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Traçar um retrato musical de Igor Stravinsky (1882-1971) não é tarefa fácil, não só por a sua carreira ter sido longa e produtiva (para os padrões do século XX), como por nunca ter cristalizado num mesmo registo (ver A Primavera é a mais cruel das estações). Na lista de julgamentos ácidos que Stravinsky emitiu sobre os seus colegas de mister, o mais conhecido é o que reprova Vivaldi por “ter repetido 300 vezes o mesmo concerto”. A repetição é “pecado” que não pode ser imputado ao próprio Stravinsky, que fez incursões nos mais variados estilos musicais, foi avesso a conformar-se aos formatos-padrão da música clássica e recorreu às mais variadas técnicas de composição, incluindo algumas que antes declarara serem destituídas de interesse.

Esta diversidade estilística levou a que alguns compositores e críticos vissem Stravinsky como um compositor destituído de personalidade, impressão que foi reforçada pelas repetidas proclamações de Stravinsky de que a música era apenas uma articulação de notas, destituída de “significado” – em Brandy for the damned (1964), o escritor, melómano e crítico Colin Wilson descreveu-o como alguém que “tentou que a sua arte fosse tão impessoal como um naco de gelado”.

Stravinsky por Picasso, 1920

Todavia, frieza, distanciamento e impessoalidade são adjetivos completamente desadequados a descrever os três bailados que, entre 1910 e 1913, catapultaram Stravinsky da obscuridade para a fama: são obras tempestuosas e viscerais (ainda que tendo sido compostas de forma calculada e meticulosa) e que estão impregnadas de influências do folclore russo. Mas depois deu-se a Revolução de Outubro de 1917, que apanhou Stravinsky a viver, com a família, na Suíça, que escolhera como base em 1910. Com a sua Rússia devastada pela subsequente guerra civil e atendendo à perseguição aos representantes da “velha ordem” (de que Stravinsky, proveniente de uma família aristocrática com raízes polacas, fazia parte) e ao clima de turbulência e privações, pouco propício à atividade artística, e atendendo a que Stravinsky não tinha qualquer apreço pelos ideais bolcheviques, optou, tal como Rachmaninov e Prokofiev, por ficar a viver definitivamente no Ocidente (Prokofiev acabaria por ser aliciado a regressar à URSS em 1936). O próprio Stravinsky admitiria, muitas décadas depois, que a mais grave crise na sua vida como compositor fora o corte com as raízes russas. Ninguém sabe que caminho teria seguido a sua música se tivesse continuado a ser irrigada com os ritmos e melodias da música tradicional russa e a sonoridade da sua língua materna.

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Fantasia orquestral Feu d’Artifice

Estreia: 6 de fevereiro de 1909, São Petersburgo

Embora Stravinsky cedo tivesse demonstrado aptidões musicais e o pai, Fyodor, fosse um reputado baixo, integrando, como solista, as companhias da Ópera de Kiev e, a partir de 1876, do Teatro Mariinsky, de São Petersburgo, a família “empurrou” o jovem para o estudo do Direito. Stravinsky começou por aquiescer, com escassa assiduidade às aulas e ainda menor entusiasmo, e, assim que teve oportunidade, tornou-se aluno particular do compositor Nikolai Rimsky-Korsakov.

Stravinsky, Rimsky-Korsakov, Nadezhda, filha de Rimsky-Korsakov, o compositor Maksimilian Steinberg, noivo de Nadezhda, e Yekaterina, primeira esposa (e prima em primeiro grau!) de Stravinsky, em 1908

Este tornou-se numa figura tutelar para Stravinsky e o seu opus 1, a Sinfonia em mi bemol (1907), denota claramente a influência do seu mestre. Porém, não foi preciso muito tempo para que Stravinsky desse provas de não ser um émulo de Rimsky-Korsakov: em 1908, compôs uma miniatura brilhante, a fantasia orquestral Feu d’Artifice op.4, concebida como presente de casamento para Nadezhda, a filha do seu mestre (que morreria poucos dias depois das núpcias de Nadezhda). A obra estreou em 1909, em São Petersburgo, num concerto que incluiu outra miniatura sinfónica, o Scherzo Fantastique op.3 (de 1907).

