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Entre o final de Julho e o início de Agosto de 1914, as principais potências europeias foram fazendo a sua entrada, no meio de apreciável apoio popular, no conflito que ficaria conhecido como a I Guerra Mundial. Imbuídos de fervor patriótico e sonhos de glória, jovens de sangue na guelra acorreram em massa aos postos de recrutamento, uns ocultando deficiências e enfermidades que os fariam inaptos para o serviço militar, outros, ainda imberbes, acrescentando um ou dois anos à sua verdadeira idade, a fim de poderem alistar-se.

Parte deste entusiasmo apoiava-se nas convicções de que 1) o conflito se resolveria em apenas algumas semanas e de que 2) esta seria “a guerra para acabar com a guerra”. Esta frase ganharia grande difusão nos primeiros meses de conflito, em parte graças a um livro de H.G. Wells, que coligia, sob o título The war that will end war, uma série de artigos que o escritor publicara na imprensa britânica no tenso período que se seguira ao assassinato do príncipe-herdeiro Franz Ferdinand em Sarajevo, e em que defendia que o conflito em perspectiva era culpa do militarismo germânico e que a derrota deste poria termo às pulsões bélicas.

Capa da 1.ª edição de The war that will end war (1914) , de H.G. Wells

Porém, quando as semanas de guerra se converteram em meses e os meses em anos, sem que se vislumbrasse saída para o impasse estratégico nas planícies enlameadas da Flandres e com a nova realidade da guerra de trincheiras e da sofisticada tecnologia bélica a cobrar diariamente uma pesada factura em mortos e estropiados, a euforia dissipou-se e alguns dos que tinham feito trapaça para entrar na guerra, faziam agora trapaça para dela sair, infligindo a si mesmos ferimentos e mutilações que, esperavam, os reenviariam de volta a casa.

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O desânimo e a amargura tomaram conta dos soldados e da opinião pública, que perceberam ter sido iludidos pela retórica vã dos políticos e da imprensa mais patrioteira e belicista. Assim, a expressão “a guerra para acabar com a guerra” (por vezes formulada como “a guerra para acabar com todas as guerras”) foi sendo encarada de forma cada vez mais cínica – e ainda mais amarga se tornaria quando, passados pouco mais de 20 anos sobre o término da I Guerra Mundial, o mundo se precipitou para um conflito ainda mais longo, abrangente e sangrento.

Nem a Primeira nem a Segunda Guerra Mundial têm especial relevo em Guerra e paz: Uma história política do mundo, de Jonathan Holslag, já que o livro cobre, de forma equitativa, os últimos 3000 anos de história e estes foram férteis em conflitos, pelo que mesmo os mais longos e calamitosos são tratados de forma muito sintética: são 12 capítulos de dimensão idêntica, cada um deles cobrindo 250 anos, entre 1000 a.C. e 2000 d.C., precedidos por um capítulo que faz um breve apanhado da geopolítica mundial antes de 1000 a.C. e seguidos por um capítulo conclusivo, que confronta o sonho de paz, “eterno e universal”, com a omnipresença da guerra na história das civilizações.

“Guerra e Paz: uma história política do mundo”, de Jonathan Holslag (D. Quixote)

Jonathan Holslag (n. 1981, Sint-Niklaas, Bélgica) é professor de Política Internacional na Universidade Livre de Bruxelas, especialista em assuntos asiáticos, assessor da vice-presidência da Comissão Europeia e autor de The Silk Road trap: How China’s trade ambitions challenge Europe, e a edição inglesa desta obra – A political history of the world: 3000 years of war and peace – surgiu em 2018. A edição portuguesa é da D. Quixote e tem tradução de Ana Saldanha.

O conhecimento da História fomenta a paz?

