Sung-Yoon Lee, investigador sul-coreano do Wilson Center, estuda a Coreia do Norte há mais de 20 anos. O seu primeiro livro, porém, só foi publicado em 2023, chegando agora a Portugal pela mão da editora Vogais. Chamou-lhe “A Irmã”. É que, depois de anos a olhar para os Kims, este académico achou que o mais interessante não são os mitos criados em torno dos três líderes (Kim Il-sung, Kim Jong-il e Kim Jong-un), os avanços e recuos nas cimeiras com líderes internacionais ou o programa nuclear de Pyongyang.
O autor ficou mais fascinado com Kim Yo-jong, a irmã mais nova do líder norte-coreano, desde que a viu pela primeira vez nas imagens do funeral do pai. “Ela não queria saber se estava a ser observada. Parecia totalmente devastada. Estava muito magra, as bochechas estavam cavadas, como se não comesse há vários dias”, descreveu numa entrevista ao Observador por Zoom. “Parecia estar numa mágoa e dor profundas.” A que se juntou o facto da sua presença fisicamente próxima do futuro líder, Kim Jong-un: “Ter esta irmã mais nova tão perto do novo líder supremo fez-me perceber que ela não era apenas uma familiar, que já tinha um papel importante no novo governo.”
Desde então, o mundo conheceu melhor Kim Yo-jong. Na visita à Coreia do Sul, em 2018, deu nas vistas como “a face humana” do regime. Mais recentemente, desde a Covid, tem protagonizado as tiradas mais violentas vindas do regime. Simpática e inofensiva ou violenta e tirânica? É a essa dúvida que Sung-Yoon Lee tenta responder neste livro, destacando repetidamente que, independemente de tudo, Yo-jong é “muito inteligente” e uma possível sucessora ao irmão.
Isso não significa, porém, que o livro se debruce apenas sobre aquela figura. É também uma passagem pela História recente da Coreia do Norte e o caráter do próprio regime, com quem Sung-Yoon Lee acha que não deve haver cedências ou contemplações. “[A Coreia do Norte] gasta 700 milhões a importar bens de luxo como Mercedes e malas da Christian Dior. 300 milhões de dólares é menos de metade disso. Se Kim Jong-un gastasse esse dinheiro a comprar comida e a desse ao povo, o problema [da fome] resolvia-se, mas ele não quer”, diz o professor nesta entrevista, dizendo que o regime usa a falta de alimentação como “escudo” e como “arma”.
As críticas também são feitas ao Ocidente. Desde a “condescendência” com que diz que o mundo olha para o “Reino Eremita” até à “apatia” que deteta nos seus conterrâneos face à Coreia do Norte, Sung-Yoon Lee apresenta uma série de estratégias para o mundo lidar com um regime que tem armamento nuclear e está isolado do resto do mundo, registando, contudo, uma aproximação crescente à Rússia de Vladimir Putin. “A Coreia do Norte precisa da tecnologia russa em termos de satélites, de submarinos nucleares, de mísseis intercontinentais; a Rússia precisa da Coreia do Norte para munições, balas, projéteis de artilharia”, resume.
O futuro, diz, deve passar por não se subestimar Kim Jong-un e o seu regime (“Ele é o líder da Coreia do Norte, é claro que está bem informado, é claro que é inteligente”) e tentar, cada vez mais, levar informação aos próprios norte-coreanos. “Os norte-coreanos são o povo mais afastado da informação em todo o mundo. [A informação] é um direito humano fundamental, mas eles nem sequer sabem quão oprimidos são. E esta é a mensagem que acho que deve ser transmitida e disseminada.”
O sistema de poder na Coreia do Norte não é típico de um país de inspiração comunista porque, até hoje, tivemos três líderes todos da mesma família. Acha que podemos falar de uma espécie de monarquia?