[Feu d’Artifice, pela Orchestre de Paris, com direção de Pierre Boulez, ao vivo no Musée du Louvre, Paris, 2008]

Bailado O Pássaro de Fogo

Estreia: 25 de junho de 1910, Palais Garnier, Paris

O concerto de estreia de Feu d’Artifice e Scherzo Fantastique contou com a presença de Sergei Diaghilev, o empresário dos recém-criados Ballets Russes, que ficou tão bem impressionado com estas breves e feéricas peças – sobretudo com a primeira – que encomendou a Stravinsky um bailado para a sua companhia.

Na verdade, Diaghilev planeara confiar a composição de um bailado sobre lendas russas a um compositor consagrado (e hoje olvidado), Anatoly Liadov, mas este retorquiu que só teria a obra terminada dentro de um ano; Diaghilev estava determinado a que obra estreasse na temporada de 1910, pelo que decidiu apostar no jovem que ouvira em São Petersburgo.

O enredo de O Pássaro de Fogo (Zhar-ptitsa, em russo) resulta da fusão de duas lendas, a do Pássaro de Fogo e a de Koshchei o Imortal, e foi delineado pelo historiador e cenógrafo Aleksandr Benois e pelo coreógrafo Michel Fokine, dois elementos marcantes da constelação de talentos dos Ballets Russes. Narra a história do jovem príncipe Ivan, que, durante uma caçada, se lança na perseguição do Pássaro de Fogo e acaba, inadvertidamente, por penetrar nos domínios do terrível mago Koshchei e da sua horda de monstros. Ivan descobre que Koshchei mantém aprisionadas 13 princesas e apaixona-se por uma delas, o que leva, inevitavelmente, a um confronto entre Ivan e Koshchei.

Stravinsky criou música de cores vivas, condimentada por melodias de sabor russo (umas provenientes da tradição popular, outras compostas de raiz mas moldadas nesta tradição), que atinge o clímax quando o príncipe força os servos de Koshchei a entregar-se a uma dança de inaudita selvajaria.

Existem três suítes diferentes extraídas do bailado, preparadas por Stravinsky, em 1911, 1919 e 1945 (as duas últimas com orquestração aligeirada), mas que são derivativas em relação à partitura de 1910, que merece ser ouvida na íntegra e com a opulenta orquestração original.

[“Dança Infernal”, pela London Symphony Orchestra, com direção de Simon Rattle, ao vivo, 2017]

Bailado Petrushka

Estreia: 13 de junho de 1911, Théâtre du Chatelet, Paris

O acolhimento entusiástico dispensado a O Pássaro de Fogo fez com que Diaghilev encomendasse de imediato mais um bailado de temática russa a Stravinsky, novamente com a colaboração de Fokine (na coreografia) e Benois (no enredo). O compositor começara, entretanto, a matutar na ideia que mais tarde desabrocharia em A Sagração da Primavera, mas pô-la de lado para se consagrar a esta história de amor e ciúme entre três fantoches num teatro de marionetas em São Petersburgo, durante a tradicional feira de Carnaval.

Petrushka, que é a variante russa do Polichinelo (Pulcinella) da Commedia dell’Arte italiana e do Punch da tradição britânica (e de personagens análogas noutros países europeus), tem um temperamento estouvado e impulsivo e não aceita que a Bailarina, por quem está apaixonado, encontre mais encanto noutro fantoche, o Mouro; Petrushka comete a temeridade de desafiar o Mouro, que, após uma movimentada perseguição, o trucida com a sua cimitarra, perante a comoção do público. Este deixa-se arrebatar a tal ponto pelas peripécias destas personagens, que se esquece que se tratam apenas de fantoches, o que obriga o dono do teatro (e manipulador dos fantoches) a serenar os ânimos. Porém, talvez haja mais do que peças de madeira e fios nos bonecos deste teatro, uma vez que quando a noite cai e o público se retira, Petrushka reaparece como fantasma trocista, deixando aterrado o dono do teatro.

