— Telma, o que se passa?
— Nada… estou cansada de jogar futebol, nunca compito…
— Vem para o judo. Vais gostar, é muito giro, podes viajar, porque é que não experimentas?
Foi assim que a Telma Monteiro de 14 anos foi levada para o judo. Foi seduzida pela irmã, Ana, que tem mais um ano do que ela e que já competia naquela modalidade. Telma já tinha experimentado, mas sentiu-se ainda mais desafiada por ter sido a irmã a lançar a corda. E o timing era perfeito: a frustração das experiências no atletismo e futebol pediam um momento messiânico. No dia 1 de abril de 1998, a menina que gostava de Backstreet Boys e Jean-Claude Van Damme foi assistir a um torneio. Gostou. Dois dias depois foi treinar. Assim entrou o judo na vida de Telma…
“Lembro-me de eu chegar muito entusiasmada do judo, quando a Telma ainda não praticava, e dizer ‘Telma, não vais acreditar, hoje já aprendi mais quatro técnicas'”, começou por recordar ao Observador, no Rio de Janeiro. “E pensava muito nisso, dizia lhe isso, transmitia-lhe que o judo era uma oportunidade. Dizia lhe: ‘Telma, se andarmos no judo e formos boas, podemos viajar, é uma grande coisa…'”
E foi precisamente assim que Telma foi conquistada. Ela sonhava com a Ásia, nomeadamente com a China e Japão, o país do judo. Tinha dificuldades em imaginar aquilo tudo, explicou ao Observador, numa entrevista no Rio de Janeiro, já depois de conquistada a medalha de bronze. Queria saber como viviam as pessoas, como eram, queria sair da bolha e respirar. “Inicialmente o judo era uma oportunidade, depois tornou-se numa forma de vida, uma filosofia mesmo”, explica Ana Monteiro.
A relação entre ambas foi sempre muito próxima, fruto também dos muitos estágios e viagens na seleção nacional de judo. “Durante muitos anos viajámos juntas e partilhámos muitas emoções nas competições. Vivemos muitas coisas boas e outras menos boas, mas sempre acompanhadas uma da outra. Na vitória e na derrota. Acho que esse caminho tornou-nos mais ligadas, por termos a mesma paixão, o judo.”
O humor de Telma é, para Ana, um ás de trunfo, mas nem sempre essa cartada é puxada. “Ao contrário do que ela transmite, há coisas na personalidade dela que só mostra a pessoas íntimas. Ela tem um sentido de humor incrível, como pudemos presenciar hoje.” Ana refere-se ao episódio no Escola Sagres, que recebeu o ministro da Educação e Desporto, Tiago Brandão Rodrigues, e o presidente do Comité Olímpico português, José Manuel Constantino. Na altura de agradecer a homenagem, Telma chamou Tiago ao ministro e arrancou umas gargalhadas aos presentes.
“Já estou a quebrar todos os protocolos. O senhoooooor miniiiiiiiistro… (com direito a vénia). Eu costumo dizer uma coisa, na brincadeira: o Tiago foi adido olímpico da Missão nos JO de 2012 e conhecemo-nos daí. Eu digo sempre que em quatro anos subimos os dois na vida: eu ganhei a medalha e ele tornou-se ministro.” Ippon para Telma Monteiro, por humor de alto gabarito.
O lado mais relaxado de Telma estava ali, diante de todos. O olhar duro, concentrado, de quem vai para a batalha, aquele muito próprio do tatami, estava esquecido. Esta é a versão de que fala Ana.
“É uma pessoa muito lutadora”, continua a irmã. “Muito resiliente. Perante uma adversidade, ela tenta logo pensar numa solução e não se agarra à mágoa ou às derrotas. Nem às vitórias!”
Ana lamenta que no passado a irmã nunca tenha tido sucesso nos JO. “Todo esse percurso de muitas vitórias e algumas amarguras fez com que se tornasse ainda melhor.” Telma Monteiro, em entrevista ao Observador, admitiu que a ausência de glória nos Jogos tornava mais pequenos os outros grandes feitos, como as medalhas em Europeus e Mundiais, ou o tempo em que esteve estacionada em número 1 do mundo. Não chegava. Até que Telma fez uma tatuagem para sacudir a pressão: “Para de pensar nisso, já ganhaste muito! Agora vamos ver o que está para a frente”, explicou. Tatuou os anéis olímpicos. Agora completará a tatuagem: “Vou meter a data por baixo: 08/08/2016”.
“Eu estava no grupo na bancada”, conta Ana, com um sorriso revelador da emoção que viveu durante a prova. “Durante muito tempo visualizei que ela ia ganhar, eu queria muito. Eu queria tanto. Sentia-me muito emocionada antes da competição. Aquele combate contra a francesa era o combate do tudo ou nada, foi muita emoção mesmo.” Foi nesse combate que Telma berrou “eu vim para ficar”, com os indicadores a apontar para o tatami: “Eu acho que ela gritou aquilo para todos nós, para toda a equipa”.
Ana sente o judo de uma maneira especial, modalidade na qual venceu várias medalhas a nível nacional, tendo até representado uma equipa na Alemanha (-52kg). Nunca o deixou de sentir, apesar de ter investido num percurso académico virado para o serviço social. “Hoje estou ligada ao judo. Talvez naquele momento, em que estava de saída, não me consegui visualizar logo no desporto, mas com o tempo percebi que não ia ser uma pessoa feliz no escritório. Tinha de estar naquilo que me deu as maiores alegrias da minha vida. Não podia desviar o caminho.”
Quem não se desviou do seu caminho foi também Telma, que teve de ir buscar ao arquivo mental a lição do passado. Quando o ouro é obsessão, combater na repescagem para lutar pelo bronze pode ser tarefa quase impossível. Aconteceu no passado. Desta vez Telma admitiu que pôs isso para trás das costas e que lutou por um dia histórico para o seu país. E assim foi.
“Eu acho que isso foi uma das mudanças em relação aos outros Jogos Olímpicos. Desta vez teve essa capacidade de dizer ‘okay, não vou lutar pelo ouro, mas o bronze salva o ouro. Há uma nova competição, um novo caminho, agora bola para a frente!'”
O desfecho desta lengalenga já todos sabemos qual é. De cor e salteado. Como se sente, então, a irmã que convenceu a benjamim do clã Monteiro a entrar no judo? É um bocadinho responsável pela medalha? “Sinto a medalha como minha, eu queria muito. Nunca queremos tanto como a própria pessoa, mas sinto-a como se fosse minha…”