Para as crianças nascidas nos anos 70 havia uma trágica tradição a que não conseguíamos escapar e que nos aterrorizava: estávamos a passear com a família quando uma velhinha ou um velhinho, amigos da família, nos perguntavam, mesmo à frente dos nossos pais, “gostas mais do papá ou da mamã?”. A reação à pergunta é de absoluto espanto – mas é possível preferir um ao outro? Mas esse espanto rapidamente dá lugar ao terror: e se por um instante o nosso rosto denunciar uma preferência por um deles, como é que o outro reagiria?; e – horror dos horrores – se essa preferência fosse real?
A ingenuidade de todas as crianças da geração de 70 morreu no preciso instante em que se deparou com esta forma subtil de tortura – e se apercebeu que só havia uma resposta possível – dizer “Dos dois”. A pergunta, percebíamos à segunda ou terceira vez que era feita, não era verdadeiramente uma pergunta – ninguém queria saber das nossas preferências sobre o que quer que fosse para nada; era apenas uma forma de aferir do nosso grau de civilidade, se sabíamos comportar-nos em sociedade. Rapidamente aprendemos os benefícios de, fora das quatro portas do lar, adestrar a hipocrisia.
A meio dos anos 90, os mais velhos de entre os indies criaram uma variação deste mind game; estava-se à conversa sobre música com alguém nos seus vinte e muitos, trintas, e um deles perguntava: “E preferes Oasis ou Blur?” Uma fratura subia das placas tectónicas até à fenda no cérebro para onde se esgueiram os terrores da infância – ingénuo, e tomando a pergunta por literal e binária, respondi Blur; de imediato fui condenado à Sibéria indie, o lugar mental onde se coloca quem não responde Pulp (Pulp era a resposta correta para os menos exigentes; os mais exigentes esperariam Pavement, exatamente por nada terem a ver com a britpop).
Mas a resposta era honesta – e ainda hoje, por mais que ainda ache que os Pulp têm um par de álbuns extraordinários, acredito que os Blur estão musicalmente acima de tudo aquilo a que se convencionou chamar britpop; e o próprio rótulo irrita-me. Se britpop fosse uma casa de vinhos seria uma marca com algumas edições extraordinárias e demasiada lixo, tudo embrulhado num nome demasiado nacionalista para o meu gosto.
[os Suede ao vivo na Brixton Academy, em Londres, 1993:]
Convencionou-se que a britpop nasceu quando os Blur editaram Modern Life is Rubbish — um disco composto na sequência de uma desastrosa digressão americana que serviria, supostamente, para publicitar o primeiro disco da banda, mas que acabou em dívidas e depressão. Exausto e farto da indiferença (e, por vezes, agressividade) do público americano, Damon Albarn passava os dias deitado no autocarro da banda, a ouvir os Kinks para suprir as saudades de casa.
Voltar da América não serviu de nada: mal pôs os pés de fora do avião de regresso deu de caras com a América outra vez – na forma da música e da roupa que se ouvia e vestia. A explosão dos Nirvana levara à multiplicação de uma miríade de bandas menores que se haviam apoderado do truque lento-rápido-lento com berros no refrão. Albarn sentiu náuseas – seria um efeito secundário da leitura de demasiado Sartre? Não, era fome, um fenómeno que acomete a quem não tem muito dinheiro.
A ideia agora parece brilhante, mas na altura foi tida como absurda pela editora: fazer um disco dedicado à vida corriqueira dos britânicos, bebendo musicalmente nos mais variados géneros ingleses, do vaudeville à synth-pop. O resultado, Modern Life Is Rubbish, foi extraordinário – mas quando chegou, em maio de 1993, já alguém se tinha antecipado no coração dos britânicos; alguém que já permeara as casas inglesas, enchendo-as de orgulho pátrio como humidade no inverno nos apartamentos portugueses.
Meses antes, a 29 de março de 1993 (fez esta semana 30 anos), os Suede lançavam o primeiro e homónimo disco de estreia, numa altura em que ainda não se falava de britpop. E foi amor à primeira vista – um amor estranho, por uma banda pouco convencional, andrógina e declaradamente provocadora, capaz de oferecer os maiores dislates à imprensa e de chocar com gosto: “Nunca conheci ninguém que não fosse gay”, dizia Brett Anderson, o líder dos Suede, por esses dias. Talvez ninguém nasça para ser estrela, mas alguns já aprenderam a sê-lo mesmo antes de o serem.
Tudo acontece por uma razão, costumam dizer os life coaches e as pessoas que precisam desesperadamente de acreditar que no fim do azar que lhes calhou reside um arco-íris – e estão completamente errados: é o aleatório, e não o sonho, que comanda a vida; mas há exceções e uma delas foi reconhecida pela ciência, que a denominou de “Efeito Novos Beatles”.
O efeito novos Beatles residia na obsessão de todos os títulos da imprensa musical britânica com descobrir, antes dos rivais, a próxima banda britânica que ia dominar o mundo; os Smiths foram etiquetados como os novos Beatles, mas eram demasiado sensíveis; até os Sundays foram vistos como novos Beatles – mas tinham uma rapariga na banda. O fenómeno não se reduz à música nem é inerentemente pérfido; mas da mesma forma que um clube de futebol procura que os media falem sobre o seu jovem talento de 17 anos, de modo a vendê-lo caro, a imprensa empola as qualidades do jovem talento de modo a vender jornais. Algures o negócio de dar notícias deixou de se dedicar a dar notícias para (como dizer) enfiar marketing no embrulho de uma notícia.