Estas “Cenas burlescas em quatro quadros” – como reza o sub-título atribuído pelo compositor – foram envoltas em música ainda mais cintilante e variegada do que a do bailado anterior e, nalguns trechos, dão ao piano um papel de destaque.

Em 1947, a fim de tornar a execução do bailado mais acessível, Stravinsky publicou uma nova versão, que reduz os efetivos orquestrais e simplifica algumas das métricas mais complexas, que são típicas dos seus primeiros bailados e eram uma dor de cabeça para músicos e bailarinos.

[“Quadro I”, pela Chicago Symphony Orchestra, com direção de Georg Solti (Decca)]

Bailado A Sagração da Primavera

Estreia: 29 de maio de 1913, Théâtre des Champs-Élysées, Paris

O terceiro bailado de Stravinsky para os Ballets Russes esteve longe de obter do público e da crítica o aplauso consensual suscitado pelos dois primeiros. Na verdade, a estreia redundou num tumulto sem par na História da Música e desencadeou uma torrente de comentários depreciativos na imprensa (no parisiense Le Ménestrel, um crítico sugeriu que, em vez de Le Sacre du Printemps, a obra deveria chamar-se Le Massacre du Printemps). As reações negativas tiveram por alvo quer a música, de uma crueza e brutalidade nunca antes ouvidas, quer a coreografia, da autoria de Vaslav Nijinsky (que já encarnara Petrushka no bailado anterior) e que era tão iconoclasta e abrupta como a música. Esta obra é tratada em detalhe em A Primavera é a mais cruel das estações.

[“A adoração da Terra”, pela orquestra Les Siècles, com direção de François-Xavier Roth, em instrumentos de época e utilizando a partitura empregue na estreia (Actes Sud)]

Ópera de câmara A História do Soldado

Estreia: 28 de Setembro de 1918, Lausanne, Suíça

A I Guerra Mundial criou um interregno na vida musical europeia e desse interregno emergiu um Stravinsky muito diferente do que fora revelado pelos bailados de 1910-13. A conexão ao imaginário russo manteve-se – o libreto, pelo suíço C.F. Ramuz, inspira-se num conto tradicional russo recolhido num volume do etnógrafo Aleksandr Afanasyev – mas a orquestração luxuriante dos bailados deu lugar a um trio de actores (Soldado, Diabo e Narrador), um bailarino e um septeto instrumental com violino, contrabaixo, clarinete, corneta, trombone e percussão. Esta inflexão de rumo poderia encontrar explicação na escassez de recursos numa Europa deixada exangue por quatro anos de guerra total, mas a verdade é que também a partitura é monocromática e sóbria (e sem vestígios de melodias populares russas), contrastando com a profusão de cores e timbres dos três “bailados russos”.

O tema da obra talvez não seja estranho ao conflito que ainda assolava a Europa: um soldado em gozo de licença dirige-se à sua cidade natal e depara-se no caminho com um velho que lhe propõe que troque a sua rabeca por um livro que lhe dará acesso a riquezas ilimitadas e onde se descrevem eventos que ainda não aconteceram – o soldado aceita e só mais tarde perceberá que o velho é o Diabo disfarçado e que o negócio que com ele celebrou tem uma dimensão faustiana, representando a rabeca a sua alma.

Desta obra de taxonomia incerta, destinada a ser “lida, tocada e dançada” (nas palavras do compositor), foi extraída uma suíte instrumental que é apresentada mais frequentemente do que a versão teatral original.

[“Marche du Soldat”, por um septeto de instrumentistas da WDR Sinfonieorchester Köln, 1955 (Columbia/Sony)]

Sinfonias para instrumentos de sopro

Estreia: 10 de Junho de 1921, Londres

Esta obra comprovou que A História do Soldado não fora um acidente de percurso e que Stravinsky estava a afastar-se do modelo dos bailados iniciais – nela ainda há alusões a melodias russas, mas a instrumentação de 24 sopros manifestava uma clara vontade de rutura com convenções.

