estão à sua responsabilidade, Rafael explica que não consegue conversar muito com eles pela barreira linguística, mas que a comunicação vai existindo: “Alguns deles falam inglês, mas eu não falo. É com o Google Tradutor e pronto”, conta. A grande maioria veio do Bangladesh. “Mas eles percebem-me, a gente entende-se. Isso não é problema, vai ver”, assegura o bombeiro, antes de fazer uma última verificação ao equipamento dos jornalistas para garantir que está tudo em ordem — e fazer uma recomendação para que o caderno não nos acompanhe. “Leve uma folha, tome notas, depois passa isso pro caderno e a folha vai fora. É melhor, é melhor”, assegura, a cabeça a abanar afirmativamente dentro do fato branco e os olhos firmes por trás dos óculos de plástico. “Vamos a isso?”

Kapil chegou do Bangladesh há cinco meses. Os pais não sabem que está infetado com Covid-19

Depois da antecâmara, ao abrir-se a porta da sala do lado, encontramos um longo corredor, com várias camas de cada lado. São de ferro preto, simples, todas equipadas com colchões, cobertas e almofadas. Não há nenhuma que esteja vazia. Assim que os homens ali presentes se apercebem de que aí vem gente, sentam-se mais direitos na cama e alguns arriscam mesmo levantar-se. Rafael vai até à mesa, que está colocada ao fundo, perto da zona dos balneários, e pousa ali a comida. O entusiasmo é visível — seja por ser hora da refeição, pela visita do bombeiro ou pela simples quebra do aborrecimento rotineiro — e há sorrisos, trocas de piadas em bengali e acenos de cabeça para Rafael, que vai perguntando em português “Então como é que ‘tás?” aos que se aproximam dele. Os gestos fazem o resto.

Rafael cumprimenta um dos infetados, de polegar levantado. Ao longo do corredor, há camas ocupadas de ambos os lados da sala

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A maioria dos que aqui estão chegou a 13 de abril e já quase não sente sintomas da Covid-19. Já tiveram casos mais graves e essas pessoas foram transportadas pelos bombeiros, de ambulância, para o hospital. Os que aqui permanecem são os menos abalados pelo vírus: tiveram apenas febre, tosse seca, dores no corpo, desconforto. Agora, ao fim de dez dias de confinamento, a grande maioria já tem temperatura normal e está capaz de trocar dois dedos de conversa com o colega da cama ao lado ou até mesmo de se entreter com um jogo de cartas.

Os mais velhos, a maioria muçulmanos praticantes, optam pelo recato e ficam sentados nas suas camas. Outros, mais jovens, aproximam-se. É o caso de Kapil Udin, um ex-estudante de Marketing e Gestão de 25 anos que, talvez por causa da formação superior, se sente mais à vontade no inglês do que os restantes. Intervém para explicar que um dos colegas da frente estava num hostel — à semelhança dos requerentes de asilo do hostel Aykibom — quando descobriu que um dos colegas de quarto estava infetado. Com Kapil passou-se o mesmo, mas numa casa, aquela que partilha com outros homens vindos do Bangladesh, desde que chegou a Lisboa há cinco meses. “Estava a estudar na Dinamarca, mas quis vir antes para Lisboa, não aguentava mais o frio. Depois percebi que, por causa de problemas com o visto, não podia recomeçar a estudar aqui”, explica o homem que ocupa a cama identificada com o número 4.

Kapil Udin, sentado na cama 4, ouve as instruções do bombeiro Rafael

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Kapil não sente sintomas e está bem de pé. Alto, de cabelo negro escuro, sorri e gesticula muito, como se estivesse cheio de energia e nem tivesse sido diagnosticado com o novo coronavírus há cerca de duas semanas. A sua magreza, contudo, é visível na forma como a camisa cinzenta escura lhe assenta mal sobre os ombros e descai tapando as palmas das mãos. A sua família, no Bangladesh, não tem bem noção da situação em que está. Inicialmente veio para Lisboa sem os avisar. Agora que já sabem, esconde outro segredo dos pais: o de que foi infetado com Covid-19. “Contei aos meus irmãos, que também estão no Bangladesh, mas não aos meus pais”, diz ao Observador.

