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Com "Quanto Tempo Tem um Dia", Susana Moreira Marques procura valorizar uma experiência tida como banal e mostrar que também pode ser literatura
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Com "Quanto Tempo Tem um Dia", Susana Moreira Marques procura valorizar uma experiência tida como banal e mostrar que também pode ser literatura

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Com "Quanto Tempo Tem um Dia", Susana Moreira Marques procura valorizar uma experiência tida como banal e mostrar que também pode ser literatura

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Susana Moreira Marques: "Achava que tínhamos uma igualdade quase total. Até ao momento em que fui mãe"

“Quanto tempo tem um dia” eleva a literatura a experiência da maternidade. A autora, Susana Moreira Marques, arrisca um tom íntimo e pessoal. Em entrevista, avisa: é um livro também para homens.

A jornalista e escritora Susana Moreira Marques, de 43 anos, nunca tinha publicado nada tão pessoal. Num café do bairro onde vive, no centro de Lisboa, conta como pouco depois de ter sido mãe pela segunda vez resolveu embarcar naquele que terá sido o maior desafio literário da sua vida: um ano e meio a escrever sobre a experiência da maternidade; a sua, em monólogos, e a de outros, em diálogos. A zona é a mesma que descreve em Quanto tempo tem um dia – Experiências de Maternidade (Fundação Francisco Manuel dos Santos – FFMS) como um lugar onde a dada altura, “parecia que estavam sempre a aparecer mais bebés”.

Explica que não foi fácil encontrar o embalo. Só quando resolveu transformar o livro num gesto contra o esquecimento encontrou o caminho. Em pouco mais de cem páginas, regista os pormenores tão comuns como extraordinários do dia-a-dia de uma mãe. O tom é íntimo e confessional, raro entre nós, das recordações às aspirações, das zangas ao sexo. O objetivo: valorizar uma experiência tida como banal e mostrar que também pode ser literatura. Parte do livro já foi publicada numa revista literária britânica e sairá em breve nos Estados Unidos.

A capa de “Quanto Tempo tem um Dia”, de Susana Moreira Marques

Este é um livro que parte da sua experiência enquanto mãe, mas na capa vem uma foto, não sua com as suas filhas, mas da sua mãe consigo. Porquê?
Não precisava dessa camada extra de pessoalização. Sendo um livro muito íntimo e pessoal, não o queria fechado numa bolha egocêntrica. Quis que tivesse um lado quase anónimo. Nunca digo o nome das minhas filhas, do meu companheiro ou das mulheres com quem falo. A ideia é a de a experiência de uma única pessoa poder representar muitas outras. Há uma série de livros sobre experiências marcantes e até traumáticas de maternidade: doenças, morte, prematuridade, etc. Quis partilhar uma experiência banal, sem acontecimentos extraordinários, mas que é completamente transformadora. Quis dar significado a essa experiência comum. Tenho recebido mensagens pelas redes sociais em que me dizem coisas do género, “obrigada por fazeres ver que isto que eu vivo todos os dias é importante.”

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É também uma passagem de testemunho. Começa com uma foto da sua mãe consigo e acaba consigo a imaginar o dia em que a sua filha sairá de casa e se tornará, quem sabe, ela própria, mãe.
Não tinha pensado nisso, mas a verdade é que estas fotografias [de que faz parte a imagem da capa] aparecem referidas no livro nessa perspetiva: tentar perceber como terá sido a maternidade para a minha mãe. Também essa repetição, que acontece entre gerações. Nisto da maternidade, os contextos vão mudando, mas há certos gestos, certos sentimentos, que se vão repetindo, que são universais.

É uma experiência que nos confunde ao parecer-nos tão única e ao ser tão universal, ao ser sentida por vezes de forma tão solitária, mas partilhada por tantas mulheres.
Parte das conversas com outras mulheres tem esse lado: a necessidade que temos de ouvir outras mulheres, de perceber, “OK, isto também se passa assim com outras mulheres, não sou eu que sou má mãe, não sou eu que sou maluca.”

