“Tudo à volta ardeu. Este tanque foi a salvação destas pessoas”. Sem tocar na água do tanque comunitário em Nodeirinho, Marcelo Rebelo de Sousa parou num dos mais simbólicos locais da tragédia que atingiu o Pinhal Interior há três anos. Dezenas de pessoas procuraram refúgio naquela água perante a ameaça das chamas que varreram a pequena aldeia, onde 11 pessoas morreram. Quem ali mergulhou salvou-se, mas na cabeça ainda “se vê o lume”, como disse ao Observador Cacilda Nunes Henriques, de 78 anos, que naquele dia foi uma das pessoas que usaram o tanque para se molhar e tentar salvar. Cacilda confessa que ainda tem medo: “Agora mais sujo está [a floresta]. Há muita coisa para queimar. Deus queira que não”.
Marcelo Rebelo de Sousa dormiu em Pedrógão Grande e fez questão de estar nos três concelhos mais afetados pelo incêndio de há três anos, que matou 66 pessoas, feriu 254 pessoas, destruiu mais de 500 edifícios e atirou ao chão uma região envelhecida e com poucas saídas profissionais.
“Só há uma forma de não se repetir aquilo que aconteceu em 2017: é haver quem viva no território. Se o território for um vazio, de onde as pessoas partem, não existem, é evidente que esse buraco pode ser destruído pelas chamas”, disse o chefe do Estado à saída de uma reunião com a Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande, um encontro que decorreu à porta fechada.
Esta opinião de Marcelo não é de agora, já em 2018, um ano após a tragédia e também em visita àquelas áreas afetadas pelos incêndios, o Presidente da República dizia: “Falta muitíssimo por fazer. O mais importante ainda está por fazer”, considerando que o mais importante para aquela região “é trazer gente, trazer atividade económica e manter atividade social aqui”. O Presidente da República ouviu os familiares e acendeu velas. Esta foi uma viagem “improvisada” nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa para homenagear e para dizer à região que o que ali se viveu não será esquecido.
O Presidente da República, que se fez acompanhar da assessora para os Assunto Sociais, da ajudante de campo e de cinco seguranças começou o dia na missa de homenagem às vítimas daquela tragédia em Figueiró dos Vinhos. Aí só foi permitida a entrada de familiares das vítimas mortais e quem tivesse ficado ferido. Por esta razão e devido à pandemia, a igreja do Convento de Nossa Senhora do Carmo não esteve cheia.
No adro foi colocado um ecrã gigante onde algumas dezenas de pessoas puderam participar na celebração, vedada à imprensa. À saída e em declarações aos jornalistas, o chefe de Estado voltou aos casos que ainda correm nos tribunais relativos à forma como foram aplicados os fundos doados por milhões de portugueses e ainda as responsabilidades penais. Há um arguido comum nos dois processos: Valdemar Alves. O presidente da câmara de Pedrógão, esteve presente na missa, mas não voltou a ser visto ao lado do presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa já tinha dito em entrevista exclusiva ao Observador que as suspeitas sobre responsáveis locais estão a contribuir para o atraso na recuperação da região. À saída do pequeno convento, o Presidente da República evitou a resposta à pergunta: “Deviam estas pessoas sair de cena?” refugiando-se no respeito “pela separação de poderes”.
Três anos depois da tragédia “houve uma reflexão profunda, houve um debate no parlamento, houve mudança de legislação, houve medidas tomadas e o problema é o terreno”, disse Marcelo. O Presidente entende que não pode haver recuperação quando “o terreno é feito de pessoas de carne e osso, pessoas que não têm meios para poderem agir em muitos casos”, acrescentou.
Nem beijos nem abraços em aldeias vazias
Em Figueiró dos Vinhos, Marcelo Rebelo de Sousa trocou dois dedos de conversa e ainda tirou algumas fotografias com as poucas dezenas de pessoas que se juntaram nas imediações do Convento de Nossa Senhora do Carmo. A rua cortada ao trânsito facilitou o pequeno ajustamento dos que de máscara ficaram para ver e ouvir o Presidente da República.