Apesar dos comentários viperinos que distribuía liberalmente pelos colegas de profissão, Stravinsky tinha um genuíno apreço por alguns deles, como é o caso de Claude Debussy, falecido em 1918, que é o homenageado destas Sinfonias e cujas audaciosas inovações harmónicas influenciaram decisivamente a linguagem musical de Stravinsky (em particular nos três “bailados russos”). Apesar da sua relevante produção orquestral, Debussy nunca compôs uma sinfonia, pelo que poderia parecer insólito que Stravinsky tivesse escolhido este formato para o homenagear;  porém, o termo “sinfonia” não implica aqui continuidade com o legado sinfónico do Classicismo e Romantismo – pelo qual Stravinsky nunca mostrou interesse – remetendo antes para o sentido que “symphonies” tivera no barroco francês: uma peça de carácter brilhante e cerimonial.

A obra foi reorquestrada em 1947.

[Pela Filarmónica de Berlim, com direção de Pierre Boulez (Deutsche Grammophon)]

Bailado Les Noces

Ano e local de estreia: 13 de junho de 1923, Théâtre de la Gaîté, Paris

Se esta obra parece remeter novamente para o universo dos três célebres “bailados russos”, quer na vertente musical (com ritmos enérgicos e frequente citação de melodias populares) quer pelo enredo (de contornos vagos), que ilustra vários aspetos dos preparativos de uma boda de camponeses russos, é porque teve uma gestação longa.

Começou a ser concebida após a estreia de A Sagração da Primavera e deveria ter seguido as linhas-mestras dos três primeiros bailados, mas enquanto a I Guerra Mundial seguia o seu curso, os planos e as conceções estéticas de Stravinsky foram metamorfoseando-se e a mega-orquestra de 150 elementos que tinha planeado foi substituída por uma formação assaz original, articulando quatro solistas vocais e um coro com quatro pianos e uma grande variedade de instrumentos de percussão.

Les Noces (Svadebka, em russo) é, como A História do Soldado, uma obra de difícil classificação (há quem sugira “cantata dançada”) e enfrenta, junto do público ocidental, o obstáculo de ser cantada em russo, mas a sua riqueza de invenção e a sua extraordinária vitalidade rítmica deveriam fazer com que fosse ouvida e gravada com maior frequência.

[Quadro I (“La tresse”), por Basia Retchitzka (soprano), Lucienne Devallier (contralto), Hugues Cuénod (tenor), Heinz Rehfuss e Vladimir Diakoff (baixos), coro Motet de Genève, Doris Rossiaud, Jacques Horneffer, Renée Peter e Roger Aubert (pianos) e percussionistas da Orchestre de la Suisse Romande, com direcção de Ernest Ansermet (Decca)]

Ópera-Oratória Oedipus Rex

Estreia: 30 de maio de 1927, Théâtre Sarah Bernhardt, Paris

A produção operática de Stravinsky é muito menos conhecida do que a sua produção orquestral e o obstáculo da língua ajuda a explicar a sua relativa obscuridade: as duas primeiras óperas, Le Rossignol (1914) e Mavra (1922), são cantadas em russo e para a terceira, Oedipus Rex, Stravinsky impôs que o libreto em francês, da autoria de Jean Cocteau, fosse traduzido para latim. Para que o público não ficasse completamente perdido, o compositor fez intervir um narrador que, de acordo com as suas instruções, deverá exprimir-se na língua do país em que a ópera é levada à cena. A introdução de um narrador tem também o efeito de criar distanciamento e atenuar o dramatismo – o que, aliado ao registo despojado e hierático que domina Oedipus Rex, faz com que esta obra seja classificada por vezes como oratória. As considerações práticas têm levado a que Oedipus Rex seja apresentado mais frequentemente como oratória, ou seja, em formato de concerto, sem ação cénicas, do que como ópera. Considerações taxonómicas à parte, certo é que não se encontrarão em Oedipus Rex as melodias trauteáveis e os enredos jocosos e desopilantes de um Rossini…