“Eles iam ficar muito preocupados e acho que não vale a pena. É claro que os meus irmãos estão preocupados e passam a vida a perguntar-me se aqui nos tratam bem.” E tratam? A resposta de Kapil não podia ser mais enfática: “Eles estão a fazer um trabalho fantástico”, diz, apontando com a cabeça na direção de Rafael, que vai retirando dos sacos as embalagens de plástico com arroz basmati e caril de cor alaranjada. “Nós somos imigrantes ilegais, mas eles tratam-nos bem. É uma coisa muito bondosa”. À sua volta, os colegas de quarto ajuntam-se, perguntando quem é a pessoa de fato branco que lhe faz perguntas. “Journalist”, responde, esquecendo-se por instantes de regressar ao bengali e continuando em inglês. Alguns olhos arregalam-se com surpresa. Há quem sorria para a câmara e quem prefira deitar-se em posição fetal na sua cama, como que virando as costas ao mediatismo.

A família de Kapil, no Bangladesh, não tem bem noção da situação em que está. Inicialmente veio para Lisboa, sem os avisar. Agora que já sabem, esconde outro segredo dos pais: o de que foi infetado com Covid-19. “Contei aos meus irmãos, que também estão no Bangladesh, mas não aos meus pais”, diz ao Observador. "Eles iam ficar muito preocupados e acho que não vale a pena".

“Vá, já está aí a comida, já se podem servir”, avisa Rafael, enquanto nos toca no ombro e avisa que é melhor irmos saindo para não passarmos demasiado tempo ali dentro. “‘Tá tudo a sentir-se bem? Tudo em cima hoje?”, pergunta, à medida que começa a atravessar o corredor em direção à saída. Um dos imigrantes aborda-o: “Smoke, smoke, please”, pede-lhe, em voz baixa. “Achas que eu te vou dar smoke? Olha este, tá maluco!”, responde Rafael, vários decibéis acima. “Vá, entretenham-se aí”, diz, antes de fazer um aceno e fechar a porta atrás de si. O burburinho acalma ligeiramente.

Agora, do lado de fora, começa outra das pequenas batalhas do dia-a-dia para Rafael: tirar o EPI sem que haja qualquer contaminação. “Pézinhos” fora, capuz para trás, óculos no chão. Fecho corrido até abaixo e ginástica para puxar um braço do fato por trás, de forma a evitar tocar com as luvas contaminadas na farda vermelha que veste por baixo. O braço do fato vai saindo e, lentamente, o braço tatuado de Rafael vai ficando mais e mais exposto. Ao chegar à mão, a luva de fora azul solta-se e cai no chão. “Veem o que eu vos dizia do furinho?”, pergunta Rafael, sorrindo de boca aberta, em expectativa do ‘sim’ que tem a certeza que vai ouvir. Com os fatos finalmente retirados, tudo é colocado no chão (máscara incluída) e depois enfiado no caixote do lixo contaminado que ali está colocado, na antecâmara. Rafael rega o chão onde os fatos estiveram — e a caneta que trouxemos connosco — de álcool-gel. Só depois retira o segundo par de luvas.

Um dos imigrantes do Bangladesh penteia-se em frente ao espelho dos sanitários partilhados pelos 14 homens

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Terminado o momento de tensão, Rafael regressa à sala dos bombeiros para agarrar no seu maço de Marlboro, vermelho e branco, e ir ao seu smoke privado, lá fora. “Eles são calminhos, são porreiros. Vocês viram”, diz, fechando os olhos à medida que inala o cigarro. Agora já pode, finalmente, relaxar. Pelo menos durante algumas horas, até à altura em que irá medir-lhes novamente a febre, ao final da tarde.

As seis horas em que os requerentes de asilo do hostel estiveram na mesquita de Lisboa

“Eu já tinha uma impressão muito favorável dos bombeiros, mas depois destes dias todos de convívio direto, digo: são uns heróis”. Mohamed Abed, responsável da Comunidade Islâmica que coordena a resposta da mesquita às necessidades que vão surgindo para doentes e bombeiros no local, descreve assim ao Observador aquilo que tem visto todos os dias no terreno.

Primeiro, foi a situação com os quase 200 requerentes de asilo que estavam no hostel Aykibom e que foram levados para a mesquita de Lisboa temporariamente, para serem testados. “Recebi uma chamada de urgência a dizer ‘Precisamos de espaço para 180 pessoas’. E eu respondi ‘Vamos a isso’. Assim que receberam luz verde, acionaram o processo todo”, conta Abed.

Sem espaço ou planos de contingência. Viagem aos hostels que abrigam 800 refugiados (e onde a Covid já entrou)

De seguida, o coordenador guia o Observador pela instalação de campanha que foi montada naquele foyer: “Eles entravam aqui por esta espécie de receção, um a um. Depois sentavam-se aqui à frente numas mesas que colocámos, onde estavam pessoas do INEM, e faziam os testes, com as zaragatoas. Depois eram levados para aquela sala”, diz, apontando para uma espécie de salão de festas da comunidade, quase todo feito em mármore sólido. Ali já se fizeram muitos jantares e cerimónias, como a que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa promoveu com líderes de várias confissões religiosas. Naquele dia, estava cheio de cadeiras de metal, com um metro e meio de distância entre cada uma.

