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Eric Millette

Eric Millette

Steve Blank: "O Facebook é como uma empresa de cigarros dos anos 1950. Mas em vez de pessoas, pode matar países"

Autor do livro que é considerado a bíblia do empreendedorismo tece duras críticas às redes sociais. Diz que os EUA não aprenderam nada com as eleições de 2016 e alerta: "Isto não vai acabar bem".

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Sem hesitações, com sentido de humor e de dedo apontado às redes sociais. Foi assim que Steve Blank recebeu o Observador, por videochamada, numa entrevista que atravessou uma diferença de oito horas. De São Francisco, nos EUA, o autor do livro que é considerado a bíblia do empreendedorismo, o “Four Steps to the Epiphany”, explicou-nos porque é que, em 2020, teria “vergonha” de trabalhar no Facebook: porque a rede social é como uma empresa de cigarros nos anos 1950 e 60. “Mas em vez de matar pessoas, pode matar países”, referiu o empreendedor que também é conhecido por ser “O Padrinho” de Silicon Valley.

“Estas empresas de tabaco descobriram como tornar o produto que vendiam mais viciante e há pessoas no Facebook que, na verdade, é este o trabalho que têm: perceber como é que a rede social pode ter mais engagement. E o engagement não é necessariamente saudável, tal como eu fumar mais cigarros”, referiu.

Com uma experiência de 21 anos em oito empresas de alta tecnologia, Blank reformou-se em 1991 e foi aí que escreveu o livro que veio a anteceder aquele que é o “The Lean Startup Movement” — conceito que pela primeira vez distinguiu o modus operandi das startups do das grandes empresas. Além de empreendedor, Blank é professor, tendo já lecionado nas universidades de Stanford, Berkeley, Columbia ou Nova Iorque. Em 2012, a Harvard Business Review listou Blank como um dos mestres da inovação e, no ano seguinte, a Forbes integrou-o na lista das 30 pessoas mais influentes no ecossistema tecnológico. Ao Observador, deixou um alerta sobre os tempos que correm: “A história diz-nos que isto não acaba bem e acho que tendo a seguir a história: isto não vai acabar bem. Sou um grande fã da inovação e do empreendedorismo, mas estes extremos preocupam-me”.

Com a pandemia como pano de fundo e as eleições nos EUA na mira, Steve Blank explicou-nos qual é o grande erro da tecnologia. “Há muito tempo que o erro é achar que a tecnologia consegue resolver os problemas humanos. Mas só os humanos conseguem resolver os seus problemas. E a maioria da tecnologia acaba por não ser usada da forma que as pessoas inicialmente pensaram que iria ser usada”, referiu.

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“Depois de 2020, torna-se difícil defender que trabalhaste no Facebook. Eu teria vergonha de trabalhar lá”

Vivemos tempos difíceis, com as grandes tecnológicas a exercer poder em coisas tão diferentes como a privacidade dos dados, a política, liderança. Acha que conseguimos resolver tudo isto no curto prazo?
Claro. Se houver vontade política, claro que conseguimos resolver os problemas tecnológicos no curto prazo. Fizemos isso nos EUA, no início do século XX, com as maiores petrolíferas que eram players dominantes na altura e com outras grandes empresas, que se tornaram holdings gigantescas. E conseguimos resolver este problema do capitalismo e da democracia durante metade do século — até ter surgido esta segunda vaga de grandes empresas que têm uma influência nacional e internacional completamente fora de escala. Por isso, sim, conseguimos resolver. Mas, no século XXI, é mais difícil, porque as pessoas que estão interessadas em não resolver estes problemas têm uma enorme influência, incluindo no controlo da comunicação social e nas contribuições que fazem para políticos. É difícil, mas pode ser resolvido quando as pessoas entenderem que isso está nos seus interesses.