Uma vez que a guerra tende a ser vista como fonte de sofrimento e privações, o entusiasmo de parte da população europeia no Verão de 1914 pode hoje parecer-nos estranho e levar a que perguntemos como terá sido possível, numa época em que já havia jornais, telégrafo, telefone e opinião pública razoavelmente informada, que o fervor patriótico não tenha sido contrabalançado pela memória dos equívocos, dos erros de percepção, dos temores e da ganância que, ao longo da história, foram dando azo a que a humanidade se deixasse arrastar, ano após ano, para a guerra embora aspire à paz.

Holslag lembra a advertência de Marco Túlio Cícero de que “manter-se na ignorância do que aconteceu antes de se ter nascido é manter-se sempre criança” e exalta os benefícios do conhecimento da história, que “conduz a cumes elevados, de onde podemos olhar para trás, tirar conclusões e procurar o melhor caminho possível para o horizonte à nossa frente”. São palavras sensatas, mas com escassa repercussão no mundo real, seja ele o de 1914 ou o de 2019. Apesar de hoje termos ao nosso dispor, nas livrarias, nas bibliotecas, nos quiosques, na televisão e na Internet, uma assombrosa cornucópia de informação histórica, cobrindo todos os tipos de destinatários, dos investigadores universitários aos cidadãos comuns, as massas e os líderes políticos pouco parecem saber de História – ou, o que é pior, dela apenas retêm os elementos que justificam os seus rancores e preconceitos e a (suposta) justeza das suas aspirações e reivindicações.

Paris, Agosto de 1914: Multidão aguarda saída de uma edição especial de um jornal com as últimas novidades sobre a guerra iminente

Em 2019, sunitas e xiitas continuam a digladiar-se – sobretudo através da rivalidade Irão-Arábia Saudita, com expressão mais visível e sangrenta na guerra civil em curso no Yemen desde 2015 – com base nas tumultuosas e enredadas disputas pela sucessão de Maomé que conduziram às batalhas de Jamel, Siffin e Karbala, que tiveram lugar nos anos de 656, 657 e 680, respectivamente.

Ali e Aisha na Batalha de Jamel (também conhecida como Batalha do Camelo ou Batalha de Basra (Baçorá); miniatura c.1571

A Batalha de Karbala foi, na Grande Perspectiva Histórica, um evento insignificante e pode até contestar-se o emprego do termo “batalha”, já que os partidários de Husayn ibn Ali, neto do Profeta e filho de Ali ibn Abi Talib, alegadamente designado por Maomé como seu sucessor, rondariam apenas as sete dezenas, e o exército do califa Yazid I alinhava 5000 soldados, pelo que o segundo massacrou os primeiros com facilidade – mas este massacre teve ponderosas consequências, pois dele emergiu uma corrente do islamismo partidária de Ali (os xiitas, de “shi’atu Aliy”, “partidários de Ali”), oposta aos sunitas.

Santuário xiita em Karbala, onde estão sepultados Ali e os seus 72 partidários massacrados em 680

As diferenças iniciais entre sunitas e xiitas, que eram minúsculas e se circunscreviam à mera luta pelo poder, foram aprofundando-se ao longo dos séculos e alastrando aos domínios da teologia, da jurisprudência e das práticas religiosas, e são hoje um abismo intransponível.

Um dos eventos mais importantes do calendário xiita é o Arba’een, uma peregrinação a Karbala que envolve, nos nossos dias, 45 milhões de pessoas e assinala o martírio de Husayn ibn Ali, que, na óptica xiita, ofereceu a sua vida a fim de preservar a pureza original do Islão, contra os sunitas, que representariam a sua corrupção.

Mesquita de Husayn, Karbala, Iraque, 2015: peregrinos do Arba’een

Quando da fragmentação da Jugoslávia, na década de 1990, a oposição da Sérvia às aspirações independentistas do Kosovo e a concomitante tentativa de expulsar desta região as populações de etnia albanesa – num conflito que envolveu a NATO e ficou conhecido como Guerra do Kosovo (1998-99) – radicou no facto de a identidade nacional sérvia ter como ponto fulcral um evento remoto que teve lugar, não na Sérvia, mas no Kosovo: a Batalha de Kosovo Polje (também conhecida como “Batalha do Campo dos Melros”) que teve lugar a 15 de Junho de 1389, numa planície perto da actual Pristina, e que opôs uma coligação de cristãos liderados pelo príncipe sérvio Lazar ao exército invasor do sultão otomano Murad I.

