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Russia's President Putin Makes A State Visit To Italy
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Tentar perceber o "novo czar" Putin

Putin está no poder há 22 anos. Não tem um rival credível. Parece estar cada vez mais rodeado por yes men, ministros veteranos enriquecidos pela sua lealdade canina. Ensaio de Bruno Cardoso Reis.

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Devemos perceber os nossos inimigos, até para melhor os combater. E não há dúvida de que Putin há muito que vê o Ocidente, a Europa livre, os EUA, como inimigos. Mas só podemos compreender “o outro lado” se não nos deixarmos manipular por ele.

Mestre da desinformação?

A primeira condição para perceber Putin é dar-se conta que ele tenta manipular a opinião pública ocidental. A desinformação russa não é muito sofisticada.

Primeiro, Moscovo sabe que o seu modelo político não é atraente no exterior. Portanto, em vez de promover as maravilhas da Rússia, essa propaganda aposta em amplificar e distorcer os problemas económicos, sociais ou políticos das democracias liberais.

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Os que por cá seguiram a propaganda Putin foram apanhados em falso quando acreditaram que não ia haver invasão, como se fizesse sentido que o líder russo a anunciasse previamente. Depois alguns continuaram a deixar-se apanhar em falso na previsão de uma vitória sem grande violência

Segundo, abraça um antiocidentalismo e um antiamericanismo primários que consistem em dizer que tudo o que de mal existe no Mundo é culpa dos EUA e de outras potências ocidentais e/ou que já fizeram igual ou pior. Como se isso, mesmo se fosse verdade, fosse argumento válido para justificar a invasão russa da Ucrânia. Terceiro, acusa sempre o outro lado dos próprios erros, crimes, violências – vimos isso a respeito do ataque a uma maternidade em Mariupol. Temos razão para temer que isso possa acontecer com a absurda desinformação russa de que os EUA estariam a desenvolver armas químicas e biológicas, não no seu território, ou no dos 29 aliados membros da NATO, mas na Ucrânia, um país com o qual nem tem um tratado de defesa mútua.

Os que por cá seguiram a propaganda Putin foram apanhados em falso quando acreditaram que não ia haver invasão, como se fizesse sentido que o líder russo a anunciasse previamente. Depois alguns continuaram a deixar-se apanhar em falso na previsão de uma vitória sem grande violência, acreditando na desinformação russa sobre a inexistência da Ucrânia ou com a alegada preocupação em não atingir alvos civis.

Agora, alguns continuam a insistir em crer nas afirmações incredíveis do Kremlin de que está tudo a decorrer de acordo com o plano, apesar das evidentes dificuldades de todo o tipo das forças russas, com um volume significativo de mortes, inclusive de vários generais – que parecem estar a atingir num mês níveis mais elevados do que os dos EUA no Afeganistão e Iraque em vinte anos. Claro que de acordo com a sua propaganda Putin é um grande líder nacional, um estratega de génio, cuja “operação militar especial” evidentemente decorre de acordo com o plano, sujeito a acusações injustas e ações incompreensíveis da Ucrânia e do Ocidente.

Um agente da KGB no poder

Posta de lado a desinformação, quem é realmente Putin? Em termos dos dados biográficos fundamentais Putin nasceu em 1952, em Leningrado a segunda cidade da Rússia e antiga capital. Ele é, portanto, uma versão soviética do baby boomer, um filho de sobreviventes da Grande Guerra Patriótica, o nome pelo qual a Segunda Guerra Mundial é conhecida no espaço ex-soviético, e do terrível cerco nazi a Leningrado/São Petersburgo.

Putin parece derivar daqui a convicção de que os russos são capazes de aguentar sacrifícios patrióticos que o Ocidente não aguentaria. Sobretudo, Putin é um antigo tenente-coronel do KGB, um agente da polícia política nacionalista, determinado a não deixar o “seu” Estado voltar a ser subvertido e colapsar. É difícil saber exatamente o que Putin fez nesse serviço secreto. Mas sabemos que trabalhou na Alemanha comunista e aí presenciou o colapso do Muro de Berlim. Há indícios de que poderá ter sido responsável por infiltrar agentes na República Federal Alemã.