Parece-me um otimista, com essa resposta.
Não, sou um pessimista. Perguntou-me se podia ser resolvido e disse que podia. Sim, pode. As pessoas confundem os problemas da tecnologia: por um lado, há problemas com as redes sociais. Por outro, há problemas com os monopólios no comércio, por exemplo. Isto não são as mesmas coisas, mas ambos são um sintoma do que acontece quando não há controlo no crescimento e és mais guiado pelo capitalismo do que por outra coisa talvez um pouco mais benigna. E, regra geral, isto não acaba bem.

O Congresso sugeriu que estas grandes empresas tecnológicas fossem desmanteladas. Acha que vai ser possível num futuro próximo? Dividir o Facebook em duas ou três empresas, por exemplo?
Acho que estamos a confundir monopólios no comércio — como pode acontecer com a Apple e Amazon — com o problema que temos com o Twitter, Facebook e as redes sociais, que é diferente: estas empresas são geridas por indivíduos e não pelos conselhos de administração ou investidores. Basicamente, estão dispostos a destruir a democracia para maximizar as receitas. É o triste estado das coisas. Ninguém começou estas empresas a achar que elas se tornariam nisto, mas, se te lembrares do início das redes sociais, o objetivo era aproximar-nos a todos, para sermos capazes de ligar o mundo de uma forma que nunca tinha sido possível. E, em alguns casos, isso ainda existe, mas acabaram por se transformar em ferramentas usadas para a desinformação, que são facilmente manipuláveis.

No séc XX, o fundador da União Soviética, Lenin, tinha uma boa frase que dizia qualquer coisa como: o capitalismo vai vender-nos a corda com a qual vamos enforcá-los. E acho que isso descreve em parte Mark Zuckerberg e o Facebook. Quero apenas diferenciar estas ferramentas, que acho que são destrutivas para as democracias e que estão a ser usadas.

"Quando pões o partido à frente do país, então começas a criar desculpas para muitas outras coisas. E distancias-te daquilo que é bom para todos nós em detrimento do que é bom para ti e para os teus amigos. E isto não é apenas um problema nos EUA, é um problema em todos os países"

Estas ferramentas são as redes sociais?
Sim, versus as ferramentas que são usadas para o comércio. A Google, a Amazon e o resto são monopólios tradicionais, como existiam nos EUA, no século XX, nas petrolíferas. E agora os dados são o petróleo do séc. XXI. São estas as empresas que têm agora o monopólio em comércio ou nos motores de pesquisa, seja no que for — que são, essencialmente, o petróleo do séc. XXI. São dois assuntos muito diferentes: os monopólios Vs democracia. E é fácil de ver que o Congresso conseguiu transformar isto numa espécie de rede de malhas, na qual podes pôr todos estes assuntos, que são diferentes, mas importantes na mesma. E isto é a questão: o governo deve salvaguardar as pessoas disto. Não apenas nos EUA, mas em todo o mundo. E há implicações no que acontece quando estas empresas têm tanto poder. Historicamente, nos EUA, dizemos que isso não é uma coisa boa. Mas é uma coisa que vai e vem, dependendo das grandes contribuições [aos partidos] e da mentalidade política que existe em determinada altura.

Nas últimas eleições presidenciais, em 2016, percebemos como tudo isto é perigoso, com o caso Cambridge Analytica e as alegadas interferências russas. Os EUA estão outra vez prestes a ir a eleições. Continuamos a enfrentar os mesmos perigos?
Claro.

Não se aprendeu nada nos últimos quatro anos ou estamos a lidar com outros desafios e perigos?
Sabes, quando o teu partido beneficia destes perigos e disrupções, então vais tender a dar-lhes um desconto. E, nos EUA, os interesses dos indivíduos afastaram-se muito daquilo que eram os interesses do país Vs os interesses dos partidos. Quando pões o partido à frente do país, então começas a criar desculpas para muitas outras coisas. E distancias-te daquilo que é bom para todos nós em detrimento do que é bom para ti e para os teus amigos. E isto não é apenas um problema nos EUA, é um problema em todos os países. Como é que otimizas o bem social através do partido em que estás Vs como o é que tornas o teu grupo melhor e mais dominante?