Os factos relativos à batalha são ambíguos, uma vez que diferem consoante a fonte é sérvia ou otomana, mas é correcto interpretar o seu desfecho como uma derrota dos sérvios, ainda que os otomanos tenham também sofrido pesadas baixas, entre as quais Murad I, que terá sido apunhalado por Miloš Obilić, um cavaleiro sérvio que fingiu ter desertado das fileiras cristãs e pediu para ser levado à presença do sultão.

A Batalha do Kosovo de 1389, numa versão de 1953 pelo sérvio Petar Lubarda (1907-1974); Lubarda abordou o tema da Batalha do Kosovo em mais de 30 quadros e frescos, o que dá ideia de quão central este evento é no imaginário sérvio

As baixas nas fileiras otomanas e o assassinato de Murad I apenas atrasaram um pouco a conquista dos Balcãs pelos otomanos, que acabaram por ocupar a região durante cinco séculos. O príncipe Lazar, cuja ascensão e governação contara com o apoio da igreja ortodoxa sérvia, foi prontamente canonizado e celebrado em hinos e os seus restos mortais passaram a ser venerados como relíquias. Após um período de relativo olvido, o enfraquecimento do poder otomano na região, contestado pelos Habsburgos, levou ao renascimento progressivo do culto de Lazar, a que se juntou, no início do século XIX, a veneração de Miloš Obilić (o assassino de Murad I) como santo e herói nacional. Após a Sérvia ter conseguido libertar-se do jugo otomano, em 1876, o dia da Batalha do Kosovo – 15 de Junho – foi instituído como feriado nacional, com a designação de “Vidovdan”. A coincidência de o evento que desencadeou a I Guerra Mundial – o assassinato de Franz Ferdinand, príncipe-herdeiro do trono austríaco, em Sarajevo, por patriotas sérvios – ter ocorrido no Vidovdan veio reforçar a centralidade da batalha de 15 de Junho de 1389 na identidade sérvia, pelo que os governantes da Jugoslávia e, após a fragmentação desta, da Sérvia têm vindo a escolher o Vidovdan para fazer proclamações e discursos importantes.

Sérvios celebram o Vidovdan no Gazimestan, monumento no local da Batalha do Kosovo; a figura representada na tela que cobre o monumento é o príncipe Lazar

Estes dois exemplos mostram como o conhecimento da história não nos conduz necessariamente a “cumes elevados”, podendo antes confinar-nos a vales esconsos e lúgubres, de onde se vê apenas uma nesga da paisagem e onde medra a ilusão de que somos melhores do que os que habitam no vale ao lado.

É assim que, neste início do século XXI, do cosmopolitismo, do Google Translate e do Google Maps, da viagem de avião low cost, do turismo de massas, do acesso gratuito e instantâneo a milhões de documentos sobre a história, língua e cultura dos outros povos, de milhões de tutorials no YouTube que permitem a aprendizagem de coreano, farsi ou grego, assistimos ao reacender dos nacionalismos obtusos e da xenofobia, que crêem poder manter à distância as ameaças à identidade nacional através da construção de barreiras (ver Sitiados: O que nos leva a querer construir muros em vez de pontes e estradas), à persistência de caducas reivindicações territoriais (ver Da China a Olivença, a cartografia do rancor), ao recrudescimento da tensão internacional e o aumento dos orçamentos militares – sempre tendo em vista a “defesa”, já que a correcção política ou a hipocrisia (nem sempre é fácil distingui-las) impedem hoje que mesmo o mais belicista dos países tenha um Ministério da Guerra.

A democracia fomenta a paz?