Creio que a analogia mais próxima para o modelo da Coreia do Norte é mesmo a de uma monarquia medieval, de estilo absolutista. A Coreia do Norte afirma ser uma república comunista igualitária — o nome do país é República Popular Democrática da Coreia. Mas, como disse, ao longo dos últimos 75 anos foi governada por três líderes, com uma sucessão hereditária de pai para filho — algo a que assistimos não uma, mas duas vezes. Portanto, a Coreia do Norte certamente não é democrática, é uma tirania despótica. E, para além disso, não é uma república, é uma dinastia. Há muitas outras contradições e aspetos estranhos no Estado e na sociedade da Coreia do Norte. Por exemplo, de acordo com as Nações Unidas, é a ditadura mais cruel do mundo. Há dez anos, em fevereiro de 2014, foi publicado o relatório sobre direitos humanos da Comissão de Inquérito da ONU na Coreia do Norte, que tem 373 páginas…
E que inclui provas.
Sim, está muito bem documentado e tem provas para alegar que a gravidade, a natureza e a escala dos crimes contra a Humanidade na Coreia do Norte mostram um Estado sem paralelo no mundo contemporâneo. Em termos absolutos, têm o quarto maior Exército do mundo — o que é impressionante numa população de 25 milhões, este não é um país muito populoso como a China, a Rússia ou a Índia. Isto significa que um quinto ou um sexto da população de homens saudáveis entre os 16 e os 50 anos estão no Exército, e normalmente servem por dez anos. É um país hiper-militarizado, que dá importância ao poder militar e a manter o poder supremo na família real. Queria ainda acrescentar uma coisa: a insegurança alimentar e a fome. É algo único. Este é um recorde mundial vergonhoso e ignóbil que provavelmente nunca vai ser quebrado: a Coreia do Norte é o único país industrializado, urbanizado, letrado (não há iliteracia adulta, toda a gente consegue escrever o seu nome) que passou por uma fome. Sem uma guerra, uma insurreição ou uma rebelião, houve um período de fome. Ao longo dos últimos 30 anos, segundo a ONU, a Coreia do Norte tem estado no top cinco de países com maior insegurança alimentar do mundo. E é uma fome artificial, que poderia ser resolvida se o líder escolhesse gastar uma porção da sua vasta fortuna para comprar comida, importar cereais e distribuí-los equitativamente. Assim, nenhum norte-coreano iria para a cama com fome. Mas eles escolhem não o fazer. É um sistema único, de várias formas tirânico.
Queria falar da questão da fome, sobretudo relacionada com os efeitos recentes da Covid. Mas primeiro queria focar-me no tema do seu livro, Kim Yo-jong — nome que até 2014 não conhecíamos sequer. Por que decidiu escrever um livro sobre ela? É porque, sendo parte da família, tem a possibilidade de um dia se tornar na figura de topo?
A primeira vez que ela me chamou a atenção foi no velório do pai. Kim Jong-il, o pai, morreu em dezembro de 2011. Dois ou três dias depois, a Coreia do Norte fez um velório público, com corpo num caixão de vidro, em cima de uma cama de flores, crisântemos e kimjonguílias (sim, a flor chama-se mesmo assim, tem o nome do líder). No último dia apareceu Kim Jong-un e toda a gente sabia quem ele era, que era o próximo líder. Ao lado dele estava uma jovem com o tradicional manto preto coreano. E o protocolo funerário nas Coreias não é chorar, é gemer em voz alta, de forma muito dramática. Na Coreia do Norte isto é ainda mais exagerado, com as pessoas às vezes a atirarem-se para o chão e a baterem com o punho. Parece que estão a delirar, mas é uma forma de demonstrar respeito. É claro que estavam lá câmaras e observadores a ver se as pessoas faziam o luto da forma apropriada.
E a corrigirem-nas, se fosse caso disso?
