776kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

TS Eliot
i

Getty Images

Getty Images

T.S. Eliot e a modernidade com cem anos de "Terra Devastada"

Foi em dezembro de 1922 que "The Waste Land" foi publicado em livro. Como é que o poema de T.S. Eliot influenciou a literatura do século que se seguiu e como é que o lemos hoje?

“Um dia hei de escrever um ensaio sobre o ponto de vista de um americano que não era americano, porque tinha nascido no Sul e andava pela escola de Nova Inglaterra a falar como um preto, mas que não era um sulista no sul porque a família vinha do Norte e olhava de cima para a gente do sul e da Virginia e que por isso nunca era nada em lado nenhum e se sentia mais francês do que americano, e mais inglês do que francês e que ainda assim sentia os Estados Unidos de cem anos antes como uma extensão da sua própria família”.

Esta passagem, transcrita de uma carta a Herbert Read, não esconde o seu lado autobiográfico. Thomas Stearns Eliot vinha de uma dessas famílias dos “Boston Brahmins” de Nova Inglaterra, as primeiras famílias colonizadoras que constituíram uma espécie de aristocracia informal nos Estados Unidos, mas nasceu fora desse mundo. O seu avô, um importante pregador da Igreja Unitária – Eliot, significativamente, considerava a sua família uma espécie de Médici da Igreja Unitária – decidiu evangelizar a fronteira e desceu até St. Louis, terra em que Thomas cresceu.

É certo que Thomas não levou a vida dura da fronteira; teve uma educação letrada – os poemas piedosos que a sua mãe escrevia são surpreendentemente interessantes! – velejava no verão, entretinha-se a escrever almanaques poéticos, a assistir a palestras emersonianas e com este tipo de divertimentos que dificilmente encontraríamos nas classes trabalhadoras das cidades industriais recém formadas, mas ainda assim os atrativos intelectuais do Missouri estariam longe daqueles em que teriam crescido os seus futuros colegas de Harvard.

T. S. And Valerie Eliot

T.S e Valerie Eliot, fotografados em agosto de 1958

Getty Images

Daí que, mesmo que se tenha tornado um académico competente e um reputado membro dos círculos de poesia, se perceba que não se considerasse nem de Nova Inglaterra nem do Sul. Esta ideia de estranheza terá com certeza aumentado com o interesse por uma cultura vinda da Europa, que foi à Europa conhecer, mas na qual não nascera. Já há, no seu Prufrock, esta sensação de estranheza, uma espécie de embaraço com aqueles que o rodeiam, como que uma vergonha pouco conhecida na poesia. Aquela ideia que veremos mais tarde nalgumas das melhores páginas de Flannery O’Connor, de alguém que se tornou demasiado sofisticado ou sábio para o seu próprio mundo, tem em Prufrock um representante de grande quilate. No entanto, será a Terra Devastada a dar a este sentimento uma complexidade e um desenvolvimento de outra ordem.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em 1922 Eliot já veraneou pelo Starnberger, já conheceu a sobrinha do arquiduque a quem os primos dizem “Marie/ Marie, hold on tight” e já passou por Paris. Foi aqui que começou a ler sofregamente os simbolistas – Terra Devastada tem, aliás, uma referência declarada ao Parsifal de Verlaine – e é do cruzamento destas leituras com as suas leituras críticas, com Do Ritual ao Romance à cabeça, que nascerá um dos maiores poemas do século XX.

Eliot está, na altura, empenhado em lançar a sua revista Criterion, que por si só mereceria uma estátua e que publicará alguns dos melhores trabalhos críticos do século, de Curtius ao próprio Eliot; será na revista que sairão pela primeira vez os versos de Terra Devastada, antes de chegarem a livro em dezembro de 1922. Uma leitura apressada da obra ensaística de Eliot poderia estranhar que deste gentleman da Ivy League saísse um poema como a Terra Devastada. O herói do conservadorismo mais clássico que pode existir, o defensor dos poetas mais canónicos, o “clássico”, como ele próprio se define, não parece o tipo de poeta que se perde em visões de “garrafas vazias” e papéis de “sandwiches”.