No capítulo final, Holslag conclui que “o pressuposto de que a participação democrática ou popular na política funciona como um travão do imperialismo ou da agressão não se sustenta sob um exame mais atento. Roma inclinava-se menos para a conquista de outros povos quando era uma república do que quando foi governada por imperadores, ou a França republicana era menos beligerante do que sob a monarquia Bourbon?”

No capítulo correspondente ao período 250-1 a.C., escreve Holslag que “à volta do Mediterrâneo, as assembleias de cidadãos tinham cada vez mais uma palavra a dizer em decisões relacionadas com a guerra e a paz – e frequentemente mostravam-se tão implacáveis e agressivas como os mais bélicos monarcas”.

Porém, as “assembleias de cidadãos” não só não tiveram tanta difusão como esta frase dá a entender– só Roma e a Grécia as adoptaram – como estavam longe da democracia como hoje a entendemos, antes de mais porque os “cidadãos” não eram entendidos no sentido abrangente que hoje lhe damos e os ricos e poderosos tinham nelas um peso desproporcionado. Mesmo no tempo em que Roma era uma república, as guerras eram motivadas, como admite Holslag, por “prestígio, as ambições de cônsules e dos generais, o desejo de controlar o comércio e o fornecimento de cereais”, de forma que, como afirmou o tribuno e historiador romano Semprónio Acélio (Publis Sempronius Asellio, 158-91 a.C.), “com a bênção dos deuses e do senado, qualquer guerra poderia ser justificada”.

“O último dia de Corinto” (década de 1870), por Tony Robert-Fleury, alude ao desenlace do cerco da cidade grega de Corinto pelas legiões romanas, em 146 a.C.: a pilhagem e incêndio de Corinto, acompanhada pela execução de todos os seus homens e pela escravização das mulheres e crianças, marca o início do domínio absoluto de Roma sobre a Grécia

O que determina a belicosidade de uma nação é menos a democraticidade das suas instituições do que o contexto e as oportunidades. Os EUA são a mais antiga democracia do mundo e tal não impediu que tenham passado boa parte da sua história envolvidos em conflitos, muitos deles a milhares de quilómetros das suas fronteiras (ver A história dos EUA enquanto polícia do mundo).

Se a declaração de guerra fosse sujeita a referendo nacional, é possível que a vontade popular lhe fosse contrária, mas a guerra nunca foi decidida através da consulta popular – ir ou não para a guerra é, mesmo nos países mais democráticos, uma escolha feita pela elite governativa e esta não decide necessariamente “a bem da Nação”. Por vezes, é movida por calculismo político ou até pela perspectiva de ganhos pessoais, sejam eles directos ou destinados a satisfazer grupos de interesse. Tome-se o caso da invasão do Iraque pelos EUA em 2003 e a subsequente ocupação, que se estendeu até 2014: o cidadão médio americano não tirou dela qualquer benefício e a guerra e a ocupação custaram 1.9 biliões de dólares ao erário público dos EUA. Porém, nem tudo foi mau para os EUA no “atoleiro” iraquiano: houve empresas a obter pingues lucros, algumas delas com vínculos a governantes americanos que apoiaram a invasão.

O vice-presidente Dick Cheney discursa para as tropas americanas na base aérea de Balad, Iraque, 18 de Março de 2008. Entre 1995 e 2000 Cheney foi CEO da empresa Halliburton; entre 2001 e 2009 foi vice-presidente dos EUA, um cargo onde se distinguiu por ter sido um dos mais ardentes defensores da invasão do Iraque e por ter registado, no termo do seu mandato, uma taxa de aprovação de apenas 13%. A Halliburton foi uma das principais beneficiárias da invasão e ocupação do Iraque

A 17 de Junho de 1961, no discurso de despedida, no final do seu segundo mandato como presidente dos EUA, Dwight D. Eisenhower, que estava longe de ser pacifista ou anti-militarista (fora Supremo Comandante Militar Aliado na Europa entre 1943 e 1945 e estivera na linha da frente do envolvimento americano na “corrida ao espaço” e na Guerra da Coreia) alertou os americanos: “A conjugação de uma imensa estrutura militar e de uma grande indústria de armamento é uma situação nova na experiência americana. A sua influência total – económica, social e até espiritual – faz-se sentir em cada cidade, em cada capitólio, em cada gabinete do governo federal. Reconhecemos a necessidade imperativa deste desenvolvimento. Mas não podemos ignorar as suas graves implicações […] Devemos precaver-nos contra a influência injustificada, deliberada ou não, do complexo militar-industrial”.

