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Esta sexta-feira, foram vacinados quase 100 reclusos no Estabelecimento Prisional na Polícia Judiciária de Lisboa
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Esta sexta-feira, foram vacinados quase 100 reclusos no Estabelecimento Prisional na Polícia Judiciária de Lisboa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Esta sexta-feira, foram vacinados quase 100 reclusos no Estabelecimento Prisional na Polícia Judiciária de Lisboa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"Tenho uma filha de oito meses que nunca abracei". Reclusos ganham nova esperança ao receber a vacina contra a Covid-19

A pandemia colocou ainda mais "grades" entre os reclusos e as famílias. Quase 100 foram vacinados esta sexta-feira na cadeia anexa à PJ, em Lisboa. "A vacina é uma nova vida", afirmam.

A última vez que Pedro (nome fictício) deu um beijo à mulher foi “há um ano e quatro meses”. É pai de uma filha que nunca abraçou — tem oito meses, nasceu já em plena pandemia. A Covid-19 veio pôr uma barreira entre Pedro e a família, uma separação que nem as grades da prisão impunham. “Vemos imagens de pessoas que abraçam as famílias com plásticos. Nós aqui dentro não podemos fazer isso. Só posso falar com a minha mãe, mulher e filha através destes acrílicos”, lamenta o homem de 26 anos que está em prisão preventiva por crimes de burla informática.

Para além dos acrílicos — os “parlatórios” –, a Covid-19 obrigou a uma diminuição do número de visitas e respetivos horários. Diminuiu o contacto físico, mas, esta sexta-feira, Pedro ganhou uma nova esperança: a primeira dose da vacina contra a Covid-19 no Estabelecimento Prisional na Polícia Judiciária de Lisboa. “Estamos a tomar a vacina para podermos ter uma visita normal, sem os acrílicos. Só quero estar com a minha família”, afirma. A opção não poderia ser esperar pelo regresso ao mundo exterior: “Acho que tenho 10 anos pela frente. Tão depressa não saio daqui”, admite.

Como Pedro, tantos outros reclusos desta prisão decidiram esta sexta-feira ser vacinados. Pouco antes das 9h, já havia uma fila à porta do espaço onde habitualmente são feitas as visitas. Um guarda-prisional, de braços cruzados e cara fechada, estava na porta do corredor para a sala — totalmente transformada em centro de vacinação. Um a um, os reclusos começaram a ser chamados após as 9h.

António Casal foi o primeiro. Já esteve infetado com Covid-19 em fevereiro e, por isso, ficou livre da segunda dose. “Foi muito rápido, não sinto nada até agora”, descreveu ao Observador na zona de recobro — um espaço improvisado na mesma sala com cadeiras para os reclusos aguardarem por eventuais efeitos secundários. A separar o recobro estão, precisamente, os parlatórios — percorrem toda a sala numa autêntica barreira. António é natural de Angola, tem 36 anos, e está em prisão preventiva acusado de “tentativa de imigração ilegal”. Está na cadeia há mais de um ano. Aguarda agora julgamento.

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“Bora, avança!” A curiosidade sobre o laboratório da vacina e o receio dos mais novos

A campanha de vacinação nesta cadeia surge depois de o Governo anunciar que a imunização dos reclusos iria arrancar a 31 de maio. Na altura do anúncio, o secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso, Vítor Ilharco, afirmou ao Observador que a vacinação desta população se trata de uma “questão de humanidade”. A data não foi cumprida, apenas por alguns dias. Vítor Ilharco explica que percebe esse ligeiro atraso, visto que se trata de uma “logística” complexa.

De acordo com dados cedidos ao Observador pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), foram vacinados no dia 2 de junho todos os reclusos do Estabelecimento Prisional de Chaves. Aquela entidade lembra ainda que, numa primeira fase, já tinham sido vacinados os “internados/reclusos inimputáveis, bem como os reclusos com 80 e mais anos e com patologias associadas”. Tal perfazia até esta quinta-feira, de acordo com a DGRSP, 792 reclusos (não contava com o número de vacinados esta sexta-feira em Lisboa).