Ainda é um tabu, este lado lunar da maternidade?
Acho que melhorou consideravelmente desde que tive a primeira filha, que tem agora oito anos. Nessa altura, senti-me muito sozinha. Mesmo com amigas que já tinham tido filhos, nunca falei com elas sobre certas coisas. Aconteceu dizerem-me passado um ano, “Eu também…” E eu perguntava, “Porque é que não me disseste antes? Teria sido tão importante para mim.” Acho que as pessoas, por um lado, sentem pudor em expor-se – por exemplo, em relação à amamentação, aos sentimentos pelos filhos, a não estarem sempre felizes – por outro lado, também se esquecem. É uma fase tão exigente. Há sempre novos desafios.

"Nada recompensa tanto o nosso esforço como quando um filho nos diz, “gosto tanto de ti” e nos faz uma festinha. Por outro lado, temos momentos em que sentimos que quase não podemos ser nós, que não sabemos quem somos. Apagamo-nos um pouco na família."

Entre uma filha e outra passaram quase seis anos. O que mudou entretanto?
Com a minha primeira filha, achei que não sabia fazer isto de ser mãe: “Isto do instinto é uma grande tanga.” (Ou então que era eu que não o tinha.) Mas, mais tarde, também senti que em termos de ambiente – artigos nos jornais, aquilo que se discute a nível público – as coisas mudaram. Fala-se da experiência do parto, da dificuldade de amamentação, há grupos de mães que se foram criando.

A ideia que tinha sobre maternidade antes de ser mãe tem alguma coisa a ver com a ideia que tem hoje?
Não. Na verdade, não pensava muito no assunto. E acho que há uma separação tremenda entre as pessoas que não têm filhos e as que têm. Embora tenha muitos amigos sem filhos. Mas há um corte tremendo…

A minha pergunta ia no sentido de, será que há uma narrativa tradicional sobre a maternidade que tem pouco em comum com o que é a realidade da maternidade?
O livro é feito da tentativa de construir a minha narrativa: eu penso isto, mas também penso aquilo. Mesmo as conversas com outras mulheres são sempre à volta de perguntas e interpretações. A experiência da maternidade tem essa complexidade, essa ambiguidade, essa capacidade de se poder sentir coisas muito diferentes ao mesmo tempo: estamos exaustas, mas segundos depois temos momentos de compensação absoluta. Nada recompensa tanto o nosso esforço como quando um filho nos diz, “gosto tanto de ti” e nos faz uma festinha. Por outro lado, temos momentos em que sentimos que quase não podemos ser nós, que não sabemos quem somos. Apagamo-nos um pouco na família. E é uma coisa que está sempre a mudar. A evoluir. Daí uma das dificuldades de escrever sobre isto.

Porquê escrever na primeira pessoa, um registo comum na cultura anglo-saxónica, mas pouco frequente em Portugal?
Achei que seria mais corajoso e honesto. Penso muitas vezes, nos trabalhos enquanto jornalista, que há um desequilíbrio na forma como exponho as histórias dos outros, às vezes coisas tão íntimas, e não me exponho a mim. Além disso, interessa-me a escrita autobiográfica. A narradora num texto de não-ficção literária tem muito peso. Há hoje escritores muito interessantes, sobretudo mulheres. E também na comunidade afro-americana. Por exemplo, o ensaio do Ta-Nehisi Coates, que ganhou o National Book Award. Foi publicado aqui e ninguém reparou [Entre Mim e o Mundo, publicado em português pela Ítaca].