Huntsville, Alabama, 8 de Setembro de 1960: O presidente Eisenhower (de capacete na mão) inaugura o Marshall Space Flight Center; à direita de Eisenhower está o director do centro, Werner von Braun, o cientista alemão que concebera as bombas voadoras V1 e V2 para a Alemanha de Hitler

O “complexo militar-industrial” foi frequentemente apontado como estando por trás de alguns dos conflitos em que os EUA se envolveram, mas com o colapso da URSS, o final da Guerra Fria e a reconversão de alguns sectores da indústria bélica americana para o mercado civil, deixou de se ouvir falar nele. Mas tal não significa que a sua “influência injustificada” se tenha dissipado – e menos ainda agora que parece ter chegado ao fim o período do mundo unipolar dominado pelos EUA e a China tem vindo a aumentar vertiginosamente a sua despesa militar.

Despesa em “defesa” por país, em 2018, em milhares de milhões de dólares. Note-se que a despesa somada dos EUA (648.800 milhões de USD) e China (250.000 milhões) representa quase tanto como a soma dos restantes países, o que mostra claramente quem disputa hoje a supremacia mundial. Em 3.º lugar (67.600 milhões) surge a Arábia Saudita, que possui apenas 34 milhões de habitantes, o que faz dela o campeão da despesa militar per capita – um investimento a que não é estranha a sua condição de líder da facção sunita do Islão e a sua inimizade figadal com o Irão xiita

O orçamento militar da China, que era de 22.930 milhões de dólares em 2000, foi multiplicado por 11 em 2018, levando os EUA, cujo orçamento militar estagnara após o colapso da URSS, a retomar à corrida ao armamento. Quando o presidente Trump assina decretos tentando coarctar os negócios da Huawei não é apenas uma disputa comercial entre fabricantes de smartphones que está em jogo.

Evolução da despesa militar dos EUA entre 1962 e 2014, em milhares de milhões de dólares (ajustados à inflação)

A prosperidade fomenta a paz?

“Há séculos que é proposta a ideia liberal de que a paz traz prosperidade e vice-versa. Contudo […] a realidade está longe de ser assim tão simples”, escreve Holslag nas conclusões. A crescente prosperidade de um país pode suscitar nos seus vizinhos o temor de que a sua indústria seja arruinada por este rival, ou de serem obrigados a aceitar condições desvantajosas em acordos internacionais. Contra este receio, Adam Smith argumentara, na sua obra clássica An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations (1776), conhecido em português (e na forma abreviada) como A riqueza das nações, que a prosperidade dos nossos vizinhos deveria ser fonte de regozijo: “Assim como é provável que um homem rico seja melhor cliente das pessoas industriosas na sua vizinhança do que um pobre, também o é uma nação rica”. Mas se isto pode ser verdade no longo prazo, “a política [concentra-se] sempre nas desigualdades a curto prazo e no receio de que o equilíbrio económico em mudança [possa] tornar um estado vulnerável à agressão” (Holslag).