“Bora, avança!”. O guarda-prisional — um dos cerca de 50 para perto de 100 reclusos, em 70 celas — continuava a marcar o ritmo das entradas na sala de vacinação. Os reclusos vão entrando na sala.

Ali, ao dobrar da enorme porta blindada, que apenas não resiste ao estalar da tinta branca, está José Bernardo, de pé: “Bom dia, como se chama?” Invariavelmente continuava com outras perguntas — “Já esteve infetado com Covid-19? Está a tomar algum medicamento? Tem alguma doença, como diabetes?”. O médico repetia as perguntas a cada recluso.

Logo nessa primeira abordagem, vários foram os que quiseram tirar dúvidas — sobretudo qual a vacina que iria ser administrada ou avisar que faziam medicação para outras doenças. Outros entraram a passo apressado e determinados — só paravam para que José Bernardo preenchesse à mão o nome e outras dados pessoais numa ficha. E nem mesmo saberem que seria a vacina da Pfizer descansou todos. Principalmente os mais novos, entravam com um olhar vazio, assustado. “Se houver algum problema com a vacina, vou desta para melhor”, não conteve um deles, na casa dos 20 anos, tentando mostrar que não estava preocupado, com as mãos atrás das costas e agitando os ombros.

José Bernardo ia respondendo a cada um, em várias línguas. “Hola, mi nombre es José” [Olá, o meu nome é José], cumprimentou-o de forma sorridente e com o polegar levantado para cima um dos reclusos. Uma das preocupações era ser diabético, o médico — paciente com um ar bem disposto — tentou descansar o espanhol.

Em poucos minutos, foi preciso mudar o discurso para inglês. “I’m from Palestine” [Venho da Palestina], apresentava-se um outro, que acabava de passar pelo guarda de braços cruzados. De seguida outro estrangeiro: um ucraniano, que tentava chamar a atenção dos que ali estavam: “Hello, I’m the killer” [Olá, eu sou o assassino]. De cabelo comprido, louro, e uma barba que saía fora da máscara cirúrgica, confessou ao médico que não acreditava na Covid-19: “It doesn’t exist” [isso não existe].

Após darem os nomes e responderem às primeiras perguntas, seguiam para a secretária onde estava a enfermeira Maria João Eliseu — que ia riscando de uma lista de papel os nomes que o médico dizia em voz alta. Também tinha um guarda-prisional ao seu lado. O processo é rápido, dura apenas alguns segundos. Mas nem sempre as respostas chegam à primeira — Luís (nome fictício), por exemplo, só sabe que nasceu em 1979: o dia e o mês exato desconhece. Apesar disso avança. Como todos os outros. Para as cadeiras onde são dadas as vacinas.

"Nós não sabíamos se íamos morrer cá dentro, todos tínhamos medo da morte. Agora, com a vacina, é uma nova vida"
Ângelo Pereira, recluso

Os outros enfermeiros e as seringas estão logo ali, a dois metros da secretária de Maria. Era mecânico. Assim que cada recluso se aproximava, Marco Anselmo e Jorge Ribeiro davam as indicações: “Bom dia, sente-se aqui. Arregace a manga, isso. E descontraia o braço”. No final, a pergunta era sempre a mesma. E vinha acompanhada de vários conselhos: “Já está, não custou nada pois não? Se inchar pode pedir paracetamol ou fazer gelo. Pode seguir para o recobro durante 30 minutos”. No centro de vacinação improvisado, o circuito foi feito com recurso a cadeiras de refeitório. Os reclusos entravam e passavam por cada etapa até chegarem ao recobro, também ali ao lado, à direita da entrada.

Os circuitos estavam definidos e na maioria dos casos tudo aconteceu como em qualquer outro centro de vacinação. Apenas um momento de maior tensão, que nem sequer obrigou à intervenção de nenhum dos guardas: o ucraniano que desde o início tentava sobressair tirou o penso assim que levou a vacina e atirou-o de forma agressiva para cima da mesa onde estavam os outros frascos da Pfizer. Depois, levantou-se e seguiu para o recobro.