A intenção original do compositor era recorrer não ao latim mas ao grego clássico, o que manteria a ópera-oratória mais perto da peça homónima de Sófocles que toma como base. A história de Édipo, filho de Laio e Jocasta, reis de Tebas, que acaba, apesar de todos os esforços em contrário dos intervenientes, por matar o pai e casar com a mãe é das mais tenebrosas e cruentas do teatro grego e, apesar das alterações introduzidas por Stravinsky, a violência e horror da tragédia de Sófocles continuam bem presentes na ópera-oratória, sobretudo nas intervenções do coro, a quem cabem os momentos de maior intensidade emocional.

[“Respondit Deus”, por Donald McIntyre (Creonte, barítono) e London Philharmonic Orchestra, com direção de Georg Solti (Decca)]

Sinfonia dos Salmos

Estreia: 13 de dezembro de 1930, Bruxelas

Tal como começou por rejeitar a técnica dodecafónica desenvolvida por Schoenberg, mas acabou por aderir a ela na década de 1950, também a relação de Stravinsky com a religião foi conturbada. A meio da adolescência abandonou a religião ortodoxa em que fora educado, mas regressou a ela em 1924, quando tinha 42 anos e passava por uma crise espiritual, tendo desde então observado as práticas daquela crença. O regresso à religião teve como consequências musicais mais imediatas a composição de um Pater Noster para coro a cappella, em 1926, e da Sinfonia dos Salmos, em 1930, ainda que a motivação mais direta para a segunda obra tenha sido uma encomenda feita por Serge Koussevitzky para comemorar o 50.º aniversário da Orquestra Sinfónica de Boston.

Tal como nas Sinfonias para instrumentos de sopro, também esta obra não se enquadra no modelo “canónico” da sinfonia, como Haydn, Beethoven ou Brahms a praticaram, representando antes um híbrido de difícil classificação. A obra, que recorre a excertos dos Salmos 38, 39 e 150 (em latim) e emprega amplos efetivos corais e instrumentais, é, indubitavelmente, uma das obras-primas da música sacra, ainda que Stravinsky não seja dos primeiros nomes que vem à mente quando se fala da música sacra do século XX.

[III andamento (“Laudate Dominum”), pelo Coro & Orquestra da RSO Berlin, com direção de Riccardo Chailly (Decca)]

Concerto para violino

Estreia: 23 de outubro de 1931, Berlim

Stravinsky compôs várias obras para instrumentos solistas e orquestra, mas, dada a aversão de Stravinsky a fórmulas, a maioria delas escapa aos padrões canónicos do concerto – é o caso do Concerto para piano e instrumentos de sopro (1924), do Capriccio para piano e orquestra (1929) ou dos Andamentos para piano e orquestra (1960).

No meio desta produção, o Concerto para violino acaba por ser o que mais se aproxima dos moldes tradicionais do concerto para solista e orquestra – Stravinsky, num momento de arrebatamento, até declarou que pretendia que fosse “um verdadeiro concerto virtuosístico”, mas, na prática, insere o solista na textura orquestral e nem sequer lhe concede esse oportunidade para demonstrar proficiência técnica que é a cadenza. Dando, como era usual, mostras da escassa preocupação com a congruência, Stravinsky justificou a ausência de cadenza para o solista por “não ter qualquer interesse em explorar o virtuosismo violinístico”.

A obra foi encomendada pelo diplomata, mecenas e compositor Blair Fairchild para o seu protegido, o jovem violinista polaco Samuel Dushkin, que colaborou estreitamente com o compositor e teve um papel decisivo para que Stravinsky vencesse a sua relutância inicial em compor uma obra para violino e orquestra – que é, aliás, a única na sua produção.