Claro. Mas, no caso dela, ela não queria saber se estava a ser observada. Parecia totalmente devastada. Estava muito magra, as bochechas estavam cavadas, como se não comesse há vários dias. Muitas vezes descaía a cabeça assim [exemplifica deixando cair ligeiramente a cabeça para o lado] e parecia estar numa mágoa e dor profundas. Por isso pensei ‘Esta deve ser a filha mais nova’. No dia seguinte, a Coreia do Norte fez um funeral. Estava a nevar e foi ao ar livre, perante uma grande procissão. Kim Jong-un apareceu numa passadeira vermelha e assistiu a uma pequena parada militar. À direita dele estavam os generais de topo, à esquerda os civis. Estava lá o primeiro-ministro, Choe Yong-rim, e o presidente da Assembleia Popular Suprema, Kim Yong-nam, que foi à Coreia do Sul com Kim Yo em fevereiro de 2018. E a terceira pessoa ao lado de Kim Jong-un era a sua irmã. Eles têm um irmão mais velho, irmão da mesma mãe, e ele não apareceu. Nunca foi sequer fotografado com Kim Jong-un desde dezembro de 2011. Não tem qualquer interesse na política, é um guitarrista amador, já foi visto em concertos do Eric Clapton em Londres, Singapura, Alemanha, etc. Ter esta irmã mais nova tão perto do novo líder supremo fez-me perceber que ela não era apenas uma familiar, que já tinha um papel importante no novo governo.
Fiquei interessado nela desde então. Depois ela fez a sua vistosa estreia internacional na visita à Coreia do Sul, em fevereiro de 2018, onde não falou à imprensa ou aos sul-coreanos. Só foi a reuniões, sorriu muito, de vez em quando apareceu de cara fechada, deu apertos de mãos, comeu e bebeu. Foi só o que fez. Mas o facto de estar ali aquela figura feminina, misteriosa, poderosa e jovem encantou os sul-coreanos. Eles queriam acreditar que desta vez é que era, que o cruel líder norte-coreano queria a paz, a reconciliação, a desnuclearização. As pessoas ficaram algo eufóricas e, desculpe dizê-lo, foi tudo muito irrealista. Isto levou à mudança de imagem do irmão, que se encontrou com o Presidente chinês em março de 2018, depois com o Presidente da Coreia do Sul em abril e depois com o Presidente norte-americano, Donald Trump, em junho. E depois recebeu o Presidente sul-coreano em Pyongyang. Ao longo destes sorridentes espetáculos diplomáticos, Kim Jong-un teve uma transformação de imagem. Deixou de ser visto como um ditador cruel e ameaçador, com armas nucleares, para passar a ser um tipo razoável com quem o mundo se podia entender. E ela teve um papel fulcral nesta campanha. Durante a primeira cimeira dele com o Presidente Moon, da Coreia do Sul, eu disse numa entrevista à BBC que isto era como ver o “Rambo 4”. O primeiro filme é bom, mas quando se chega ao quarto já sabemos como acaba. A jornalista perguntou-me porque estava tão cético e eu disse que quando se é repetidamente gozado pelo duo da realidade e da História, tornamo-nos num pouco céticos. A Coreia do Norte sabe não apenas como escalar e impor pressão psicológica no adversário, também sabe fazer o contrário. Contrariamente aos que dizem que a Coreia do Norte não tem uma estratégia e que só reage ao que as grandes potências fazem, eu digo que a Coreia do Norte tem sido o ator mais proativo ao longo da História, quer em relação aos Estados Unidos e à Coreia do Sul, mas também até, em parte, em relação à China e à União Soviética.
Acha que há alguma superficialidade dos jornalistas e comentadores quando falam sobre o país? Muitas vezes o foco é em notícias como o líder obrigar todos a terem o mesmo corte-de-cabelo. No Ocidente e na Coreia do Sul somos suficientemente profissionais a analisar a Coreia do Norte?