António já não estava no recobro nessa altura. Não teve qualquer efeito, como, aliás, viria a acontecer com todos os 95 vacinados. Mas Ângelo Pereira, de 41 anos, ainda ali está. Foi internado em fevereiro no hospital prisional de Caxias com Covid-19, mas a infeção acabou por não ser grave. Receber a primeira dose da vacina foi um alívio: “Nós não sabíamos se íamos morrer cá dentro, todos tínhamos medo da morte. Agora, com a vacina, é uma nova vida”, diz de forma convicta.

Ângelo cumpre uma pena de seis anos de prisão por tentativa de homicídio. “É um crime grave, não me orgulho. Mas é o meu passado e estou a cumprir a minha pena”, conta. E sabe ao pormenor há quanto tempo está atrás das grades: “Hoje é dia 4, por isso daqui a dois dias vai fazer 29 meses”. Tira a máscara do rosto para “pentear” o bigode e circula pela zona do recobro, que está decorada com duas pinturas que fez. Com a vacina tomada, aponta à liberdade e ao reencontro com os quatro filhos: “Quero poder ter visitas sem aquele medo de não saber se estamos infetados, se vamos contaminar alguém”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

No outro lado da sala, David, mais conhecido por “Pevides”, também falava da importância de poder voltar a ver a família. E mostrava orgulhosamente os nomes das duas filhas, tatuados na parte de dentro do braço direito. “Sinto-me mais seguro, isto é para o bem estar da família”, diz. Há um mês, o “tráfico de duas placas e pouco” atirou-o para a cadeia anexa à PJ. Nunca tinha estado preso, dizia. E gabava-se de ter jogado futebol “com o melhor do mundo, o Cristiano Ronaldo”, no Sporting. “Também fui à Seleção”, continuava ainda com orgulho. Tinha acabado de ser vacinado e despede-se com um piscar de olho, seguindo por entre cadeiras para o recobro.

Entre os cerca de 100 reclusos da prisão, havia muitas outras histórias. Cleuber, de 27 anos, quis levar a vacina para poder voltar a casa, no Brasil. Deixou o país quando estudava para ser técnico de fisioterapia. Em 2019 apanhou uma “pena efetiva de quatro anos e três meses” por tráfico de droga, mas deverá sair daqui a alguns meses com uma ordem de expulsão: “Estou me preparando para voltar à sociedade e não voltar a cometer crimes. O crime não compensa”. De forma tímida, apontava a um futuro positivo: “Quero voltar para minha família, começar do zero e ter novas oportunidades, ir para a faculdade e conquistar o que sempre quis na vida: ser fisioterapeuta”.

As inoculações iam-se somando, os nomes riscados da lista e os reclusos deixando o recobro. O guarda-prisional continuava de braços cruzados a mandar avançar quem faltava. Bastava um simples abanar de cabeça e a fila ia fluindo. O guarda não ficava parado, ia dando alguns passos lentos pela zona do recobro e marcando o ritmo das entradas com um bater de pé autoritário: “Avança!”

Seguiu-se Mário (nome fictício). Talvez uma das vacinações mais difíceis da manhã: quando se sentou puxou a manga da tshirt da Seleção Nacional para cima, mas, à última da hora, hesitou. “Eh pá!”, começou a brandir, com um olhar desconfiado e desviando a cara. Os enfermeiros pediram-lhe que relaxasse. Ao fim de alguns instantes, o enfermeiro Jorge Ribeiro lá conseguiu administrar a vacina, mesmo por cima de uma tatuagem que a tinta gasta e antiga mal deixava ler: “Amor de mãe”, com um coração e uma seta.

"Foi rápido. Cheguei, sentei-me e deram-me logo a vacina"
Hugo (nome fictício), recluso

Quem não teve dúvidas foi Hugo (nome fictício). Tem 24 anos, era esquivo a contar os crimes exatos que o puseram no interior da cadeia, mas explicava que também quis ser vacinado para poder estar com a família. “E a namorada”, acrescenta. A manhã aproximava-se do fim e o jovem recluso aproveitou para elogiar o processo de vacinação: “Foi rápido. Cheguei, sentei-me e deram-me logo a vacina. Agora é só esperar aqui um bocado no recobro”.