Isto não é um problema dos EUA nem do século XXI. Desde que as pessoas andam por aqui e andam em grupos, mesmo em tribos [que isto acontece]. Mas tem afetado a sociedade. Acho que a história nos mostrou que a otimização dos pequenos grupos funciona durante algum tempo, mas depois é como se dissolvesse. E, por isso, a resposta à tua pergunta é: a situação atual é aquela em que as pessoas estão mais do que com vontade que a manipulação continue, desde que isso esteja nos seus interesses.

E é muito interessante olhar para os países que perceberam o quão perigosas eram as redes sociais. A China há 10 ou 15 anos começou a construir a sua grande firewall, para tentar minimizar a influência externa no país. E não estou a sugerir que isso seja bom, estou apenas a sugerir que na sua visão distópica daquilo que a sociedade deveria parecer, decidiram construir o mundo à sua imagem. Infelizmente, se fores alguém no Tibete ou em Hong Kong isso para ti não funcionou muito bem. Por isso, podes ir pelo outro lado e ter o controlo do governo sobre as redes sociais e ter os créditos sociais e todas estas coisas que são inimagináveis.

"Se pensares nisto, o Facebook é como uma empresa de cigarros nos anos 1950 e 60. Francamente, essa é a melhor analogia. Mas em vez de matar pessoas, pode matar países. Nos anos 1950 e 60, estas empresas de tabaco descobriram como tornar o produto que vendiam mais viciante e há pessoas no Facebook que, na verdade, é este o trabalho que têm: perceber como é que a rede social pode ter mais engagement"

Como podemos parar esta infraestrutura manipuladora que é construída nas redes sociais? Deviam ser os líderes? Um regulador nacional ou internacional deste problema?
Se soubesse a resposta, estaria a liderar isto. [risos]. Acho que a melhor coisa que podemos fazer é responder às perguntas. Temos o exemplo da China, que bloqueia a influência externa e usa redes sociais para controlar populações minoritárias e acho que isso é um caminho pelo qual não queremos ir. Já vimos as redes sociais a serem usadas nos EUA para destruírem democracias. Ainda não consigo pensar num bom exemplo, que tenha sido usado para resolver a sua intenção inicial. Quase todas as invenções de boas tecnologias começaram… Muito poucas começaram com a premissa de “Vamos ser maus e fazer coisas más”. Elas começaram quase todas, porque os empreendedores e as pessoas em tecnologia tendem a ser otimistas e querem mudar o mundo, não se parecem com o Dr. Evil.

Mas não podes dizer que foi isso que aconteceu ao Facebook. O Facebook tornou-se num dos piores produtos do mundo. E os fundadores não querem saber, porque são algumas das pessoas mais ricas à face da terra. Para responder à tua pergunta: não sei, mas acho que os utilizadores destes produtos e toda a gente precisa de se questionar sobre isto. Talvez precisemos de dividir estas coisas, se calhar precisamos de perceber o que se passa dentro delas. Ou se calhar precisamos de responsabilizar as pessoas que gerem estas empresas.

As pessoas podem não querer saber: usam as redes sociais, divertem-se, mas nem sequer percebem o quão prejudiciais podem ser, até que algo como o Cambridge Analytica é revelado. Ou se descubram coisas como os efeitos que as redes sociais têm na saúde mental das pessoas. 
Se pensares nisto, o Facebook é como uma empresa de cigarros nos anos 1950 e 60. Francamente, essa é a melhor analogia. Mas em vez de matar pessoas, pode matar países. Nos anos 1950 e 60, estas empresas de tabaco descobriram como tornar o produto que vendiam mais viciante e há pessoas no Facebook que, na verdade, é este o trabalho que têm: perceber como é que a rede social pode ter mais engagement. E o engagement não é necessariamente saudável, tal como eu fumar mais cigarros. O aviso que dou aos meus estudantes agora é que, atualmente, ter o Facebook como entidade empregadora no teu CV, é como ter a Theranos no CV também. Ou algo parecido. Antes de 2017 ou 2018 pode ter sido — ninguém sabia –, mas depois de 2020 torna-se um bocado difícil defender que é essa a empresa na qual trabalhaste. Eu teria vergonha de trabalhar lá.