O porto de Londres no século XVIII, por John Carmichael, num quadro de 1830

Com efeito, muitas das tensões e atritos da política internacional da viragem dos séculos XIX/XX nasceram da inquietação da França, que era tradicionalmente a maior potência económica europeia, perante o avassalador crescimento da produção industrial da Grã-Bretanha e, depois, da Prússia. Holslag atribui muitas destas tensões à “inveja” das outras potências europeias em relação ao “vasto império da Grã-Bretanha” e explica-as em termos de dois tipos de interesses económicos: por um lado a necessidade de assegurar fontes de matérias-primas por outro a de conquistar novos mercados: “Como era frequente que a produção económica da Europa se expandisse mais rapidamente do que a procura interna, a obtenção de lucros começou a sofrer pressões. Este facto levou ao proteccionismo e desencadeou uma busca urgente de mercados e oportunidades de exportação para investir o capital mais lucrativamente”. Holslag cita, em seu apoio, o economista britânico J.A. Hobson que, em 1902, apontou o excesso de produção como “raiz principal do imperialismo”.

As instalações fabris da BASF em Ludwigshafen, Alemanha, 1881

A ser válida a asserção de Hobson, a sua transposição para o nosso tempo, em que o excesso de produção assumiu proporções gargantuescas por comparação com o mundo de 1902, dá motivos de sobra para ficarmos inquietos – e leva a encarar sob outro prisma a “guerra económica” que hoje opõe os EUA à China.

Os EUA ocupam, desde 1871, a posição de maior economia mundial, uma posição que se cimentou no século XX, em parte graças ao facto de as principais potências europeias se terem, por duas vezes, engalfinhado em duas guerras devastadoras, nas quais os EUA também participaram mas conseguindo manter o território americano e a sua capacidade industrial intocados. O presidente Woodrow Wilson, que presidia aos destinos dos EUA quando da I Guerra Mundial, é geralmente visto de forma benigna: a intervenção americana na guerra europeia parece ter sido desinteressada e “justa” e, após a guerra, Wilson empenhou-se de corpo e alma na criação de uma instituição – a Sociedade das Nações – que arbitraria os diferendos entre nações e ajudaria a tornar as guerras menos prováveis. Porém, logo em 1917, Wilson comentara com um dos seus conselheiros: “Quando a guerra terminar, poderemos impor-lhes a nossa maneira de pensar, porque nessa altura eles […] estarão financeiramente nas nossas mãos”. Com maior ou menor premeditação e calculismo, a verdade é que os EUA saíram de ambas as guerras reforçados na sua posição de maior potência económica mundial.

O rápido crescimento do Japão nas décadas de 1960 a 1980 causou algum alarme nos EUA – sobretudo quando as empresas japonesas começaram a comprar empresas americanas “emblemáticas – mas o facto de o Japão ser praticamente irrelevante no plano militar (e dependente da protecção americana) e a estagnação da economia japonesa a partir do início da década de 1990 reinstalou a tranquilidade.

O porto de Hankou, no Rio Yangtze, no início do século XX

Esta durou pouco tempo, pois a China, crescendo a um ritmo vertiginoso, arrebatou em 2011 o 2.º lugar no podium ao Japão e tem vindo a aproximar-se rapidamente dos EUA, estimando-se que por volta de 2030 se torne na maior economia mundial. A apreensão americana perante o rival chinês tem vindo a manifestar-se através da “guerra tarifária” e da tentativa de suster a expansão da Huawei invocando motivos de “segurança nacional”.

Se as preocupações da administração americana são compreensíveis ou até legítimas, também há nelas uma componente de “presunção” inerente a quem, após ocupar o 1.º lugar durante quase 150 anos, já o assume como vitalício e considera uma insolência ou um ultraje que alguém ouse disputá-lo. Porém, quando se vê a questão numa perspectiva temporal dilatada, percebe-se que a China apenas se prepara para regressar à posição que foi sua antes da Revolução Industrial e que, durante a maior parte da história das civilizações, a China e a Índia foram, por larga margem as duas maiores potências económicas do mundo.

