A região de Lisboa e Vale do Tejo continua a ser aquela que inspira mais preocupação das autoridades de saúde: desde há vários dias, é a única região que continua a registar um grande número de casos novos de Covid-19, ao passo que, no resto do território, a epidemia praticamente estabilizou. Na maioria das regiões já se contam números muito residuais de novos contágios a cada dia que passa — e, em alguns casos, o número tem sido mesmo zero.
Esta quinta-feira, dos 304 novos casos de Covid-19, 265 (cerca de 87%) registavam-se na região de Lisboa e Vale do Tejo. Ao longo desta semana, esta percentagem tinha vindo a ser ainda maior, em torno dos 97%. Há várias explicações para este facto: por um lado, os múltiplos surtos localizados associados aos muitos casos esporádicos; por outro lado, as características da população que por estes dias regressa ao trabalho.
Surto na Azambuja. Sonae diz que a infeção veio de fora nos casos detetados na sua unidade
Em Lisboa e Vale do Tejo, como revelou esta quinta-feira o Presidente da República, o “R” (risco de contágio, ou o número de pessoas que cada infetado, em média, contagia) encontra-se com um valor de 1,01, embora a média nacional esteja abaixo de 1. Quando o “R” se encontra acima de 1, a epidemia encontra-se em expansão; se estiver abaixo, a epidemia caminha para o seu fim.
As declarações dos líderes políticos esta quinta-feira à saída da habitual reunião com os peritos na sede do Infarmed, em Lisboa, e a conferência de imprensa da diretora-geral da Saúde permitiram traçar um retrato com algum detalhe daquelas que são as maiores preocupações das autoridades de saúde na região de Lisboa e Vale do Tejo, bem como desenhar o mapa dos principais focos de atenção.
[Veja aqui o mapa com os principais focos de preocupação na região de Lisboa e Vale do Tejo. Clique nos pontos para mais informações]
Os surtos localizados
Instalações da Sonae, Azambuja (175 casos)
O maior surto de Covid-19 em curso na região de Lisboa e Vale do Tejo situa-se nas instalações da Sonae na Azambuja, na plataforma logística onde mais de 8 mil pessoas trabalham em diversas empresas. Naquele entreposto comercial, que abastece os supermercados da empresa de toda a região, foram testados 833 trabalhadores, dos quais 175 foram diagnosticados com a Covid-19, anunciou esta quinta-feira a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas. Em quatro empresas situadas nas proximidades, foram identificados mais sete casos positivos.
Como o Observador escreveu na semana passada, o surto no entreposto da Sonae resultou diretamente de um surto anterior, ocorrido no início de maio, na empresa Avipronto, situada na mesma plataforma logística. Ali, foram confirmados mais de 100 casos e a empresa viu-se obrigada a encerrar durante mais de uma semana, reabrindo mais tarde com uma pequena parte dos trabalhadores ao serviço. Uma funcionária da Avipronto transmitiu a infeção à filha, trabalhadora da Sonae, e o surto acabou por se disseminar muito rapidamente entre os trabalhadores da empresa.
Um dos catalisadores do surto terão sido as viagens de comboio, meio de transporte mais comum para grande parte dos trabalhadores daquela plataforma logística. Com os turnos de praticamente todos os setores da empresa a entrarem e a saírem às mesmas horas, existe uma grande concentração de trabalhadores da Sonae nos comboios da linha da Azambuja à mesma hora. O problema é agravado pelas pequenas dimensões do apeadeiro que serve a plataforma logística, que obriga os passageiros a concentrarem-se numa única escada de acesso.
Saídas estreitas e muitos utilizadores. O apeadeiro que pode ser a chave da Covid-19 na Azambuja
Segundo Graça Freitas, a grande maioria dos infetados na empresa “são pessoas jovens, saudáveis, quase todas assintomáticas ou com sintomas muito ligeiros a moderados“, que vão, “em princípio, fazer a sua recuperação em casa”. Há apenas um internado entre os 175 infetados: trata-se de um jovem que, devido a outros fatores de risco, precisa de acompanhamento médico permanente.