O que acha desta iniciativa de Donald Trump de banir o TikTok? Tendo em conta que ele alega que são questões de segurança nacional.
No minuto em que pões Donald Trump no começo de uma conversa, é um rastilho para algumas pessoas… Deixa-me reformular a questão: de que é que se trata quando falamos em banir aplicações chinesas nos EUA? É preciso lembrar que a maioria das aplicações de redes sociais americanas não estão disponíveis na China. Não é como se agora estivéssemos a começar uma guerra comercial. Não. E a razão pela qual isto acontece é o que disse há pouco: os chineses perceberam que não queriam vozes externas dentro da China e baniram tudo o que pudesse entrar. Mas o TikTok trata-se de um assunto diferente, porque não se tratava apenas de um ponto de vista chinês sobre banir pessoas que criticassem a China ou o Partido Comunista Chinês (PCC). Não, estava também a recolher dados pessoais de potenciais centenas de milhares de americanos.

Na China, se és uma startup ou uma empresa, tens de estar alinhado com o PCC. Esta divisão entre o Exército e o Estado, que existe nos EUA e na Europa, não existe na China. O partido e o exército e a empresa são uma coisa só. Acho que o TikTok é um sintoma de um problema muito maior sobre o que pode ser usado na China e nos EUA, mas também um problema de segurança nacional. E é provavelmente apenas uma entre centenas de aplicações que entram nessa categoria de apps. Não é um problema de Trump. é de facto um problema de segurança nacional. E um problema que reflete sobre como estes dois países têm usado as suas aplicações.

"O que aconteceu na última década e meia é que tudo isto se tornou quase num esquema Ponzi. Ou seja, estas avaliações tornaram-se mais sobre quem é que pagará mais na próxima ronda em vez de se serem sobre se a empresa de facto vale aquele valor. Todos estes unicórnios estão baseados na ideia de que talvez em 5, 10 ou 20 anos sejam a próxima Amazon ou Apple ou algo do género"

“Isto não vai acabar bem. Sou um grande fã da inovação e do empreendedorismo, mas estes extremos preocupam-me”

Como é que acha que a pandemia está a impactar o ecossistema tecnológico? Uma das coisas que percebemos é que está a acelerar a digitalização um pouco por todo o lado. 
Temos três horas para falar sobre isto? [risos] Acho que o mundo vai ser dividido em três épocas diferentes: pré-Covid, durante Covid e depois da vacina. Durante a Covid-19 vimos uma série de comportamentos: as pessoas não iam trabalhar, usavam o Zoom, restaurantes fecharam, etc. E a grande questão, a coisa mais interessante vai ser: quantas destas mudanças são permanentes quando tivermos uma vacina disponível no mundo todo e as pessoas se sentirem confortáveis em voltar a trabalhar? As pessoas vão voltar a trabalhar em escritório cinco dias por semana ou aprenderam que se calhar só precisam de ir dois? Vão voltar para cidades como São Francisco ou Nova Iorque ou perceberam que podem trabalhar a partir de um resort de Ski e que muito do meu trabalho vai ser virtual? As pessoa vão continuar a ir a grandes conferências ou perceberam que conseguem fazer decorrer estas conferências com 500 pessoas online?