O salão de mármore da Comunidade Islâmica já serviu para acolher festas e encontros. Foi aqui, sentados nestas cadeiras, que estiveram os 180 requerentes de asilo do hostel Aykibom

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“Ao todo, 120 operacionais estiveram aqui a trabalhar nessa noite: polícias, bombeiros, INEM, tradutores, etc.”, conta Abed. “Houve muito boa vontade”, sublinha o responsável da Comunidade Islâmica, destacando a resposta rápida que permitiu que uma situação que poderia correr mal se resolvesse em cerca de 6 horas. Enquanto se esperava que os laboratórios processassem os resultados dos testes, quatro funcionários do refeitório prepararam grandes quantidades de caril de frango e de grão com arroz para alimentar os cerca de 180 homens, a maioria de países como a Gâmbia, Nigéria e Costa do Marfim. “Tínhamos de arranjar coisas que rendessem, que eles pudessem comer sem restrições (porque a maioria são muçulmanos e não comem porco) e que fosse algo que eles gostassem, que lhes fosse familiar”, resume Abed.

Enquanto se esperava que os laboratórios processassem os resultados dos testes dos 180 requerentes de asilo do Aykibom, quatro funcionários do refeitório da mesquita prepararam grandes quantidades de caril de frango e de grão com arroz para alimentar os cerca de 180 homens.

Tal não impediu alguns momentos “de muita tensão”. “Eles estavam com alguma ansiedade para saberem se estavam infetados ou não”, conta. No salão, cada um tinha apenas uma cadeira e o seu próprio telemóvel, na maioria dos casos. Abed decidiu que era melhor não colocar ali nenhuma televisão, pois revelaria aos cerca de 200 requerentes de asilo que estavam a ser objeto de reportagem em todo o país, o que poderia agravar a agitação. “Houve ali um momento de algum nervosismo, mas passou. Entrou cá o Corpo de Intervenção, mas só a presença deles já foi dissuasora. É normal, quem não estaria nervoso nesta situação?”, pergunta. Abed destaca ainda o “mérito” das autoridades, que conseguiram processar todos os testes na própria noite. “Às 3h30 da manhã, saiu o último autocarro. Tudo foi descontaminado a seguir”.

Quanto a Abed, foi para casa, refletir sobre o dia intenso por que tinha acabado de passar. “Para nós foi um desafio muito grande, se corresse mal afetaria a imagem de toda a comunidade [islâmica]. Graças a Deus, houve a possibilidade de cada um ocupar os seus papéis”, afirma. E confessa que, apesar de estar equipado com EPI dos pés à cabeça, também ele sentiu medo:  “Quando se fala de solidariedade, compaixão… É bonito, toda a gente fala. Na prática, às vezes, a realidade é diferente. Mas pensei: ‘Se tiver de ser, é’”, afirma, antes de puxar do telemóvel para mostrar uma fotografia tirada nesse dia, onde está equipado dos pés à cabeça.

Para a Câmara Municipal de Lisboa, alojar estes migrantes é “uma questão de saúde pública”

Enquanto toda esta agitação abalava a mesquita na noite de 19 de abril, Kapil e os seus companheiros dormiam no anexo, a umas centenas de metros de distância do foyer, sem saber o que se passava. Já ali estavam há seis dias. Mas o seu caso é em muito diferente dos quase 200 requerentes de asilo, que foram depois transportados para a OTA.

Tudo começou ainda no início da chegada do novo coronavírus a Portugal, em março, quando a direção da comunidade islâmica decidiu disponibilizar espaço aquele espaço para a autarquia. Contactada, a Câmara Municipal de Lisboa enviou técnicos ao local para avaliar as condições. Inicialmente, ficou decidido que no anexo poderiam ser alojados sem-abrigo que viessem a testar positivo para o novo coronavírus.

Cada um dos 14 homens que estão aqui isolados têm os seus pertences pessoais. A mesquita garante-lhes cama, cobertores, toalhas, alimentação e acomoda outros pedidos, se possível

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“O espaço foi aberto na segunda-feira, dia 13 [de abril]. Tínhamos oito camas, mas com capacidade para subir. Pouco depois, recebemos um telefonema a perguntar se podiam antes usar o espaço para alojar alguns daqueles migrantes, que são pessoas que estão à espera de reformular a sua situação.” De oito camas, a mesquita passou a disponibilizar 30. 12 no anexo, que está neste momento com ocupação lotada, e mais 18 no pavilhão gimnodesportivo que pertence à comunidade, onde, neste momento, estão já duas pessoas infetadas. Todos são migrantes.

