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Andre DELHAYE

Andre DELHAYE

Susana Santos Silva: qual é o som da liberdade absoluta?

Nascida no Porto, mas a viver em Estocolmo, arrojada exploradora de música de improvisação. Vimo-la no Serralves Jazz no Parque no início do mês, para antecipar os concertos de Braga, Porto e Lisboa.

“In my own language I am independente”. A frase é retirada da exposição antológica de Carla Filipe, que atualmente ocupa a ala direita do Museu de Serralves, mas poderia ter sido proferida por Susana Santos Silva, que no passado dia 8 de julho se apresentou no auditório desta casa. O mesmo espaço, diferentes disciplinas, cruzamentos improváveis. Numa tarde em que o sol veio depois da chuva, instalou-se a intempérie perfeita para partirmos à descoberta dos mistérios da vida através da arte.

A arte, bem como a meditação, ajudam-nos a tocar o transcendente com a ponta dos dedos. Susana Santos Silva, um dos nomes mais entusiasmantes e desafiantes da música de improvisação internacional, pratica as duas, com a tensão própria de alguém que prefere continuar a procurar do que a acomodar-se a um lugar. De alguém que, no fundo, se vai encontrando enquanto (se) procura.

Classificá-la apenas como trompetista é redutor, embora tenha sido esse o ponto de partida para o seu percurso artístico. O avô tocava na Banda Marcial da Foz do Douro, fundada pelo trisavô, e ensinou todos os netos a tocar. “Ele também tocava trompete. Não sei se foi por causa disso que comecei a tocar esse instrumento, mas a verdade é que nunca mais o deixei”, conta Susana, numa clareira do parque que abrigou a nossa conversa, aveludada pelo cantar dos passarinhos e o rugido dos aviões.

[“Always Arriving Always Departing”:]

Naquele dia, a interprete e compositora portuense de 44 anos iria tocar no Jazz no Parque, festival que este ano contou, entre outros, com o contrabaixista Michael Formanek, o saxofonista Tony Malaby, o trio do guitarrista Luís Lopes, o dueto de Sofia Borges (percussão) e Camila Nebbia (saxofone) ou o Communion 3 do baterista João Lencastre. Susana apresentar-se-ia a solo, num exercício de vulnerabilidade total. “Para mim é importante conseguir-me expor completamente, honestamente, com todo os defeitos. A fragilidade é inerente ao ser humano e temos de estar confortáveis com isso, porque faz parte de nós.”

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Muitas vezes, expor-se significa tocar o trompete como se não o soubesse tocar. Vimo-la fazer exatamente isso em palco, rodando o instrumento como se fosse uma criança à descoberta, batendo de mão aberta nos seus pistões, soprando em buracos que o trompete nem sabia possuir, “bebendo” água do seu bocal. Entregando-se ao momento, Susana consegue o raro milagre de se colocar um patamar acima do campo abstrato que o free jazz e a música de improvisação já comportam. E isso é arrebatador de várias formas indizíveis.

Classificar a sua sonoridade é quase impossível e nem ela se dá ao trabalho de o fazer. Para Santos Silva, a música não se reduz a um estilo. “Cada vez sinto mais vontade de expansão e de trazer para a minha música outras experiências.” Cansada da conceção clássica do trompete e do free jazz, ela afirma claramente: “Quero mais”.

Em busca da liberdade absoluta

“Life is a mystery. Sometimes it’s raining a lot. Sometimes is not”, ouvimo-la declamar a certo momento da atuação, onde a palavra falada, o vibrato do trompete, os sintetizadores, os chocalhos, as flautas indígenas se engoliram uns aos outros. Enquanto isso, o público oscilava entre manifestações de espanto e de desconforto, não sabendo se haveria de estar quieto na cadeira ou de expelir as suas pulsões mais primitivas. Tratou-se de um solo com “carícias febris, gritos surdos”, parafraseando a artista, “celebrando o efémero” e jogando com a significância dos sons e das palavras.