Acho que o maior impacto que pode haver e que teremos de ver se se mantém é que o empreendedorismo tem estado por todo o lado no século XXI. A internet permitiu aos empreendedores existir em todas as cidades e línguas. O inglês acabou por tornar-se um bocado a linguagem padrão dos empreendedores, mas a questão é: o investimento em capital de risco de escala, de centenas de milhões de dólares, historicamente estava disponível nos clusters de Nova Iorque, São Francisco, Telavive… Talvez Londres numa altura pré-Brexit. Mas agora temos de ver. A outra pergunta é: estes empreendedores conseguem, agora, estar em qualquer sítio e angariar essa quantidade de dinheiro? Ou ainda precisam de estar nesses clusters de inovação? Acho que isso vai ser a experiência científica interessante, porque pode significar o fim dos clusters. Não o fim, mas pode significar que não precisas mais de estar fisicamente em São Francisco ou Nova Iorque.

Isso pode beneficiar uma cidade como o Lisboa?
Acho que mais do que se pode ou não beneficiar a cidade de Lisboa, interessa saber se os empreendedores conseguem levantar dinheiro em qualquer lado. Se és um empreendedor em Lisboa é o mesmo que ser um empreendedor que costumava viver em São Francisco? Os investidores podem passar-te se um cheque, mas consegues levantar uma ronda de 10, 20 ou 100 milhões de dólares onde quer que estejas, independentemente de esse sítio ser Lisboa? Acho que esse é que vai ser o teste e não tenho resposta. Mas pode ter havido uma mudança, sim, apesar de não ter dados sobre isto.

Tivemos grandes empresas sobrevalorizadas e uma bolha que se gerou à volta dos unicórnios. Acha que essa bolha pode ter chegado ao fim e que está a emergir um novo ciclo? Os últimos IPO [admissão de uma empresa em bolsa] tecnológicos foram dececionantes…
Os fundadores começam as suas empresas com esta grande visão de que querem mudar o mundo e depois encontram investidores, que são profissionais [nos IPO], e eles pura e simplesmente não querem saber daquela que é a sua visão. Não é por isso que estão a investir. Investem, porque querem obter um retorno obsceno. Não é um bom retorno, é um retorno obsceno. Os empreendedores esquecem-se de que os investidores podem gostar da sua ideia, mas estão a olhar para uma folha de Excel. Vão olhar para os teus consumidores, para saber que os tens, mas para eles trata-se sempre de um negócio financeiro.

O que aconteceu na última década e meia é que tudo isto se tornou quase num esquema Ponzi. Ou seja, estas avaliações tornaram-se mais sobre quem é que pagará mais na próxima ronda em vez de se serem sobre se a empresa de facto vale aquele valor. Todos estes unicórnios estão baseados na ideia de que talvez em 5, 10 ou 20 anos sejam a próxima Amazon ou Apple ou algo do género. Nos últimos 10, 15 anos, costumavas ter empresas que eram admitidas em bolsa assim que precisavam de capital para escalar. Era o único sítio onde conseguias levantar 50 ou 100 milhões de dólares, era recorrendo a investidores públicos. Isso mudou radicalmente. O que se passa agora é que as empresas ficam privadas durante mais tempo, porque há capital disponível, oriundos de fundos com escala. E assim podes levantar  100 milhões de dólares quando isso, antes, te obrigava a ir aos mercados públicos. Este jogo mudou radicalmente.

Depois de ter estado durante 21 anos em oito empresas tecnológicas, reformou-se em 1999

Estas empresas ficam privadas durante mais tempo, porque há mais dinheiro disponível. Mas este dinheiro existe porque houve uma grande crise financeira. E agora estamos no meio desta pandemia e pode vir aí outra crise. O ciclo vai continuar ou podemos esperar uma mudança?
Há cerca de sete anos participei num debate com sobre se estávamos numa bolha e disse que sim, absolutamente, e que essa bolha ia rebentar, etc. Estava tão completamente errado. Porque tinha perdido a onda que viria aí dos fundos soberanos e  dos hedge funds, etc. Falhei completamente. E deixei de responder a esta pergunta que fizeste, porque, eventualmente, algum dia vai rebentar. Mas quem sabe? Quem sabe o que vai acontecer? A resposta é: não sei. Acho que estamos todos a dar palpites.