Está a dizer que é um género literário que permite dar voz a comunidades menos representadas?
É aí que quero chegar. A história foi toda contada do ponto de vista masculino. Outro exemplo que descobri há pouco tempo foi o de Annie Ernaux, uma francesa de 70 anos, que conta a história da França do ponto de vista dela, uma mulher da classe trabalhadora. Saiu agora uma tradução em português. O livro chama-se Os Anos [Livros do Brasil]. Isto para dizer outra coisa: em Portugal tem havido um movimento na primeira pessoa, mas no cinema, com a Catarina Mourão, o Daniel Blaufuks, o Sérgio Treffaut e várias pessoas de uma geração mais jovem; não na literatura. E penso que há muito espaço para essa história coletiva contada de uma forma pessoal.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Na sua opinião, por que razão não aparecem este tipo de textos?
Em Portugal ainda é mal-visto escrevermos sobre nós próprios, expormo-nos. Temos aquela coisa da humildade. E um pouco de medo de sermos vistos como alguém que se quer mostrar. Sentimos o peso de uma cultura em que não se fala do que se passa dentro de casa. E em termos literários ainda não é um género considerado. É como se não existisse.

Nesse sentido de não gostarmos de nos expor e às nossas imperfeições, parece-lhe que a exigência de perfeição será maior em relação à maternidade?
Talvez. Não sei bem. Acho que há, sim, uma maior exigência sobre as mulheres. Também sobre os pais, mas sobretudo sobre as mães, que continuam a ser a figura de referência. Hoje em dia é suposto ter um trabalho em que somos bem-sucedidas, termos filhos, fazer atividades com eles, encontrar as melhores oficinas de verão. Eles têm de fazer artes, de ir a espectáculos… Tem também a ver com a exigência da educação das crianças, que não existia no meu tempo. Por um lado, ainda bem.

A mãe sem mácula.
Sem dúvida. Mesmo que o caso seja o de um casal que partilha todas as tarefas, mesmo que se tente ter uma visão menos machista do mundo, ela está por todo o lado. A FFMS fez um estudo sobre isso e a percentagem é mínima [de acordo com o estudo de 2019 “As Mulheres em Portugal, Hoje”, apenas um terço dos casais partilham as tarefas domésticas de forma simétrica; nos restantes, a mulher encarrega-se de mais ou da totalidade das tarefas]. Por exemplo, este ano estive para ir fazer uma residência literária de quase dois meses. O meu companheiro foi fantástico e apoiou-me, mas a reação das pessoas à nossa volta foi, “Como é que elas vão ficar sem a mãe?”, “Como é que ele [o pai] vai fazer tudo sozinho?” E se o pai dá conta do recado, a reação é, “Que pai fantástico!” Isto não acontece quando é o pai que vai viajar. O normal é a mulher abdicar das suas coisas e estar sempre presente. Eu optei por adiar a residência.

As mães ainda sentem muita culpa?
Sim, de uma maneira que um pai não sente. Isso está em nós. Falo com amigas e comentamos que também sentimos dificuldade em delegar. Sinto essa pressão para estar em tudo. E sei que, realisticamente, ninguém consegue fazer tudo. As mães sofrem muito com isso. Sentem-se muito em falta se não estão presentes, mas depois também se sentem em falta em relação à profissão. Por isso é que, como concluía esse estudo, estão sempre exaustas.

Este livro é só para mães?
Não. Gostava que os pais também lessem, porque também vão reconhecer-se. Nesta voracidade do dia-a-dia, nesta ligação que vamos estabelecendo com os nossos filhos e na forma como nos vamos reconstruindo nela. E também pode ser lido por pessoas que não são pais. Abre um bocadinho a porta de uma casa e de uma família. É a oportunidade de entrar. E não é uma versão idealizada. A gente não lê só para se reconhecer nas experiências. A gente também lê para ver qual é a experiência de pessoas que vivem de uma forma diferente da nossa.

Também compreendeu melhor o que estava a passar-se consigo?
É inevitável. Percebi que me lembrava de muito mais coisas do que pensava. Eu acho sempre tenho má memória e é uma coisa que me aflige. Talvez haja uma relação com a razão pela qual eu escrevo.