Todos os detidos afirmavam estar bem informados acerca do estado da pandemia em Portugal e no mundo. “Nós não somos presos que estamos encarcerados a olhar para quatro paredes. Temos televisão e rádio”, atira Vítor (nome fictício). Idade: 40. Crime? “O da moda: chatices com a mulher”. Falava enquanto desinfetava as cadeiras do recobro com um spray e um pano. Mostrou depois o local onde foi vacinado: o penso tapa os olhos do Anúbis, deus da mitologia grega, que tem tatuado no topo do braço esquerdo.

Do recobro, a janela aberta mas protegida com grades brancas deixa espreitar o pátio, lá em baixo, onde estavam muitos dos reclusos já vacinados. Uns estavam sentados a conversar à sombra, outros a fazer musculação numa baliza de futsal. Outros simplesmente fitavam o chão e passeavam sozinhos à roda do campo, de mãos atrás das costas.

A fila era cada vez mais curta e ainda não eram 12h quando a campanha de vacinação chegou ao fim. “Acabou? Acabou”, comentavam os enfermeiros. Os últimos a serem vacinados foram os faxinas da cozinha — reclusos que trabalham neste espaço. É o caso de Pedro, o recluso que nunca abraçou a filha. Todos lhe vão perguntado o que é o almoço, até os guardas prisionais. “Almôndegas”, responde.

"As prisões são espaços com vulnerabilidade acrescida. Daí a importância da vacinação nesta altura"
Fátima Corte, diretora do Estabelecimento Prisional na Polícia Judiciária de Lisboa

Faltava apenas verificar os nomes nas listas. Contas feitas, foram vacinados na manhã desta sexta-feira 96 reclusos. “Correu tudo muito bem, dentro do planeado e das nossas expectativas. Os reclusos estiveram muito bem”, elogia a enfermeira Maria João Eliseu. A responsável frisou que nenhum recluso desistiu de tomar a vacina e que, pelo contrário, houve alguns que no início da manhã não queriam receber o imunizante e que, depois, acabaram por aceitar. Menos de 10 recusaram ser vacinados. Cinco já tinham sido inoculados antes.

A diretora da cadeia, Fátima Corte, também fez um balanço positivo: “O processo correu muito bem, com muita colaboração de todos e terminou ainda antes da hora prevista”. A responsável lembrou que as prisões são “espaços com vulnerabilidade acrescida”, por causa de acolherem pessoas de várias idades e nacionalidades. “É muito complexo. Daí a importância da vacinação nesta altura”, destacou ainda Fátima Corte.

Vacinação avança noutras cadeias. Governo quer imunizar todos os reclusos em junho

Daqui a quatro semanas, a equipa volta ao Estabelecimento Prisional na Polícia Judiciária de Lisboa para administrar a segunda dose da vacina. Na tarde desta sexta-feira foi a vez de os detidos da prisão de Monsanto serem vacinados.

A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais adiantou ao Observador que este sábado segue-se a vacinação nos estabelecimentos prisionais das Caldas da Rainha e de Torres Novas. No domingo é a vez da prisão de Caxias. Na próxima semana arranca a imunização dos reclusos do Estabelecimento Prisional do Porto e do Estabelecimento Prisional de Faro.

“A DGRSP, em articulação com a Task Force, delineou uma estratégia para a vacinação do universo dos reclusos que determina que a vacinação dos reclusos se vai realizar com a colaboração do Ministério da Saúde de modo a cumprir o objetivo da Task Force – vacinar o universo, em 15 dias, durante o mês de junho”, lê-se na resposta enviada ao Observador esta semana.

Ouça aqui a reportagem em áudio:

Prisões. “A vacina contra a Covid-19 é uma nova vida para quem está cá dentro”

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