Sobre o comportamento dos fundadores de startups… Tivemos tantas histórias de má liderança nos últimos anos. O que acha disto e quão prejudicial é este tipo de liderança?
No século XX, os fundadores tecnológicos construíam o produto, começavam a ter receitas e se a empresa precisasse de mais capital, ia para os mercados públicos. Mas nunca poderias levar uma empresa destas para o mercado no sec. XX com um fundador tecnológico. Até a Apple precisou daquilo a que se chamava um adulto com um fato. E contrataram alguém com um MBA e alguns executivos financeiros, que percebiam muito vagamente da tecnologia, mas que olhavam para o financial roadshow… E a história depois é conhecida. Mas, no séc. XX, os ciclos tecnológicos eram tão longos que podias ir para o IPO e fazer render a tua invenção tecnológica inicial, durante dois ou três anos, antes de a empresa ir para o declínio. Porque depois a empresa não continuava tão bem sem a sua equipa de fundadores tecnológicos.

No séc XXI, um dos fundadores do Netscape tornou-se investidor e disse que neste século os ciclos tecnológicos ocorrem tão depressa que se se tirassem os fundadores das empresas, deixavas de ter a capacidade para continuar a inovar. Por isso, o que a empresa dele fez foi vai fazer apoiar os fundadores enquanto CEO e ter outras pessoas à volta dele que percebessem do negócio. A primeira experiência destas ocorrei quando a Google contratou o Eric Schmidt para ser o adulto na sala. E o Facebook contratou a Sheryl Sandberg. Tudo isto neste modelo de manter os fundadores por perto o máximo de tempo que fosse possível. E o que aconteceu foi que quando os unicórnios começaram a explodir, ali por volta de 2013, de repente, o pendente foi para o outro lado. E os fundadores passaram para a lógica de: então, se somos as pessoas mais importantes neste negócio e vocês querem uma avaliação de mil milhões, então nós vamos querer direitos especiais, para ficarmos aqui para sempre.

E de repente foram para uma direção completamente oposta àquela em que estava quando eu era empreendedor, no séc. XX. Se fores um dos unicórnios e tiveres à tua frente o melhor negócio de investimento, podes dizer que queres ter mais direitos de voto do que todos os outros, escolher os membros do conselho de administração, etc. Ou ficar no comando para sempre. E aí pensas: quem é que no seu juízo concordaria com isto?

"A história diz-nos que isto não acaba bem e acho que tendo a seguir a história: isto não vai acabar bem. Sou um grande fã da inovação e do empreendedorismo, mas estes extremos preocupam-me. Quando não há limites, as coisas ficam fora de controlo. E sinto sinceramente que estamos num mundo sem limites"

E aí voltamos ao facto de, pelo menos nos EUA, o que se costumava chamar de Securities and Exchange Commission [o regulador norte-americano dos mercados] apesar de manter o mesmo nome, já não regula nada. No séc. XX eles ameaçariam estas pessoas com a prisão. Mas hoje nem seque prestam atenção. Aqui está um bom exemplo de onde a regulamentação estatal para as empresas é absolutamente necessária, na minha opinião.

Falamos destes exemplo, de empreendedores que são estrelas de rock e têm tanto poder…. Talvez não devesse ser essa a imagem que devia estar a inspirar os empreendedores que estão por esta altura a arrancar com os seus negócios. 
Depois de os EUA terem passado por um crash nas bolsas, em 1929, naquilo a que chamámos “A Grande Depressão” e que foi global, pusemos algumas regras em movimento que durante uns 40 anos orientaram aquilo que as empresas, no início, poderiam fazer. Com o tempo as pessoas foram percebendo como podiam dar a volta a estas regras e agora, essencialmente, não temos regras. Mas estas coisas são cíclicas e acho que já estamos a ver as consequências de não ter nenhumas regras. Vou dar um exemplo: um CEO deveria poder fazer mil milhões de dólares por ano? Deveria poder fazer 10 mil milhões enquanto os seus funcionários ganham o ordenado mínimo? Há muitas pessoas que acham que devem poder ganhar que quiserem e há outras que acham que o salário de um CEO não pode ser mais do que 20 vezes aquilo que o funcionário com o ordenado mais baixo ganha. E qual é a resposta certa? Depende da visão da sociedade.