Seguido de perto por jornalistas e sem agenda oficial, o chefe de Estado fez-se à estrada. Parou primeiro na casa de Rui Rosinha, em Castanheira de Pêra. O bombeiro, que ficou gravemente ferido no acidente que vitimou o colega Gonçalo Conceição, recebeu Marcelo Rebelo de Sousa em casa do sogro. Está a recuperar de mais um internamento e há demasiados degraus na sua própria casa. O encontro decorreu longe de microfones e objetivas. O Presidente foi “só dar um abraço”, garante fonte da reduzida comitiva.
Ainda em Castanheira de Pêra, fica o Hotel Lagar do Lago. É mesmo ao lado da Praia das Rocas, um dos grandes atrativos daquela vila dos tempos pré-incêndio, dos tempos pré-covid. O hotel pertence aos pais de Gonçalo, o Assa (como era conhecido), que morreu no acidente na estrada nacional 236 – 1, em que Rui Rosinha ficou ferido. Marcelo Rebelo de Sousa queria ter lá dormido, mas este coronavírus fechou a praia, encerrou o hotel e atirou para o layoff os empregados. Não houve abraços, nem gestos de conforto.
O presidente, que promete “não esquecer” passou ainda por Vila Facaia, onde não se via ninguém. Por fim, dois cafés abertos, um de cada lado da estreita rua que corta a localidade ao meio. Marcelo Rebelo de Sousa parou e saiu da viatura oficial. Junto ao café 2002, recebeu um convite: “Senhor presidente, venha às 5 horas da tarde assistir à missa connosco em homenagem a todas as vítimas”. Marcelo aproxima-se e lamenta não conseguir estar presente, mas deixou uma garantia àquela mulher: “Às 17 horas vou estar longe (em Lisboa), mas a pensar em vocês todos”. Entrou no carro logo de seguida e acenou: “Adeus, não me esqueço. Força!”.
Foram menos de 5 minutos de paragem em Vila Facaia, o “sr. presidente” saiu do carro, cumprimentou, conversou, acenou e partiu para parar umas centenas de metros mais à frente, em Nodeirinho. Na pequena aldeia do concelho de Pedrógão Grande morreram 11 pessoas e outras tantas foram salvas com a ajuda de um tanque comunitário, utilizado para lavar roupa. No dia 17 de junho de 2017 muitas foram as pessoas que entraram naquele tanque e ali ficaram com água pela cintura a ver as chamas que os cercavam. Debruçado sobre a água esteve breves segundos e repetiu: “Este tanque foi a salvação destas pessoas”.
Em frente a esse tanque, que tem água constantemente a correr, no outro lado da estrada está a “Fonte da Vida”. É exatamente assim que é chamado o memorial constituído por duas pedras de xisto que celebram a vida e recordam as 11 vítimas mortais desta aldeia de Pedrógão Grande. Por um momento, Rebelo de Sousa ficou quase sozinho e em silêncio.
Não há Proteção Civil sem bombeiros
“Tinha uma dívida a pagar a esta corperação e de alguma maneira temos aqui um princípio de pagamento.” Ao terminar o périplo de cinco horas pela região destruída pelo incêndio de há três anos no quartel dos Bombeiros de Pedrógão Grande, Marcelo Rebelo de Sousa quis “pagar uma dívida”, deixar um agradecimento e mais um recado: “Não há estrutura qualquer que possa substituir os bombeiros” por mais sofisticada que seja a organização da Proteção Civil. E foram vários os recados que deixou aos bombeiros e ao poder político.
Antes, no quartel de Castanheira de Pêra, o presidente da República aproveitou para denunciar que os soldados da paz “passaram um mau bocado, porque muitos dos serviços que tinham por habituais deixaram de existir durante a pandemia e perderam fontes de receitas”, disse. “O Estado só pode ser sensível a isso, precisam de meios, de receitas”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa quando questionado se é necessário mais apoio para as corporações que se preparam para enfrentar mais um verão, mas desta vez em tempos de pandemia. “Temos lições aprendidas do passado, vamos ver como é que elas podem ajudar no futuro e espero que ajudem”, conclui o Presidente da República.