“A minha vontade é a de me deixar ir completamente, estar no momento e ver o que acontece”, diz sobre a forma como encara o palco, mesmo sabendo que, ao fazê-lo, algo pode correr mal a qualquer instante. Isso em si “é contraditório”, prossegue a reflexão, porque “se nada está planeado, como é que pode correr mal?”. Nas entrelinhas desta questão encontramos o que verdadeiramente inquieta Santos Silva: Poderá chamar-se espera ao ato de esperar por nada e por ninguém? A espera poderá ser efémera, como a improvisação?

O facto de Santos Silva estar a construir um percurso internacional de elite, no campo da música experimental, é, em si, um catalisador dessa mudança. Escutá-la e vê-la ao vivo, numa estética absolutamente disruptiva, leva-nos, consequentemente, a duvidar das nossas crenças mais enraizadas, pessoais e coletivas, algo que pode ser profundamente transformador.

Neste ponto da conversa – sobre a vida, a música e o desconhecido – ocorre-nos pegar na resenha que o interprete e compositor inglês Tim Hodgkinson escreveu para Laying Demons To Rest (2023), último álbum lançado por Susana Santos Silva, ao lado do guitarrista Fred Frith. Aí, Tim refere que, para Susana, a improvisação por si só, bem como a composição, não são uma finalidade. São caminhos para chegar a uma verdade absoluta, que só pode ser alcançada em total liberdade.

“A liberdade absoluta nunca é absoluta, porque, desde que nascemos, estamos presos nas nossas experiências. É impossível sermos completamente livres, exceto se conseguirmos esquecer isso tudo.” Exceto se, como já lhe aconteceu com Fred Frith, for atravessada por uma “experiência fora do corpo”, conta: “Tocámos em Washington num espaço pequenino que estava completamente a abarrotar e que tinha uma energia incrível. A determinada altura, os meus dedos estavam a mexer, mas não era eu que os mexia. Não sei explicar. Foi um momento em que eu não estava no meu corpo e em que não havia pensamento. Era como se estivesse de fora a olhar para o que estava a acontecer.”

A dor de querer ser como os outros

No último ano e meio, a meditação diária tem sido uma forte aliada da música neste processo de libertação total. “É incrível o quão congestionada e aprisionada a nossa mente está sem que nó nos apercebamos minimamente”, constata, falando de um renascimento que lhe tem permitido explorar uma nova forma de viver, de estar e de ser. “Simples. Simplesmente.”

Porém, olhando para o seu percurso, cremos que Susana sempre andou, consciente ou inconscientemente, a perseguir essa liberdade. Completou o conservatório, sem nunca pensar em seguir carreira na música, ao mesmo tempo que se inscrevia no curso de Engenharia Civil. “Tinha que fazer alguma coisa, não sabia bem o quê, mas aquilo era horrível.” Insatisfeita entre o betão, voltou para a música. Entrou na Escola Superior de Música do Porto (ESMAE) em 1998, na única vaga de trompete. No último ano foi para a Alemanha, ponderou ficar por lá a fazer uma pós-graduação, mas percebeu que “não era aquilo” que lhe enchia as medidas.

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Regressada ao Porto, inscreveu-se novamente na ESMAE, desta feita na vertente de jazz. Mas isso também não a satisfez plenamente. Esteve lá três anos, rumou para Roterdão para fazer o um mestrado em jazz performance e aí tocou, juntamente com o baterista Greg Smith, nos Lama, do contrabaixista Gonçalo Almeida. “Foi nessa altura que comecei a sair um bocadinho mais do meu centro de conforto”.

Expressar-se livremente, sem qualquer tipo de amarra ou julgamento, não foi um processo fácil. No início, tentou “ser como os outros”, integrar-se: “Faz parte do viver em sociedade não querer ser diferente dos outros. Foi isso que tentei fazer durante algum tempo e foi muito doloroso.” Rapidamente percebeu que não era do tipo de artista de seguir pautas, de transcrever solos de veteranos do jazz, nota por nota, para os incorporar na sua linguagem, até porque, diz-nos muito claramente, nunca se identificou completamente com ninguém. “Tenho muitas referências, mas não tenho ídolos.”