Tenho de dizer-lhe: cresci num mundo em que me lembro de estar a falar com um investidor que fazia 5 milhões de dólares, não num ano, mas em toda a sua carreira. E estava incrivelmente feliz como um investidor de sucesso. Criámos estas grandes disparidades entre as pessoas e as economias. A história diz-nos que isto não acaba bem e acho que tendo a seguir a história: isto não vai acabar bem. Sou um grande fã da inovação e do empreendedorismo, mas estes extremos preocupam-me. Quando não há limites, as coisas ficam fora de controlo. E sinto sinceramente que estamos num mundo sem limites. Parece que quem tiver o ouro é que faz as regras. E quanto mais dinheiro estiver a entrar nas empresas que estão a ditar estas regras, menos restringidas elas vão ser. Isso não tem sido bom para a sociedade. Nem para o empreendedorismo. Eventualmente, vai colapsar.

"As pessoas confundem o que é ser um fundador com ter um trabalho. E ser um fundador não é um emprego. Na verdade, é o pior emprego do mundo. É um trabalho terrível. É um chamamento e a distinção entre o trabalho e o chamamento é que os artistas têm este chamamento, por exemplo"

“O erro é achar que a tecnologia consegue resolver os problemas humanos. Mas só os humanos conseguem resolver os seus problemas”

Sabemos que a tecnologia não é boa nem má, depende da utilização que façamos dela. Como acha que podemos ter mais ética na inovação tecnológica e torná-la mais humana, talvez?
Na Universidade de Stanford, o professor Tom Byers começou a lecionar uma disciplina sobre tecnologia e ética. E acho que este é um grande desafio no empreendedorismo e tecnologia. A nossa conversa começou com o Facebook e como alguma startups estão a propagar o mal, e vimos que algumas delas acabam por prejudicar e muito os indivíduos e a tecnologia. Por isso, isto é um problema que já está a ser ensinado nas escolas. E, mesmo no exército dos EUA, há um grupo que atua na área da inteligência artificial e tem um eticista sentado com eles para perceber qual é a forma mais correta de usar o machine learning e a inteligência artificial. Vamos ter as máquinas a tomar este tipo de decisão? E as conclusões deles foram óbvias: não. É claro que a ética tem de fazer parte da conversa que precisamos de ter.

Quando olha para o Lean Startup Movent, arrepende-se de alguma coisa ou há algo que teria feito de forma diferente?
O Lean Startup Movement começou com o meu livro “The Four Steps to the Epiphany”, mas descolou mesmo quando o Eric Ries escreveu o “The Lean Startup” e eu percebi que tínhamos ferramentas para a execução das ideias, mas não tínhamos para a procura por modelos de negócio. O Eric e eu juntámos estas coisas, depois o Alexander Osterwalder publicou o Canvas Business Model e foi com estes três componentes que o Lean Startup Movement começou. E devo dizer-te que ainda fico espantado quando vejo que as pessoas continuam a usar estas ferramentas e a falar sobre isto 20 anos depois. Só podem estar a brincar comigo [risos]. O que me leva a perceber que houve alguma verdade naquilo que observámos: as startups não são versões mais pequenas de empresas grandes.