"Terra Devastada" é um prodígio formal porque não integra, faz coabitar uma enorme de tradições poéticas, literárias, eidéticas, sem esconder a estranheza disso mesmo, como isso não pode erguer um mundo; mas é também um prodígio para lá disso porque consegue transformar os tópicos da decadência numa visão completamente nova da vida.

Esta ideia, porém, não resiste nem a uma leitura atenta dos ensaios, nem a uma leitura séria do poema. Um leitor devoto dos ensaios de Eliot consegue perceber até que ponto Eliot está implicado nos problemas da cultura, dos poetas metafísicos ao jansenismo de Pascal. Os seus ensaios são sempre uma reflexão sobre si próprio e sobre a sua arte, o que demonstra também a sua ambição. A arte de Eliot tanto versa sobre a ideia de Tradição como sobre o esquema rítmico de John Donne. É claro pelos ensaios que todos os problemas filosóficos e artísticos que Eliot trata estão implicados na sua poesia, o que torna a Terra Devastada uma resposta curiosa também a este problema.

Terra Devastada é, obviamente, um poema sobre a estranheza do mundo. É sabido que Eliot andava, na altura em que o escrevia, interessado pelas filosofia indianas, coisa que se torna compreensível não só com o “Datta. Dayadhvam. Damyata Shantih shantih shantih” do fim do poema, mas com a própria ideia de eterno retorno, fundamental no Yoga de Patanjali e que organiza formalmente o poema.

A grande questão visível na primeira e segunda partes do poema está intimamente relacionada com o problema do tempo. Abril como o “mês mais cruel”, o mês da primavera em que a vida renasce só se percebe dentro deste quadro. Aquilo com que o poeta sofre é com a ideia de substituição. Não basta a ideia de que houve um mundo que morreu; houve um mundo que morreu e outro cresce por cima dele; o soldado que foi à guerra volta e é um estranho na sua própria casa. A questão do tempo que faz esquecer aquilo que amámos, a vida que continua impiedosa, como se pudesse substituir aquilo que nos tirou, é claramente um dos pontos mais agudos na sensibilidade de Eliot. Ele é o Homem para quem “os Estados Unidos de há cem anos” foram uma extensão da família, para quem o mundo que desapareceu é aquilo que verdadeiramente convém, e esse mundo já não está lá.

O poema "Terra Devastada" ("The Waste Land") foi publicado originalmente em livro em dezembro de 1922

Ora, este mundo construído sobre outros mundos é, também ele, homenageado em Terra Devastada. Tirésias, o Homem que foi mulher, o “Old man with wrinkled female breasts”, é a personificação da bizarria pretendida por Eliot. Nascem novos mundos, mas o que é feito daquele que tem um pé em cada um deles? Que repete rimas simples nos primeiros versos do poema, à maneira dos simbolistas, que usa as onomatopeias poundianas, que mistura cantigas populares com a sofisticação do “mon semblable – mon frère”, que tanto se impressiona com videntes como com filósofos, em quem coabitam os rituais ortodoxos e os histerismos futuristas?

Terra Devastada é um prodígio formal porque não integra, faz coabitar uma enorme de tradições poéticas, literárias, eidéticas, sem esconder a estranheza disso mesmo, como isso não pode erguer um mundo; mas é também um prodígio para lá disso porque consegue transformar os tópicos da decadência numa visão completamente nova da vida. Eliot não lamenta aquilo que já não existe nem aquilo que nasce; lamenta, isso sim, que os vestígios de uma coisa não permitam que a outra exista verdadeiramente. Não andamos entre o passado, escondido por aquilo que nasce sobre as cinzas; mas isto que nasce também não é mais do que uma versão mais ou menos encapotada de Tirésias, que vive entalado entre dois mundos.

Assine a partir de 0,10€/ dia

Nesta Páscoa, torne-se assinante e poupe 42€.

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver oferta

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine a partir
de 0,10€ /dia

Nesta Páscoa, torne-se
assinante e poupe 42€.

Assinar agora