Mas como é que a autarquia conseguiu encontrar estas pessoas, testá-las e realojá-las neste espaço? A explicação é dada ao Observador pelo vereador da Câmara Municipal Manuel Grilo, com o pelouro dos Direitos Sociais: “Estes casos são sempre identificados pelo delegado de saúde. Acorremos quando somos contactados pelo delegado de saúde e aí desencadeamos a proteção civil”, relata. “Com exceção da pessoa em situação de sem abrigo, todos os outros vieram de equipamentos em que foram detetados a existência de uma ou duas pessoas infetadas [e que necessitavam de ser] isoladas para fazer a sua quarentena — e aí dirigimo-los para ali”.

O objetivo é que possam fazer a quarentena em segurança, sem infetar outras pessoas, e que tenham apoio de saúde imediato caso a sua situação se agrave — já que, ao contrário da maioria dos infetados que faz quarentena em casa em Portugal, estes homens não conseguem contactar diariamente com as equipas de saúde por telefone, por não falarem a língua.

O facto de não serem cidadãos portugueses, nem sequer requerentes de asilo, como as pessoas que estavam alojadas no hostel Aykibom à responsabilidade do SEF e do Conselho Português para os Refugiados (CPR), não incomoda minimamente a autarquia: “Estamos a seguir as indicações do Governo, que suspendeu qualquer penalização, para que todas as pessoas possam ser tratadas no Serviço Nacional de Saúde”, relembra. A medida, aplicada pelo executivo, prevê uma espécie de autorização de residência temporária a todos os cidadãos estrangeiros que tenham pedido autorização de residência ao SEF ou asilo até 18 de março.

O hostel Aykibom tinha quase 200 requerentes de asilo alojados num pequeno espaço. A grande maioria, quase todos infetados, estiveram também temporariamente alojados na mesquita de Lisboa

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Não é certo, no entanto, que todos estes 14 homens o tenham feito. Mas Manuel Grilo considera que, neste momento, tal pouco importa: “Ao contrário do caso do hostel Aykibom, onde se tratava de requerentes de asilo, aqui estamos a falar de migrantes, a maioria requerentes do estatuto de migrante legal. Muitos já fizeram o pedido ao SEF e, portanto, estão em situação legal”, relembra o vereador. “Outros não. Mas isso não nos interessa nada, porque estamos a falar de uma questão de saúde pública”.

“Ao contrário do caso do hostel Aykibom, onde se tratavam de requerentes de asilo, aqui estamos a falar de migrantes, a maioria requerentes do estatuto de migrante legal. Muitos já fizeram o pedido ao SEF e, portanto, estão em situação legal”, relembra o vereador. “Outros não. Mas isso não nos interessa nada, porque estamos a falar de uma questão de saúde pública”.

Mohammed Abed, da Comunidade Islâmica, concorda. “A nossa preocupação é que eles se sintam bem e que lhes garantamos o maior conforto possível”, assegura. “Estas pessoas não estão numa prisão. Estão sim numa situação de saúde complicada”, relembra.

Apesar disso — e sem capacidade para estimar quantos migrantes poderão estar a viver em condições semelhantes àquelas em que estavam estes 14 homens em toda a cidade —, Manuel Grilo garante que a autarquia está alerta, mas que esta não é a situação mais explosiva no que diz respeito a um possível novo surto de Covid-19 na cidade. “Há grupos [com migrantes] onde há habitação superlotada, muita gente junta. Mas muitas vezes estamos a falar — como foi no caso do Aykibom — de gente jovem, com uma capacidade de resistência muito grande. Não quer dizer que sejam esquecidos, porque não são, mas não são o principal grupo de risco. Esse é o dos idosos, nomeadamente os que estão em lares”. Em Lisboa, até agora, não foram ainda detetados casos positivos do novo coronavírus em nenhum lar de idosos, de acordo com o vereador dos Direitos Sociais.

Já quanto a novos casos de migrantes como Kapil, por exemplo — contagiado por um colega de casa e sem condições para ficar isolado em quarentena no seu domicílio —, Manuel Grilo explica que a Câmara tem um plano de contingência ativado que recorre, uma vez mais, à boa-vontade da mesquita de Lisboa: “Esse plano prevê a ativação do pavilhão gimnodesportivo e pode servir para acolher pessoas de imediato, se necessário. Não sabemos se virá para aí uma nova situação com 10, 20 ou 30 pessoas [infetadas]. O que sabemos é que temos capacidade de resposta — por enquanto não está a ser utilizada e ainda bem, é bom sinal.”