Acho que não mudaria muito. A melhor coisa tem sido ver que depois deste trabalho têm sido publicados centenas senão milhares de livros… É maravilhoso! Não, não me arrependo de nada. De uma forma positiva, mudou a agulha para um sentido que não esperava. Acho que têm havido grandes contributos para o ecossistema, mas ainda não surgiu nada que dissesse: vamos deitar isto fora e agora vamos fazer diferente. Sinceramente? Acho que este sucesso não se deveu ao facto de ser brilhante, mas sim porque era estupidamente simples e óbvio, mas ainda ninguém tinha pensado nisso. Tenho créditos por ter observado a ideia estúpida e simples de que uma startup não é a mesma coisa que uma grande empresa.

Que conselhos dá aos empreendedores portugueses agora?
Go for it! [Vão em frente] Digo o que digo aos meus alunos e acredito cada vez mais nisto todos os anos. Quando era um empreendedor, só as pessoas muito loucas faziam isto. E agora que o empreendedorismo é uma coisa que é possível de fazer no mundo inteiro, toda a gente acha que é fixe e quer dizer às pessoas que se senta num café a  trabalhar só com o computador. Mas as pessoas confundem o que é ser um fundador com ter um trabalho. E ser um fundador não é um emprego. Na verdade, é o pior emprego do mundo. É um trabalho terrível. É um chamamento e a distinção entre o trabalho e o chamamento é que os artistas têm este chamamento, por exemplo  — não te transformas num artista para teres um emprego. Tornas-te artista porque tens uma paixão pela criação de algo que as outras pessoas não vêem ou ouvem. E ninguém vê ou ouve à exceção de ti. E isso também é aquilo que os fundadores são. E isso é a paixão que vai guiar-te por todas as desilusões, que são inevitáveis, por todos os falhanços, tudo o que corre mal. Se não sentires este chamamento e não tiveres esta paixão, o primeiro falhanço atira-te ao tapete e não te levantas. Se for esse o caso, talvez seja melhor teres antes um emprego normal.

"Há muito tempo que o erro da tecnologia é achar que consegue resolver os problemas humanos. Mas só os humanos conseguem resolver os seus problemas. E a maioria da tecnologia acaba por não ser usada da forma que as pessoas inicialmente pensaram que iria ser usada"

Tive estudantes que vieram ter comigo quando se estavam a licenciar e que me diziam que estavam indecisos entre dois empregos. Perguntava quais eram e eles diziam que tinham uma oferta da McKinsey. E aí dizia que eram uma ótima pergunta. “Porque é que estás com dúvidas?”, perguntava. E eles respondiam: “Bom, o meu colega de quarto está a pensar criar uma startup”. E eu digo-lhes logo: “Já decidiste”. E eles respondem: “Como? Mas ainda nem contei o que vai ser a startup.” E eu explico que não há sequer forma de colocar uma proposta da McKinsey e uma startup na mesma cabeça. Num dos casos, trata-se de um ótimo emprego, mas no outro, é um chamamento. E se sentissem este chamamento o emprego na McKenzie nem estaria na equação. “Estarias a pensar na startup em todos os momentos do dia. Não pode ser um trabalho.” É isto que lhes digo

Se conseguisse resolver um só problema num estalar de dedos, que problema seria?
Queria ter a capacidade de resolver múltiplos problemas. [risos]

E acha que vai surgir alguma tecnologia capaz de fazer isso?
Há muito tempo que o erro é as pessoas acharem que a tecnologia consegue resolver os problemas humanos. Mas só os humanos conseguem resolver os seus problemas. E a maioria da tecnologia acaba por não ser usada da forma que as pessoas inicialmente pensaram que iria ser usada. E por tecnologia… Temos estado a ter uma conversa assumindo que a palavra tecnologia significa hardware e software, mas, na verdade, existe todo um outro mundo a operar em paralelo, que são os negócios das ciências da vida — dispositivos médicos, diagnósticos, saúde digital , terapêuticas, etc. Isso acaba quase sempre por tornar as vidas melhores. E disse a muitos estudantes durante a pandemia, para considerarem uma carreira nas ciências da vida.

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