Há um problema de atitude. A primeira coisa que nos vem à cabeça quando pensamos no país é a de um ditador muito engraçado, bem nutrido, que preside a uma nação de gente esfomeada. O cabelo dele é normal, dependendo do gosto pessoal, ou engraçado. Mas a nossa imagem do ditador da Coreia do Norte é condescendente. Temos tendência a gozar com ele, a rir dele. Claro que é irresistível, porque há uma mistura de costumes medievais com uma atitude de fanfarrão. É difícil não rir. Eles afirmam que são figuras sobrenaturais, quase divinas. O pai e o avô escreveram cada um uns cinco mil livros. São os melhores filósofos, atletas, artistas de sempre. Dizem eles… São coisas estranhas, que nos fazem rir. E creio que eles fazem isto de forma intencional: não apenas para serem idolatrados pelo seu povo, mas para o mundo exterior. Cultivar esta imagem joga a seu favor, porque quando o líder da Coreia do Norte age de forma normal e se encontra com estrangeiros, toda a gente diz a mesma coisa: “Afinal ele não é louco, é muito inteligente. Está bem informado. Sabe muito sobre o meu país, sabe muito sobre mim. Tem sentido de humor, é modesto, é encantador. Podemos negociar com ele, criámos uma ligação emocional.” Muito disto vem da nossa húbris. Toda a gente gosta de se sentir especial. Quando interagimos com um líder misterioso e meio louco e ele parece normal e inteligente, gostamos de pensar que a nossa inteligência e o nosso carisma podem ter contribuído para esta experiência de ligação. Este é outro elemento da nossa contínua condescendência. Ele é o líder da Coreia do Norte, é claro que está bem informado, é claro que é inteligente! Mas acho que a irmã de Kim Jong-un é ainda mais inteligente. Digo isto com base na minha avaliação superficial das imagens de vídeo dela e das suas declarações. Vejo um brilho de inteligência nos seus olhos que também existia no seu pai e no seu avô. Vejo muito menos isso em Kim Jong-un. E sabemos que quando ele vivia na Suíça não era um grande aluno, gostava mais de jogar basquetebol e jogos de vídeo. Ela era uma excelente aluna e fala muito bem inglês, enquanto que Kim Jong-un não entende uma palavra.
Ela está à frente da segunda agência mais importante do país, o Departamento de Propaganda e Agitação. Desde 2012 que é a principal propagandista e está responsável pela imagem do irmão. É ela que decide o que os norte-coreanos podem ou não ler e ver, é a censora principal da nação. Não se limita a presidir a banquetes…
Desde novembro de 2022 que temos visto muita mais a imagem da pequena filha de Kim Jong-Un. Acho que isso é responsabilidade dela. Porque a imagem do pai com a filha suaviza a perceção da dinastia cruel, é a imagem de uma família. Isso planta em Washington a semente: “Ele é cruel, mas ama a filha, ama a família, não iria começar uma guerra, pois não?” Ao mesmo tempo, ao fazer isto, Kim Jong-un talvez esteja também a zombar dos líderes democráticos: “Senhor Biden, senhor Trump, vocês serão esquecidos em cinco anos, mas eu continuarei aqui nos próximos 30 ou 40.” Ele só tem 40 anos e as armas nucleares dele passarão para a próxima geração, tem todo o tempo do mundo. Há quem diga que ele mostra a filha em público porque a mulher tem ciúmes da irmã… Discordo. Todos os reis e imperadores do mundo tiveram haréns, mulheres, concubinas e esposas oficiais. Também foi assim com Mao Tsé-Tung, a sua mulher era poderosa, mas não podia dizer nada sobre as suas infidelidades. Acho que é assim na Coreia do Norte também, ninguém pode desafiar o rei nestas matérias. Talvez seja assim numa família normal, com tensões entre cunhadas, mas não acho que se aplique à Coreia do Norte. É mais uma novela para as pessoas comentarem: quem é o sucessor? Se Kim Jong-un morresse hoje, duvido que a filha se tornasse líder, ela tem 11 ou 12 anos. O que iria uma criança fazer? Receber uma delegação estrangeira? Dizer “Olá, senhor Putin”? Não ia resultar.
Teríamos um regente, portanto?
Sim. E neste momento, sem dúvida, seria Kim Yo-jong. Mas, quem sabe? Talvez daqui a dez ou quinze anos, quando a filha for adulta e o pai morrer, o poder pode ser passado para ela. Acho que Kim Yo-jong se vai recordar do que o irmão fez ao tio deles há dez anos, em 2013, quando o classificou como um traidor, alguém que não aplaudia o suficiente os discursos, e o mandou matar. É difícil fazer previsões. Mas acho que Kim Yo-jong é esperta o suficiente para saber o que fazer se se sentir ameaçada pela sua sobrinha adulta. Pode agir primeiro ou pode fugir, não sabemos. Aquilo que sabemos, neste momento, é que ela tem poder real e tem a confiança total do irmão. Já vi centenas de horas de imagens: os irmãos estão sempre a olhar um para o outro. Olham rapidamente, acenam, sorriem. As pessoas dizem que quando ela lhe traz a caneta Mont Blanc para ele assinar é como se fosse apenas uma secretária, mas ela é muito mais do que isso. É uma familiar, alguém que gosta dele, alguém com quem ele é afetuoso e em quem confia.