A sua visão do Mundo é, em todo o caso, claramente marcada por essa experiência formativa na polícia política soviética, profundamente paranoica e obcecada com contrariar a ameaça de subversão do regime. Daí que qualquer ONG russa independente, qualquer opositor interno se transforme para Putin num traidor ao serviço do Ocidente que ele recentemente ameaçou “cuspir” do país. Por isso, quando Putin se tornou presidente rodeou-se de outros veteranos da KGB, que pensam e agem como ele, conhecidos como siloviki – os securocratas, os homens do aparelho de segurança.

Herdeiro dos czares

Putin também se vê como um estadista, legítimo herdeiro dos grandes líderes imperiais russos, o homem providencial que veio salvar a Rússia e torná-la novamente uma grande potência. Por isso, Putin gosta de aparecer rodeado de grande aparato nos salões dourados do Kremlin como um novo autocrata, rodeado dos símbolos do velho poder imperial e por representações dos czares responsáveis pela expansão territorial ou pela repressão da dissidência.

"Putin estar cada vez mais rodeado por yes men, ministros cada vez mais veteranos, enriquecidos como recompensa pela sua lealdade canina. Está cada vez mais isolado, rodeado de um círculo cada vez mais fechado."

Numa recente alocução do Dia da Mãe, Putin escolheu ter como fundo uma estátua da czarina Catarina, a Grande, que liderou, no final do século XVIII, a conquista da costa da Ucrânia, garantindo o controlo russo da margem norte do Mar Negro, fundando Odessa e outras cidades agora visadas pelas tropas russas. Putin adere à ideia de que na Rússia ou há um Estado forte, um poder autoritário, ou há autocracia ou há anarquia, ou há expansão territorial ou há insegurança e desprestígio. Putin alimenta e alimenta-se de uma visão profundamente nacionalista da história russa que vê o passado imperial como um destino glorioso a ser repetido.

Um homem cada vez mais só

Putin está no poder há 22 anos. Não tem um rival credível, pois os que o podiam ser ou estão presos, como Alexi Navalny, ou foram assassinados, como Boris Nemtsov. Parece estar cada vez mais rodeado por yes men, ministros cada vez mais veteranos, enriquecidos como recompensa pela sua lealdade canina. Está cada vez mais isolado, rodeado de um círculo cada vez mais fechado. É normal que este novo czar esteja cada vez mais convencido da sua própria infabilidade e indispensabilidade. A pandemia só terá agravado esse isolamento.

A jogada de alto risco que foi a invasão da Ucrânia é o resultado de Putin acreditar na sua própria propaganda. Nomeadamente, de que o Ocidente estaria decadente, impotente, irremediavelmente dividido e corrompido, e de que a Ucrânia não existiria realmente.

Como resultado de tudo isto Putin parece ter acreditado que poderia repetir com esta invasão o relativo sucesso rápido da anexação da Crimeia em 2014. Bastaria enviar tropas em grande número e Kiev, e com ela o resto da Ucrânia rapidamente cairiam como um castelo de cartas, sem necessidade de grande planeamento ou coordenação, sem grandes cuidados logísticos, sem manter grandes reservas de tropas ou material para o caso de algo correr mal. O Ocidente, tal como em 2014, conformar-se-ia com o facto consumado, até por estar distraído por divisões internas, pela gestão dos custos da pandemia e da inflação dos preços da energia, em parte provocada pela Rússia.

"É típico de um autocrata subestimar os seus adversários. O perigo é que, sendo evidente a dificuldade da Rússia em atingir os seus objetivos militares, Putin não se pode dar ao luxo de perder, arriscando a sua aura de homem forte."

Um mês depois, um homem mais perigoso?