"Achava que a geração das nossas mães nos tinha aberto todas as portas e que nós tínhamos uma igualdade quase total. Posso ter vivido episódios de assédio, certamente, mas nunca tinha sentido que não podia fazer as mesmas coisas que um rapaz. Até ao momento em que fui mãe."

Fala disso no livro, de como nos esquecemos de tantas vivências com os nossos filhos que na altura nos parecem tão importantes.
Se eu fizer um pouco de autoanálise, acho que aquilo que escrevo, mesmo em termos de jornalismo, tem sempre a ver um pouco com a ideia do esquecimento. O meu primeiro livro, Agora e na hora da nossa morte, é sobre o fim da vida. As pessoas que estão a morrer, normalmente não deixam a sua história escrita. É também sobre o esquecimento de um território, que nesse livro é o do interior de Trás-os-Montes. Quando comecei a escrever este livro, não tinha a ideia de que isto fosse um livro com essa melancolia.

O esquecimento é, de certa forma, a morte. Estes dois livros serão um pouco lutar contra a morte?
Não sei se viu o filme “Coco”. A minha filha adora esse filme. E a ideia principal é essa. Aquilo passa-se na cidade dos mortos e os mortos estão vivos. Só morrem verdadeiramente quando não há ninguém no mundo dos vivos que se lembre deles. Acho que a escrita tem esse poder de manter vivas certas coisas. E esta urgência de dar voz a certas histórias e a certas pessoas vem muito disso, desta ideia de não deixar morrer. Não só as pessoas, mas também os momentos, as experiências. Ao longo da vida, vamos fazendo os nossos lutos. Das coisas que já vivemos e das pessoas que fomos. E quando somos mães temos de deixar de ser a pessoa que fomos antes. O livro também é uma tentativa de conservar esses momentos que as pessoas mais tarde dizem, “passou tão depressa”.

Os seus livros são quase duas faces da mesma moeda, um sobre a morte, o outro sobre o nascimento.
Quando escrevi o Agora e na Hora da Nossa Morte, estava grávida da minha primeira filha e acabei-o dias antes de ela nascer. De certa forma isso esteve sempre presente no livro, embora não de forma direta. Não teria olhado para a morte da mesma maneira se não estivesse naquela altura a dar vida. Às vezes, penso nisso, se calhar este era mesmo o livro que eu tinha de escrever a seguir, mas foram precisos não sei quantos anos para chegar a ele.

A mim pareceu-me uma carta de amor à maternidade, assumindo o amor como um sentimento imperfeito.
O sentimento que está por trás do livro é o amor. E não é só o amor pelas minhas filhas; é o amor pelas mães. Depois de ser mãe, senti-me muito a fazer parte de um coletivo, de qualquer coisa que é uma experiência partilhada. De uma maneira que eu não sentia antes. E, voltando à questão do machismo, só me tornei verdadeiramente feminista depois de ser mãe. Até aí vivia na ilusão de que a minha vida era igual à de um homem da minha geração. Achava que a geração das nossas mães nos tinha aberto todas as portas e que nós tínhamos uma igualdade quase total. Posso ter vivido episódios de assédio, certamente, mas nunca tinha sentido que não podia fazer as mesmas coisas que um rapaz. Até ao momento em que fui mãe. E aí percebi, “isto realmente não é igual”. A nossa vida muda de uma maneira que não muda para o homem. As portas não se fecham para os homens, mas fecham-se para as mulheres. Talvez, sim, seja uma carta de amor mais à maternidade que às minhas filhas.

Um dia as suas filhas vão ler este livro. Pensou nisso?
Claro. Vou ter de viver com isso!

Pela resposta, parece que lhe causa algum tipo de ansiedade. Até pode ser uma coisa positiva.
Não sei. Acho que podem ver isto como uma carta de amor ou como uma prova de muitos dos meus defeitos enquanto mãe. Espero que gostem, claro.

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