A opinião dela é respeitada?
Sim, e ela respeita a dele também. Vejo confiança e afeto mútuos.
Nota no livro que, ao contrário da perceção pública inicial que se tinha dela, é implacável. Foi assim quando esteve à frente do Departamento de Organização e Orientação e agora na Propaganda. Acha que é uma ideia amplificada pelo regime, para criar uma espécie de “polícia mau” para um Kim Jong-un “bom”?
Já cheguei a escrever que ela é o polícia “ainda pior” do que o “polícia mau” que é o irmão, pelo menos desde que a Covid apareceu. Ela já publicou mais de 40 declarações escritas e todas têm um tom sarcástico, uma sagacidade… São ataques venenosos e muito pessoalizados, feitos à medida dos alvos. Duvido que seja ela a escrever tudo da primeira à última linha, o Departamento de Propaganda e Agitação tem centenas de escritores profissionais, recrutados dos melhores departamentos de Literatura das universidades da Coreia do Norte. Mas ela tem a palavra final e vejo o toque pessoal dela em todos. Um dos pontos que me incomoda e que tento explicar no livro é até algo rude, mas vou ser franco: a identidade dela como uma jovem mulher joga a seu favor e a favor do país. Porque há uma tendência em muitos homens, e até em algumas mulheres, de serem condescendentes com uma jovem mulher. Pode haver algum respeito e admiração, mas é como se houvesse frequentemente uma tendência para olhar para ela de cima para baixo, de minimizar as suas conquistas. E isso significa que, quando ela lançar a próxima vaga diplomática do seu país, vai ser o rosto bonito da ofensiva de charme e as pessoas vão querer acreditar no que ela diz. E como ela é uma mulher jovem e bonita, vai ser fácil esquecer todas as coisas horríveis que ela disse no passado. Portanto há uma tendência de ser condescendente não só para com o líder engraçado da Coreia do Norte, mas também para com o fenómeno que é a sua inteligente irmã. O sexismo, a tendência para ser condescendente com uma mulher jovem, é algo que eles vão usar a seu favor.
Muito embora a própria Coreia do Norte também seja, em muitos pontos, uma sociedade sexista…
Sem dúvida! Das mulheres espera-se que não só tragam para casa o dinheiro, como também façam todas as tarefas domésticas. É algo que se baseia no confucionismo, como existia na China — e se há algo positivo a dizer do comunismo na China é que a igualdade de género melhorou. Mas até a Coreia do Sul, embora esteja a mudar, ainda é uma sociedade muito dominada pelos homens. Quando eu era novo e recebíamos visitas, eu levava os copos ou as chávenas para a cozinha e as amigas da minha mãe não deixavam: “Isso não é trabalho para um rapaz”, diziam. As coisas hoje em dia melhoraram, mas ainda é uma cultura dominada pelos homens e na Coreia do Norte é ainda mais extremo. Num país tão chauvinista, a ideia de ter um líder supremo que é uma mulher ainda é vista como estranha. Mas creio que há algo mais importante do que os preconceitos culturais: a ideia de que o poder tem de ser mantido na linha direta de descendentes. O próximo líder não pode ser um Lee ou um Park, porque a Coreia do Norte construiu este incrível culto da personalidade em que o sangue heróico corre naquelas veias. É essa a narrativa deles e acho impossível que o próximo líder possa ser alguém que não é membro da família Kim, mesmo que seja alguém muito capaz. O poder tem de ser transmitido a um membro da família.
Olhando agora para a geopolítica. Na década de 1960, a Coreia do Norte afastou-se da China durante a Revolução Cultural e aproximou-se da União Soviética. Hoje em dia, precisa do apoio económico da China, mas não está cada vez mais a aproximar-se novamente da Rússia, com o apoio militar que lhe tem dado?