O que mudou passado um mês de campanha na Ucrânia? Pode ser que Putin se tenha tornado um líder ainda mais perigoso. É típico de um autocrata subestimar os seus adversários. O perigo é que, sendo evidente a dificuldade da Rússia em atingir os seus objetivos militares, Putin não se pode dar ao luxo de perder, arriscando a sua aura de homem forte.

Por isso, o Kremlin já terá procurado mais meios (na China) e mais homens (na Bielorrússia, na Chechénia e até no Médio Oriente), mas não é evidente que os consiga. Mais a história mostra que numa guerra entre um pesado exército convencional e uma ampla resistência popular o prolongar do conflito tende a favorecer esta última, sobretudo se tiver apoio externo, ou obriga a uma escalada temível.

É verdade que o Kremlin pode usar a sua máquina de desinformação para tentar transformar qualquer derrota numa vitória. Por exemplo apostando tudo na tomada de Mariupol e na derrota do Batalhão Azov, tema tão querido à propaganda russa sobre a suposta ameaça nazi por um país liderado por um judeu, ou em procurar envolver e fazer colapsar a frente ucraniana em frente do Donbas.

A propaganda russa pode depois martelar que com isso seriam alcançados os objetivos de desnazificar e desmilitarizar a Ucrânia, falhada a tentativa de fazer do país um satélite do Kremlin através de um golpe de força. Esse seria um cenário possível relativamente benigno. Mas ninguém pode, de forma séria, garantir até onde Putin irá nesta aventura militar.

O legado de Putin

É possível que o regime de Putin esteja mais ameaçado do que nunca nos últimos 22 anos. Baixas crescentes serão difíceis de ocultar e tudo indica que a Rússia está a atravessar o início de uma terrível crise económica. Putin supostamente admira o ministro nacionalista moderado do início do século XX, Pyotr Stolypin. Infelizmente, Putin parece ter-se esquecido de que Stolypin desaconselhou a guerra contra o Japão em 1904-05, outro adversário subestimado pela Rússia. Mas é pouco provável que tenha esquecido que essa derrota ajudou a minar a autocracia czarista. O líder russo parece ter-se empenhado na multiplicação de forças militares e paramilitares que tornariam qualquer golpe complicado, pelo menos enquanto a elite se mantiver coesa.

Qual será o legado de Putin? Claramente ele gostaria de deixar uma Rússia novamente grande. A obsessão com o reconhecimento do estatuto de grande potência é tradicionalmente central na cultura estratégica russa.

Qual será o legado de Putin? Claramente ele gostaria de deixar uma Rússia novamente grande. A obsessão com o reconhecimento do estatuto de grande potência é tradicionalmente central na cultura estratégica russa. Provavelmente ele vai deixar o país mais pobre e mais dependente da China, face a uma Ucrânia, uma Alemanha, uma Europa mais hostis do que nunca.

Imagino que muitos leitores estejam cansados de tanta guerra e de tanto Putin. Mas é perigoso ignorar que hoje é difícil acreditar em qualquer garantia dada pelo líder solitário de uma potência nuclear. O resultado dos erros de Putin podem ser uma guerra prolongada às portas da Europa, gerando um contexto de maior incerteza e risco do que durante a velha Guerra Fria.

Todos estamos a ser obrigados a pagar o preço da arrogância de Putin. Nós pagamos na bomba de gasolina, nos supermercados, e, se o conflito se prolongar, numa crise mais séria. Muitos ucranianos e muitos soldados russos estão a pagar essa megalomania com as vidas. Não somos é obrigados a consumir a desinformação do Kremlin, ao contrário da Rússia, no Ocidente isso é uma opção. Para perceber Putin um dado fundamental que esta guerra veio demonstrar é que ele não é um génio da estratégia.

A grande dúvida é saber se Putin continua a ser um taticista oportunista, que errou nesta aposta e irá limitar os danos e corrigir a trajetória, ou se, transfigurado pelo consumo excessivo da sua própria propaganda, se tornou num megalómano que continuará numa escalada cada vez mais violenta e perigosa.

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