Evolução da repartição do PIB mundial entre as principais potências económicas, do ano 1 a 2017. Nota:  a escala temporal não é linear

Da análise da evolução da repartição do PIB mundial entre as principais potências económicas pode retirar-se informação inesperada: Espanha nunca fez parte do top 5, mesmo no seu Siglo de Oro, quando possuía o mais vasto império do mundo (“onde o sol nunca se punha”); analogamente, ao mesmo tempo que, nos séculos XVI-XVII, o Império Otomano atingia a sua máxima extensão e ia da Hungria ao Yemen, de Marrocos ao Golfo Pérsico e ao Mar Cáspio, o seu peso na economia mundial ia diminuindo; a Rússia, apesar de continuar a estender-se por 11 fusos horários e a comportar-se como um bully, respaldada no seu poderio militar, tem vindo a perder relevância desde meados do século passado (desde que Stalin morreu, observarão os entusiastas do seu regime, que ainda os há). É ainda mais surpreendente constatar que também o apogeu dos EUA ocorreu por volta de 1950 e que a sua perda de relevância acelerou desde 2000.

Claro que a repartição do PIB pelas nações não reflecte necessariamente a prosperidade e bem-estar dos seus cidadãos, mas este é o tipo de gráfico que serve para desiludir quem crê estar “a fazer a América ser grande outra vez”. Perceber e aceitar que nenhum império é eterno e que os EUA não representam o apogeu do percurso da Humanidade requer humildade, uma qualidade em que Donald Trump é altamente deficitário. E dada que o também não tem inclinação para actividades intelectuais, de pouco serviria a recomendação para que lesse e meditasse sobre o Ozymandias de Shelley.

Evolução da repartição do PIB mundial entre as principais potências económicas, numa forma simplificada e com a Europa Ocidental agregada, do ano 1 a 2003. Nota:  a escala temporal não é linear

Na discussão sobre se a prosperidade favorece a paz, Holslag passa ao lado de um aspecto óbvio: o de a prosperidade ser um conceito extremamente subjectivo e em permanente reajustamento. O que um indivíduo ou um povo consideram ser “suficiente” é como a linha do horizonte: vai recuando à medida que caminhamos para ela. Edward Gibbon (1737-1794), o autor da célebre History of the decline and fall of the Roman Empire, proclamou que “se um homem fosse chamado a determinar o período na história do mundo durante o qual a condição da raça humana foi mais feliz e próspera iria sem qualquer hesitação indicar o que se estendeu desde a morte de Domiciano até à subida ao trono de Cómodo [96-180 d.C.]”, mas a verdade é que os bens e confortos de que desfrutava o cidadão médio britânico do seu tempo faziam parecer remediada, desoladora e extenuante a vida do cidadão médio do apogeu do Império Romano. Por sua vez, a prosperidade do tempo de Gibbon, que faleceu quando a Revolução Industrial começava a ganhar impulso, foi completamente ofuscada pelos ganhos registados na Grã-Bretanha e restantes países europeus nos 150 anos seguintes. Este aumento de prosperidade sem precedentes na história da humanidade não impediu, todavia, que os europeus se envolvessem, em 1914-18 e 1939-45, nas duas guerras mais sanguinárias e devastadoras da história

Evolução do PIB per capita (ajustado à paridade do poder de compra) entre 1500 e 1950

Evolução do PIB per capita (ajustado à paridade do poder de compra e a preços de 2011) entre o ano 1 e 2016

Sendo a natureza humana como é, o seu apetite por mais e mais requintados bens materiais, serviços e confortos é insaciável, pelo que não poderemos esperar que o acréscimo de prosperidade dissuada os povos de entrar em guerra. Isto não exclui que a prosperidade possa ser um travão ao belicismo por via indirecta: o facto de o cidadão médio do mundo desenvolvido levar uma vida cada vez mais abastada e confortável pode levá-lo a ter consciência do muito que tem a perder se o seu país entrar em guerra. Daí que, com exclusão de acções de “policiamento” e “guerras de baixa intensidade” em países distantes, as opiniões públicas dos países desenvolvidos tenham vindo a mostrar-se cada vez mais relutantes em relação a aventuras bélicas “a sério”.