Durante a Guerra Fria e em especial nos anos 60, a relação bilateral entre a China e a União Soviética estava mal. E a relação entre a Coreia do Norte com a China esfriou, começaram a insultar-se mutuamente. Os Guardas Vermelhos na China, gente radicalizada e com tendência à violência, chamavam a Kim Il-sung um “aristocrata gordo”. Diziam que ele era um milionário, um “porco capitalista”, etc. E o Kim Il-sung dizia aos diplomatas do leste europeu em Pyongyang que Mao Tsé-Tung era um “velho louco”, a mesma expressão que o neto usaria contra Donald Trump em 2017 — “mentalmente perturbado”, “caquético”, etc.
Portanto, a ideia de que Pyongyang, Moscovo e Pequim estiveram sempre unidos contra os Estados Unidos, o Japão e a Coreia do Sul não é inteiramente verdade. Hoje em dia sim, estão numa equipa contra a outra equipa. Mas acho que essas dinâmicas da Guerra Fria regressaram mais com a invasão russa da Ucrânia. É como disse, temos visto uma relação muito mais próxima entre Kim e Putin, ou seja entre Rússia e Coreia do Norte, desde a segunda cimeira que tiveram no extremo-oriente russo em setembro. No ano passado houve uma convergência de interesses mútuos. A Coreia do Norte precisa da tecnologia russa em termos de satélites, de submarinos nucleares, de mísseis intercontinentais; a Rússia precisa da Coreia do Norte para munições, balas, projéteis de artilharia. Estima-se que a Coreia do Norte tenha exportado 2,5 milhões de projéteis de artilharia, o governo da Coreia do Sul fala em pelo menos um milhão enviados para Moscovo. Isto é preocupante para os EUA e os seus aliados porque ainda não sabemos para onde esta cooperação militar vai progredir, se Putin vai dar à Coreia do Norte toda a sua tecnologia nuclear. Provavelmente não, mas Putin está cada vez mais genoroso e disponível para transferir tecnologia militar sensível para a Coreia do Norte face ao que estava há dois anos, antes da invasão. E Kim Jong-un continua a fazer ameaças à Coreia do Sul, de que vai tomar o território ou destruí-lo com as suas armas nucleares. Parece de loucos, mas eles têm capacidade para o fazer e o regime demonstra muito pouca preocupação com as vidas humanas, até as da sua própria população, por isso temos de levar isto a sério.
A propósito da população norte-coreana, falou há pouco da fome. Qual é a situação atual, tendo em conta que a pandemia de Covid-19 certamente piorou a situação?
A informação é muito difícil de verificar, é claro. Mas recebemos relatos de pessoas comuns da Coreia do Norte que falaram à Voice of America e à Radio Free Asia (que são media e agências dos EUA ao mesmo tempo), bem como ao Daily NK, um site sul-coreano que paga a norte-coreanos para conseguir falar com eles. Todos são credíveis, embora seja difícil de confirmar os seus relatos. Eles dizem-nos que em algumas zonas da Coreia do Norte houve pilhas de cadáveres para serem queimados ou enterrados durante a Covid. É incompreensível que um país industrializado, que tem dinheiro para desenvolver armas nucleares e mísseis balísticos intercontinentais, permita isto. Mas a Covid foi um tipo de perigo que o regime da Coreia do Norte nunca tinha enfrentado. Nunca houve uma insurreição. Eles falam na ameaça de um ataque americano iminente, mas nunca houve nenhum, nem sequer uma retaliação militar quando a Coreia do Norte abateu um avião norte-americano e matou soldados americanos durante a Guerra Fria. Nunca houve uma ameaça existencial, interna ou externa, ao Líder Supremo.
A Covid foi diferente: pode matar reis e pobres. É claro que quem tem dinheiro tem mais informação e melhores cuidados de saúde, mas vimos celebridades e pessoas como o antigo primeiro-ministro britânico quase à beira da morte. Portanto, houve a perceção de que esta era uma ameaça sem precedentes e é claro que a vida do líder e dos seus comparsas é mais importante do que a do povo. E ele encerrou a fronteira e deu ordens para se abater quem se aproximasse da fronteira com a China. Não importou alimentos e deixou as pessoas à sua sorte. Seria improvável que os norte-coreanos, que já sofriam com a fome antes da Covid, mantivessem o mesmo nível de mortes por falta de comida com a Covid. Certamente que subiu.