A diretora-geral da Saúde acrescentou também que as condições socioeconómicas de muitos destes trabalhadores têm contribuído para aprofundar a gravidade do surto, uma vez que são situações que propiciam a existência de “muitas pessoas a coabitar no mesmo espaço”.
Bairros da Jamaica e de Santa Marta, Seixal (pelo menos 32 casos)
A notícia de que tinham sido identificados casos de Covid-19 no bairro da Jamaica, no Seixal, preocupou as autoridades de saúde pela possibilidade de o vírus se propagar rapidamente entre as comunidades que habitam aquele e outros bairros sociais muito pobres na margem sul do rio Tejo, com pouco acesso a materiais de proteção e sem habitações preparadas para situações de isolamento.
De acordo com o que a câmara municipal do Seixal já tinha esclarecido oficialmente esta semana, o surto terá tido origem numa festa que ocorreu nos dias 1, 2 e 3 de maio na Aroeira, concelho de Almada, perto da praia da Fonte da Telha. Nessa festa de grandes dimensões teriam estado presentes jovens oriundos de várias zonas da região, incluindo moradores do bairro de Vale de Chícharos (conhecido como bairro da Jamaica), na Amora, e do bairro de Santa Marta, em Corroios.
Os testes efetuados naqueles bairros permitiram identificar pelo menos 32 casos positivos, assegurou esta semana a diretora-geral da Saúde. Desses, metade eram no bairro da Jamaica e a outra metade no bairro de Santa Marta. Durante o mês de maio, as forças de segurança fizeram várias ações de sensibilização naqueles bairros, onde distribuíram gratuitamente máscaras e outros materiais.
Esta quinta-feira, Graça Freitas assegurou que o surto no bairro da Jamaica já pode ser considerado como “estável” e já começou inclusivamente a ter doentes recuperados. A diretora-geral da Saúde confirmou também que as autoridades de saúde locais pediram o encerramento de cafés e outros estabelecimentos no bairro “porque se juntavam muitas pessoas nesses cafés”.
Lar de idosos em Queluz, Sintra (38 casos, dois óbitos)
A diretora do Centro Bem Estar de Queluz, no concelho de Sintra, já tinha anunciado, na segunda-feira, que utentes e funcionários daquele lar de idosos estavam a ser testados para a Covid-19, depois de seis funcionários e três utentes terem testado positivo para a infeção.
Esta quinta-feira, a diretora-geral da Saúde confirmou os números totais: 32 dos 62 utentes e seis funcionários testaram positivo para a Covid-19 e dois idosos morreram vítimas da infeção. O surto naquele lar de Queluz foi um dos principais focos a contribuir para a manutenção do número de casos na região de Lisboa e Vale do Tejo, mas já está neste momento a ser controlado, garantiu Graça Freitas.
Há uma “intervenção em curso pelas entidades gestoras do lar e pelas autoridades de saúde“, sublinhou a diretora-geral da Saúde nesta quinta-feira. Os utentes estão isolados por pisos: num dos pisos estão os idosos que testaram positivo, noutro piso estão os que testaram negativo. Ao mesmo tempo, o lar já teve um “reforço de 13 auxiliares de ação direta”, que iniciam funções já na sexta-feira. O objetivo é substituir os funcionários infetados e prestar apoio aos dois pisos da instituição sem que haja cruzamento de pessoas.
Os concelhos com mais casos
A somar aos surtos localizados que têm impedido que os números da pandemia em Lisboa e Vale do Tejo acompanhem a tendência de descida do resto do país, há um conjunto de concelhos, sobretudo nos subúrbios da cidade de Lisboa, onde existe transmissão comunitária do vírus e onde os números têm sido significativamente mais elevados do que no resto do país.