[II andamento (Aria), por Itzhak Perlman e Boston Symphony Orchestra, com direção de Seiji Ozawa (Deutsche Grammophon)]

Sinfonia em Três Andamentos

Estreia: 24 de janeiro de 1946, Nova Iorque

Como se viu acima, a primeira obra composta por Stravinsky, em 1907, foi uma sinfonia, mas embora tivesse produzido grande quantidade de música orquestral, só passados 33 anos voltou ao formato, com a Sinfonia em dó maior (1940). A Sinfonia em Três Andamentos surgiu cinco anos depois, em resultado de uma encomenda feita em 1942 pela Sociedade Filarmónica de Nova Iorque, que terá levado ao redirecionamento de um concerto para piano e harpa que Stravinsky começara a esboçar.

Curiosamente, Stravinsky, espírito assaz fleumático e cuja obra parece alheada do que se passava no mundo, não só declarou que a sinfonia fora inspirada pela II Guerra Mundial, como apontou conexões entre o I e III andamentos e documentários de guerra a que assistira. O II andamento está nos antípodas desta (suposta) inspiração, pois recicla música originalmente destinada à banda sonora do filme The Song of Bernadette (1943), sobre a aparição de Nossa Senhora em Lourdes (nos muitos anos em que viveu em Hollywood, Stravinsky foi tentado a compor para os filmes dos grandes estúdios, mas a relação foi quase sempre improdutiva). Por outro lado, há indícios que a natureza enérgica e angulosa da Sinfonia em Três Andamentos – sobretudo no I andamento –, que tem escassa relação com o neo-classicismo que dominou a produção de Stravinsky nas décadas de 1930-40, terá resultado de em, 1943, o compositor ter empreendido a revisão do tumultuoso e brutal bailado A Sagração da Primavera. Este é, provavelmente, mais um caso em que não deverá dar-se muito crédito às considerações de Stravinsky sobre as suas obras.

[III andamento (Con moto), pela Filarmónica de Berlim, com direção de Pierre Boulez (Deutsche Grammophon)]

Missa

Estreia: 27 de outubro de 1948, La Scala, Milão

Stravinsky tinha um hábito que hoje se tornou muito difundido, sobretudo nos movimentos identitários, que é o de emitir julgamentos sobre as práticas do passado usando os critérios do presente. Foi com essas lentes deformadoras que, além de ter acusado Vivaldi de ter escrito 300 vezes o mesmo concerto, comparou as missas de Mozart (em cujas partituras tropeçara numa loja de penhores em Los Angeles) a “rebuçados operático-rococós”. E, para mostrar como deveria soar uma missa, deitou mãos à obra entre 1944 e 1948, criando uma obra austera, com instrumentação reduzida a instrumentos de sopro – dois oboés, trompa, dois fagotes, duas trompetes e três trombones. É uma excelente amostra da música sacra de meados do século XX, tão meritória quanto as missas de Mozart o são em relação à música sacra da segunda metade do século XVIII.

[“Kyrie”, por The St. Anthony Singers e English Chamber Orchestra, com direção de Colin Davis (L’Oiseau-Lyre/Decca)]

As caixas do cinquentenário

A passagem de 50 anos sobre a morte de Stravinsky foi pretexto para a aparição de caixas antológicas destinadas aos melómanos que não se contentarão com a dúzia de obras acima sugeridas, e que acharão sedutora a ideia de ter a produção integral do compositor convenientemente arrumada numa única embalagem.

A proposta mais completa vem da Deutsche Grammophon, que lançou em março a caixa The New Stravinsky Complete Edition, com 30 CDs.