O último relatório da ONU sobre subnutrição tem Madagáscar em primeiro lugar, com 51% da população com fome. Em segundo lugar estão a República Centro-Africana e a Somália, com 49%. Depois vem a Coreia do Norte com 46%. Mas este é o único país em todo o top 30 que não é completamente iletrado. O Níger, que tem provavelmente o maior nível de iliteracia do mundo, come melhor do que a Coreia do Norte. Portanto não é apenas o poder que é hereditário ali: também a miséria, a fome, a opressão passam para a geração seguinte. Para mim, que nasci na Coreia do Sul, acho isto profundamente triste. Quando nasci éramos um dos países mais pobres do mundo, mas houve desenvolvimento. Tive uma vida privilegiada, educação, nunca passei fome. Mas a Coreia do Norte vive assim não apenas há 70 anos — já o regime colonial japonês tinha sido opressivo. Há mais de um século que eles têm tido o azar de ter nascido na Coreia do Norte e de enfrentar uma realidade tão terrível, enquanto nós no Sul somos livres e prósperos. É um contraste brutal. E, pessoalmente, acho triste.
Vê alguma perspetiva de mudança no futuro? Pelo que depreendi no seu livro, é muito cético das tentativas diplomáticas de líderes como Moon e Trump. Mas o que pode ser feito se não isso?
Há cerca de dez anos, um aluno disse-me: “Professor Lee, se a Coreia do Norte colapsasse e houvesse uma reunificação, o professor ficaria sem trabalho.” Respondi-lhe que não soltaria uma lágrima, porque isso representaria a libertação do povo da Coreia do Norte, seria algo bem-vindo.
Mas acho que faz sentido ser cético. Aquilo que houve nos últimos 75 anos foi a constante opressão, a governação pelo terror, campos de concentração, prisioneiros políticos, vigilância sem precedentes, execuções em público e esta política de fome deliberada. A não ser que o regime mude — e não vejo qualquer sinal disso —, a não ser que o regime se abra mais, não creio que as coisas mudem na Coreia do Norte. Mas isso não significa que não há nada a fazer. Nós, nas sociedades livres, sabemos que a fome que existe é artificial. Precisamos de dizer ao povo da Coreia do Norte que eles passam fome não por causa de sanções internacionais ou das alterações climáticas, mas por causa das decisões do seu líder. Se Kim Jong-un gastasse 300 milhões de dólares a importar cereais e a distribuí-los de forma equitativa, ninguém na Coreia do Norte se iria deitar com fome. E é um número pequeno: a Coreia do Norte gasta 1,5 mil milhões de dólares só no seu programa de mísseis. Provavelmente gasta isso ou mais com o armamento nuclear. Gasta 700 milhões a importar bens de luxo como Mercedes e malas da Christian Dior. Trezentos milhões de dólares é menos de metade disso. Se Kim Jong-un gastasse esse dinheiro a comprar comida e a desse ao povo, o problema resolvia-se, mas ele não quer. Usam a alimentação como escudo, dizendo “passamos fome por causa dos EUA” e como arma para extrair comida e outras concessões do resto do mundo.
E não é também uma forma de impedir uma reação popular? As pessoas com fome não têm grande capacidade de pensar em política…
Sim. E os norte-coreanos são o povo mais afastado da informação em todo o mundo. [A informação] é um direito humano fundamental, mas eles nem sequer sabem quão oprimidos são. E esta é a mensagem que acho que deve ser transmitida e disseminada na Coreia do Norte. Os Estados Unidos podem aumentar o financiamento à Voice of America e à Radio Free Asia, para que haja mais rádio na Coreia do Norte. A Coreia do Sul também devia assumir a liderança nisto, porque é o país mais diretamente ameaçado e porque somos, historicamente, o mesmo povo. Infelizmente, a maioria dos sul-coreanos está indiferente. Não há incentivos para estudar a Coreia do Norte, só há uns quatro cursos relacionados com isto nas universidades. As pessoas estão apáticas — e considero isto triste.