E foi assim que, semanalmente, desde os anos 60, os britânicos viram passear pelo éter uma sucessão de novos Beatles cuja música soava velha na semana seguinte a ser exposta ao mundo; todo o tolo tem o seu dia de sorte e o dia de sorte da imprensa britânica foi 29 de março de 1993 porque Suede, o álbum era tudo o que os singles que o anteciparam prometia: tinha as melodias, exsudava sexualidade (como é de bom tom no rock’n’roll) e tinha um grau de toxicidade aparentado ao de Maradona nas suas horas livres.
Em Inglaterra o tempo quase nunca muda; exceto na genitália – o tempo em que o mainstream olhava com vaga desconfiança para Morrissey porque havia ali algo de vagamente gay, esse tempo já fora a enterrar; agora Brett Anderson podia cantar, em “Animal Nitrate”, “He’s a boy, you want a girl so tear off his cock, tie his hair in bunches, fuck him, call him Rita if you want.” Os Beatles queriam dar-nos a mão – Brett Anderson queria dar-nos, bom, e para resumir, tudo.
Mário Soares costumava dizer que ninguém tem razão antes do tempo; Pirlo afirmava que jogava futebol porque sabia usar o cérebro – ambos eram exímios a ler a sala e saber qual o momento para dar um murro na mesa, fazer um passe a rasgar e quando era melhor esconder o jogo. Esta voltinha serve-nos para chegar a um trivia engraçado: Brett Anderson passou toda essa época a falar do seu lado gay, mas era heterossexual; sabia, porém, que as suas palavras iam chocar os setores mais conservadores da sociedade britânica, mas que o tempo mudara e que o choque jogaria a seu favor.
Já que estamos em território de trivia, aqui segue mais um: Brett namorara com Justine Frischmann, que mais tarde viria a namorar com Damon Albarn – e o apresentaria à sua namorada seguinte, que aliás inspira a letra de “Beetlebum”: a heroína, que por sua vez fora apresentada a Justine por Brett.
Claro que os Suede não eram os novos Beatles – nunca foram tão expansivos sonoramente como o quarteto de Liverpool, mas também nunca foram tão ingénuos. Os Suede eram antes herdeiros do glam-rock, fosse na fação poética (os Smiths) ou na espalhafatosa (os T-Rex). Foi aos T-Rex que roubaram o sustain das guitarras, foi em Bowie que se inspiraram para as roupas (os tops justos e decotados, por exemplo).
O que é que acontece a quem anda à procura de trocos no lixo e dá com não uma, mas duas pérolas seguidas? Há quem estoire no casino, quem encha um jacuzzi de prostituição vinda sabe-se lá de onde, quem encha o nariz; a imprensa britânica, mal Modern Life Is Rubbish saiu, encheu páginas sobre um fenómeno que não existia: a britpop. Uma banda com algo de inglês não faz uma “cena”; duas são mais do que suficientes para garantir que finalmente a pátria recuperou o orgulho perdido para os americanos de camisas de pescador; que finalmente as joias haviam regressado à coroa.
Uma possível entrada de dicionário para a definição de ironia é o facto Brett Anderson ter saltado de imediato para o comboio da britpop, que sim, existia, tudo fora planeado, agora sim os ingleses vão tomar o mundo como aliás merecemos somos os maiores, logo ele que nem por um segundo pensara se a sua música era americana ou inglesa, o que queria mesmo era ser idolatrado e ter sexo com muitas raparigas bonitas (feito inédito para um suposto gay); enquanto Albarn, que propositadamente quis olhar para o seu país e usar música e literatura inglesas para estimar o grau de acidez e desespero escondido nas tradições britânicas, torceu de imediato o nariz ao rótulo.
Contudo, uma das características do dinheiro é ser capaz de nos fazer ver a vida por outros prismas – e, mal o dinheiro começou a pingar, toda a gente que afirmava que a britpop não existia tentou ao máximo aproveitar a onda, Blur incluídos. A famosa rivalidade com os Oasis foi tão inventada pela imprensa como alimentada por Albarn.
Tal como o êxito dos Nirvana levou ao nascimento de um milhão de cópias, também a britpop – que é o simples acaso de Suede, Blur e Pulp serem bandas com personalidade vincada que fizeram bons discos ao mesmo tempo – se tornou uma maternidade de mediocridade; três bandas olharam em redor e inspiraram-se para fazer grandes álbuns; esses discos foram categorizados como britpop; as bandas que vieram a seguir tentaram soar ao que leram descrito nos jornais, tentaram vestir-se como era suposto num movimento revivalista – e acabaram a fazer música que aborreceu não só a minha geração como a geração dos meus avós.
Olhando para trás, a britpop, enquanto movimento, foi execrável e acabou a servir como justificação para a cultura lad, para rapazes tóxicos serem machistas e vestirem-se mal e tomarem drogas manhosas; mas a música que a originou (Modern Life Is Rubbish, dos Blur, His’n’Hers, dos Pulp e Suede, dos Suede) é alguma da melhor pop feita na década de 90 e é verdadeiramente extraordinário que tenha toda acontecido num curto intervalo de tempo numa das zonas menos civilizadas do mundo (não me odeiem, não sou eu que o digo, foi Dickens*).
Alguém consegue resistir ao refrão com palminhas de “The Drowners” (e aquele solo final)? O riff que faz mover “Animal Nitrate” não vos estremece as entranhas da libido? Esqueçam a britpop: ponham Suede a rodar, subam o volume e, se vos apetecer, vão buscar o top da vossa irmã – é muito provável que se estiverem nos 40s o top não vos sirva (a idade não perdoa, migos); mas o resto continua imaculado, sem um grama de gordura, fresquinho como a secção de legumes de uma mercearia de bairro.
E agora, façam o favor de largar o riff de “Metal Mickey” pela sala fora e dançar, mais não seja para envergonhar os vossos filhos.
*Nã, fui mesmo eu, só para chatear os anglófilos.