A situação de Lisboa e Vale do Tejo é “uma mistura” entre diferentes formas de disseminação do vírus, “dos focos aos casos isolados“, descreveu esta quinta-feira a diretora-geral da Saúde, sublinhando a influência dos contágios em ambiente familiar e nas empresas, mas também na construção civil e nos lares de idosos.
“O maior [surto] de todos é o que está em curso ainda na Sonae, sendo que as pessoas estão todas isoladas. É um grande surto na região de Lisboa. Depois, no Seixal, não só no bairro da Jamaica, mas também noutro bairro, mas completamente estável. Odivelas, Loures, Queluz, são zonas bastante afetadas com situações mistas”, disse Graça Freitas.
“Se puséssemos todos estes surtos num mapa, seria a zona suburbana de Lisboa a mais atingida”, destacou a diretora-geral da Saúde.
Com efeito, olhando para os concelhos com maior aumento do número de casos de Covid-19 nesta quinta-feira, encontra-se Loures em primeiro lugar (com 40 novos casos), seguido de Lisboa (36 novos casos), Sintra (33 novos casos), Odivelas (29 novos casos) e Amadora (25 novos casos).
Alguns concelhos da margem sul do Tejo, como o Barreiro ou o Seixal, e o concelho da Azambuja, devido à situação específica do surto da Sonae, também se encontram em posições de destaque na tabela.
Esta quinta-feira, na habitual reunião entre peritos e líderes políticos nas instalações do Infarmed, líderes partidários, parceiros sociais, Governo, Parlamento e Presidente da República viram uma tabela sobre os municípios com mais infetados por 10 mil habitantes na região de Lisboa e Vale do Tejo.
Nesta tabela, Amadora é o concelho com maior densidade de casos, com 48,2 casos por cada 10 mil habitantes. Seguem-se Loures, com 47,5; Lisboa, com 46,8; Odivelas, com 36; Barreiro, com 33,3; e Azambuja, com 32,1. Mas há um conjunto muito mais alargado de municípios que se encontram acima dos 20 casos por 10 mil habitantes: Vila Franca de Xira, Coruche, Cascais, Montijo, Santarém, Cartaxo, Almada, Sintra, Moita, Oeiras, Seixal e Alenquer.
Infetados em Lisboa são mais jovens e mais pobres
Ao contrário do que aconteceu no início da epidemia em Portugal, que começou por afetar sobretudo a região Norte, o maior número de infetados não se está refletir num muito maior número de doentes internados e numa subida da taxa de letalidade. Isto explica-se pelo facto de a maioria dos infetados na região de Lisboa e Vale do Tejo serem pessoas mais jovens e saudáveis, infetadas em ambiente laboral.
“A zona Norte foi atingida mais precocemente e alguns desses casos importados deram origem a grandes cadeias” de contágio, explicou esta quinta-feira a diretora-geral da Saúde, lembrando que a Covid-19 chegou a Portugal através da importação de casos do norte de Itália, na altura de grandes eventos como “grandes feiras de calçado” em Milão.
No norte de Portugal, o vírus atingiu mais pessoas idosas, o que fez aumentar a taxa de letalidade e a taxa de internamentos, situação que não se está a verificar em Lisboa e Vale do Tejo. “Agora atinge sobretudo pessoas adultas, jovens, habitualmente saudáveis, em ambiente laboral”, explicou Graça Freitas, salientando que isto significa um “melhor prognóstico”.
Por outro lado, o vírus na região de Lisboa e Vale do Tejo está essencialmente a atingir pessoas de classes sociais mais baixas. Foi o próprio Presidente da República quem, esta quinta-feira, evidenciou essa relação. “Parece estar ligado a condições socioeconómicas de vida em certas áreas da região de Lisboa e Vale do Tejo”, disse Marcelo Rebelo de Sousa. “É um pano de fundo, de enquadramento, que é estrutural, com afloramentos conjunturais, e que depois têm projeção no domínio da saúde pública.”