Desalinhada e sentindo vergonha de si, Susana só conseguiu soltar-se completamente quando se cruzou com Fred Frith (ele, outra vez). Em 2011, precisamente em Serralves, a trompetista participou no ciclo Colaborações/Improvisações, num workshop lecionado por Frith. “Tornou-se claro que aquilo que eu tinha na cabeça era válido e que podia ir por aí.” Três anos depois, encontraram-se novamente na Alemanha, para um projeto do próprio. “Estava completamente confiante daquilo que estava a fazer, sem qualquer tipo de constrangimento. Tinha o Fred Frith a olhar para mim, a sorrir e a abanar a cabeça a dizer que sim. Esse foi um momento importante em que senti a liberdade total de ser quem sou.”

Música que transforma

Para poder ser realmente o que ela quisesse, Susana mudou-se para Estocolmo. Conheceu o contrabaixista e compositor sueco Torbjörn Zetterberg em 2012 (com quem tem vários trabalhos gravados, em duo e em coletivo) e fixou-se definitivamente na terra de Bergman na transição de 2016/2017. “Na Suécia existe um apoio muito grande que te permite ser músico a tempo inteiro”, diz, justificando a sua escolha.

Foi na Suécia que também percebeu o quão patriarcal era o meio musical em Portugal, coisa que antes nem sequer lhe tinha passado pela cabeça. “Talvez não estivesse a prestar atenção a isso, porque foi com essa realidade que cresci”. Na Escandinávia encontrou muitas mulheres a tocar “e muito bem”, o oposto daquilo que viveu nos anos de academia no Porto em que deu por si, em diversas ocasiões, como sendo a única mulher estudante no meio de homens.

Quando regressar à Suécia, mergulhará novamente nos seus projetos. Atualmente está a frequentar um mestrado em composição eletroacústica, que iniciou na pandemia. Paralelamente, colaborará com um coreógrafo belga, explorando o movimento e a relação bailarino-músico. “Toda a gente se vai movimentar no espaço e trazer um bocadinho de tudo para o palco."

O problema, defende, não tem a ver só com a música, mas com a veia tradicionalista da sociedade portuguesa. “Está muito entranhada e demora gerações a mudar”. O facto de Santos Silva estar a construir um percurso internacional de elite, no campo da música experimental, é, em si, um catalisador dessa mudança. Escutá-la e vê-la ao vivo, numa estética absolutamente disruptiva, leva-nos, consequentemente, a duvidar das nossas crenças mais enraizadas, pessoais e coletivas, algo que pode ser profundamente transformador.

Durante o mês de julho, haverá muitas oportunidades para nos colocarmos nesse lugar de dúvida. No dia 14, esta sexta-feira, Susana Santos Silva tocará no gnration, em Braga, ao lado da pianista eslovena Kaja Drakler, com quem também partilha o quarteto Hearth. No dia seguinte, atua no Porto, nos Jardins do Palácio de Cristal, no ciclo Porta-Jazz ao Relento, com o ensemble Coreto. A 29 e 30 de agosto estará no Jazz em Agosto da Gulbenkian, primeiro a solo e depois com o projeto liderado pela guitarrista norueguesa Hedvig Mollestad. “Num mês, de repente tenho vários concertos bastante bons”, diz entusiasmada.

Quando regressar à Suécia, mergulhará novamente nos seus projetos. Atualmente está a frequentar um mestrado em composição eletroacústica, que iniciou na pandemia. Paralelamente, colaborará com um coreógrafo francês, explorando o movimento e a relação bailarino-músico. “Toda a gente se vai movimentar no espaço e trazer um bocadinho de tudo para o palco. É uma coisa super fixe que estou com muita vontade de fazer”. Na calha está também o lançamento de uma box de seis discos com os seis concertos que deu com o compositor e multi-instrumentista de Chicago Anthony Braxton, algo que “nunca sonhou na vida” e que lhe dá um prazer imenso.

A longo prazo, podemos esperar igualmente um sucessor de All the birds and a telephone ringing (2022), o seu último trabalho a solo, onde Susana se explora em toda a sua multiplicidade linguística. São seis temas de paisagens nubladas, caminhos lodosos, nascentes cristalinas, a natureza invadindo a sua música, humedecendo-nos os ouvidos. Cada faixa do álbum tem um vídeo associado, exercício que permitiu à trompetista “inventar mundos novos”. Aqueles para os quais ela nos quer arrastar e onde mora a verdade absoluta que tanto procura. Sem o saber, parece-nos que ela já a encontrou.

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