Embora o número de CDs seja igual ao da Stravinsky Complete Edition, surgida em 2015, a nova caixa acomoda três peças “extras”. Uma é o Chant Funèbre (Pogrebal’naya Pesnya) op.5, composto em homenagem ao seu mestre Rimsky-Korsakov e estreado em Janeiro de 1909, no Conservatório de São Petersburgo, uma partitura dada como perdida e que foi encontrada na biblioteca do dito Conservatório em 2015. As outras novidades são arranjos de Stravinsky para as Variações Corais BWV 769, de Bach, e para o hino americano, “The Star-Spangled Banner” (na sua fase americana, Stravinsky acedeu a fazer trabalhos de escasso valor musical mas generosamente remunerados, cujo expoente é a Circus Polka, para um número de circo com 50 elefantes e outras tantas bailarinas).

A riqueza do catálogo da Deutsche Grammophon (suplementado pontualmente por material das suas irmãs Decca e Philips) permite rechear a caixa de interpretações de primeira escolha. O maestro mais representado é Pierre Boulez, de quem a DG já publicara em 2010 uma caixa de 6 CDs integralmente dedicada a Stravinsky, seguido por Riccardo Chailly, Claudio Abbado, Leonard Bernstein, Mikhail Pletnev, Vladimir Ashkenazy ou Robert Craft (que colaborou de perto com Stravinsky e dirigiu a estreia de algumas das suas obras), em gravações que são, maioritariamente, de primorosa qualidade sonora. No domínio das gravações históricas, a caixa oferece a rara oportunidade de escutar o primeiro registo do Concerto para violino, realizado em 1935, com o dedicatário, Samuel Dushkin, como solista e o próprio compositor como maestro.

[Concerto para violino, por Samuel Dushkin (violino) e a orquestra dos Concerts Lamoureux, com direção de Igor Stravinsky, gravação de 1935]

A Igor Stravinsky Edition da Warner Classics arruma-se em 23 CDs, dos quais cinco são consagrados a gravações históricas. Os registos, que se estendem de 1928 a 2019, contam com maestros como Riccardo Muti, Charles Dutoit, Kent Nagano, Eliahu Inbal, Seiji Ozawa, Simon Rattle, Charles Mackerras e (novamente) Pierre Boulez.

Ao contrário da Deutsche Grammophon, a Warner não inclui os arranjos de Stravinsky para obras de outros compositores; ambas as caixas oferecem mais do que uma versão dos três “bailados russos”: além das versões originais, há versões reorquestradas, suítes extraídas dos bailados e os arranjos para dueto de piano (que, embora não possuindo o colorido e a amplitude dinâmica das versões orquestrais, não deixam de ter interesse).

Para os que não fazem questão de ter mesmo tudo o que Stravinsky compôs, a Decca irá lançar em Maio uma alternativa tentadora: a Riccardo Chailly Stravinsky Edition, uma caixa de 13 CDs com registos de um dos mais notáveis stravinskyanos do nosso tempo. Chailly (n.1953), que começou a dirigir obras do compositor russo aos 15 (quinze) anos, tem vindo, ao longo das últimas quatro décadas, a assinar uma sucessão de gravações de referência das suas obras, quatro das quais foram incluídas na New Stravinsky Complete Edition. Como comprovativo adicional da excelência da interpretação e da qualidade de som dos registos de Stravinsky por Chailly na Decca está o facto de o ramo japonês da Universal ter reeditado em Janeiro passado quatro desses discos em SHM-CD (Super High Material CD), um novo formato de CD que oferece (alegadamente) uma qualidade de som superior e que tem por alvo o exigente mercado audiófilo nipónico.

Em Abril, a Sony Classical colocará no mercado internacional (já está disponível nos EUA) uma antologia de gravações por outro reputado stravinskyano, Leonard Bernstein (1918-1990), cuja primeira gravação do mestre russo data foi realizada em 1947 para a RCA Victor. A caixa Bernstein conducts Stravinsky contém 6 CDs com gravações realizadas originalmente para a Columbia, e tem a particularidade de incluir dois registos de A Sagração da Primavera: um datado de 1958, com a New York Philharmonic, e outro de 1972, com a London Symphony Orchestra (a obra fascinava Bernstein, que voltaria a gravá-la em 1982, desta vez para a Deutsche Grammophon e com a Filarmónica de Israel).