O programa da Cristina, a Playstation de Rafael e os projetos de Kapil para quando a quarentena acabar

Se entretanto chegarem mais, o mais certo é que venham também a ser monitorizados pelo bombeiro Rafael Correia e pelos seus colegas. As corporações da Ajuda e de Campo de Ourique sabem-no e os seus bombeiros já estão mentalizados. É por isso que Rafael vai abrindo o saco de desporto, cinzento e azul-escuro, que trouxe consigo, para mostrar o que lá está dentro: uma Playstation. “Vou ficar aqui 24 horas sozinho, acha que não ia trazê-la?”, é a pergunta retórica que atira para o ar, com o sorriso a fugir para um dos cantos da boca, em tom malandro. “Não gosto de jogar PES. Eu gosto é de FIFA, por isso trouxe um FIFA e um Call of Duty”. Mas a jogatana terá de esperar: só depois de o comandante passar ali à tarde e autorizar Rafael a ligar o equipamento.

Rafael Correia de olhos focados n'O Programa da Cristina, depois de Cristina Ferreira ter mostrado a camisola da farda da Corporação da Ajuda. Em baixo, do lado esquerdo, está o saco com a Playstation

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A conversa é interrompida quando o bombeiro se levanta , de repente, em direção à televisão e grita “Oooooooolha!”, correndo para o televisor. No programa de Cristina Ferreira, a apresentadora mostra para a câmara uma camisola emoldurada da farda da corporação dos bombeiros da Ajuda. Rafael fica parado a menos de um metro do ecrã, olhando fixamente. Cerca de uma hora antes, o programa tinha emitido uma reportagem com dois dos seus colegas na Ajuda, a refletirem sobre as saudades de ir a casa e o risco que correm no dia-a-dia. O comandante esteve depois em estúdio, a elogiar todos os seus homens e mulheres, e pôs a própria Cristina Ferreira em lágrimas.

Ali, no anexo da mesquita, Rafael admite que também esteve “a chorar sozinho”, enquanto assistia a essa parte do programa. “O meu comandante bem avisou: tragam lenços, que aquilo vai ser para chorar de certeza”, recorda o jovem. “É mais por causa dos meus colegas, os que têm filhos e tudo o mais”, conta, bebericando um dos cafés da máquina preta. “Sabe que já tivemos dois bombeiros isolados na unidade?”, acrescenta. Os colegas tinham ido fazer um serviço de transporte de uma pessoa para o hospital, que não faziam ideia que estaria infetada. No dia seguinte, foram informados. Passaram duas semanas isolados no quartel, sem falar com ninguém, fechados numa sala. “Eles já estavam a bater com a cabeça nas paredes, eu nem quero imaginar…”, diz Rafael, na única vez em que o sorriso lhe desaparece ao longo dessa manhã. Mas que não tarda em reaparecer quando acrescenta, piscando o olho direito: “Mas também tinham uma Playstation com eles”.

Kapil Udin tem 25 anos e veio há cinco meses da Dinamarca, onde estudava, para Portugal. Não contou aos pais que está infetado com Covid-19

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Se tudo correr bem, não faltará muito para que pelo menos este serviço seja um a menos na lista de Rafael e dos seus colegas na Ajuda — e, quem sabe, “ainda nos dão um louvor a todos”, suspira o bombeiro que, aos 21 anos, tem a responsabilidade de cuidar sozinho de 14 homens adultos, infetados com a doença que abala o mundo. A maioria dos imigrantes que aqui estão, contudo, conclui as duas semanas de isolamento nesta segunda-feira, dia 27, altura em que serão novamente testados. Se o resultado for negativo, poderão sair do anexo de paredes brancas, sem janelas, onde estiveram enclausurados.

Kapil já fez planos. A longo-prazo, quer “voltar a estudar”, seja em Portugal ou na Dinamarca. Mas quando atravessar o corredor do anexo, passar a antecâmara e puser o primeiro pé na rua, ser-lhe-á de imediato concedido o desejo que mais quer neste momento: “Sentir a luz do sol. Sentir o ar fresco”, diz, com a cabeça levantada e os olhos fechados, como se já os sentisse dentro do anexo abafado, que partilha com tantos outros homens, onde a imaginação esbarra nas paredes brancas e a privacidade acaba assim que se destapa o cobertor pela manhã. “Quero ser livre”, acrescenta Kapil. “Mas está quase. Está quase”.

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