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As restantes partes do trono – hoje desaparecidas – podem ter-se perdido no amontoado de material pétreo (será que ainda por ali estão?) ou terem mesmo sido aproveitadas para preencher uma qualquer parede
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As restantes partes do trono – hoje desaparecidas – podem ter-se perdido no amontoado de material pétreo (será que ainda por ali estão?) ou terem mesmo sido aproveitadas para preencher uma qualquer parede

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

As restantes partes do trono – hoje desaparecidas – podem ter-se perdido no amontoado de material pétreo (será que ainda por ali estão?) ou terem mesmo sido aproveitadas para preencher uma qualquer parede

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Um enigma histórico. O que resta do trono de pedra da Idade Média redescoberto na Sé de Lisboa?

Um enigma histórico que começou nas redes sociais: a quem pertenceu o espaldar de uma cadeira em pedra com origem no Portugal medieval? Quais as suas origens? E que futuro aguarda este património?

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Em 1980, o escritor italiano Umberto Eco publicava O Nome da Rosa, a história à Sherlock Holmes passada na Idade Média, com uma abadia beneditina como cenário. No fim, após uma série de peripécias que envolvem crimes, símbolos obscuros e livros proibidos, o astuto William de Baskerville e o jovem Adso conseguem desvendar o mistério que pairava na comunidade monástica em que viviam, com a segunda parte da obra Poética de Aristóteles a ter uma quota parte importante na trama.

Ao longo das últimas semanas, um outro mistério medieval desenrolou-se nas redes sociais, provando que histórias de detetives envolvendo artefactos da Idade Média não acontecem só nos livros. Este, escrito não nas páginas de um romance, mas nas do Facebook e do Instagram, não envolvia livros apócrifos, mas um trono em pedra, possivelmente medieval, e o cenário não era uma abadia em Itália, mas a Sé de Lisboa.

Um enigma histórico que começou nas redes sociais

No passado dia 18 de março, uma página de Facebook e Instagram dedicada à arte medieval portuguesa, Idade Média POP (página da responsabilidade da autora deste texto), lançava o aviso para o possível desaparecimento de uma cadeira-trono em pedra, numa publicação escrita à maneira de um anúncio de perdidos e achados: pela última vez vista na Sé de Lisboa, na primeira metade do século passado, o paradeiro de uma importante peça do património português estava por apurar. A publicação vinha acompanhada de uma aguarela pintada por Roque Gameiro, provavelmente de finais do século XIX, que nos dava o retrato da peça – teríamos de procurar por um trono em pedra, maciço, robusto, sem grande aparato decorativo, mas no entanto solene e imponente.

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Uma aguarela pintada por Roque Gameiro, provavelmente de finais do século XIX, que nos dava o retrato da peça que estaria guardada na Sé de Lisboa

O trono tinha a parte inferior fechada, sem braços, cirurgicamente geométrico nas suas formas; o espaldar ou encosto, retangular, tinha gravadas as armas reais portuguesas e uma data – 1629 –; no topo da zona das costas, três remates piramidais, já arredondados pelo tempo. Tal como é relatado nesta publicação, há três referências principais que ainda determinam a presença da cadeira no interior da Sé de Lisboa, todas proferidas por grandes autoridades da história portuguesa: Alexandre Herculano, Pinho Leal e Júlio de Castilho, respetivamente. Pelo que se pôde apurar durante esta investigação levada a cabo no Idade Média POP, depois do último avistamento do trono já no claustro em 1944 por Norberto de Araújo, há um silêncio nas menções feitas à peça e a cadeira de pedra parece perder-se.

Alexandre Herculano escreveu sobre o trono em 1846, na revista O Panorama, num tom de alerta que procurava chamar a atenção para esta peça de elevado valor patrimonial, mas que era desconhecida de muitos e que, também segundo o escritor, se encontrava ainda nas capelas afonsinas, à direita do altar-mor da igreja.

Gravura de autoria anónima, com data desconhecida, publicada no artigo da revista "O Panorama" 1846, assinado por Alexandre Herculano

Nova referência é feita ao trono em 1874, desta vez por Pinho Leal, nas páginas da sua obra corográfica Portugal antigo e moderno, volume quarto. Leal localiza a cátedra na entrada de um dos claustros (outra maneira de se referir às capelas radiantes do deambulatório da igreja), argumentando que parece ser “obra do tempo de D. Manuel, ou pouco anterior”. As armas reais já não seriam aquelas ali representadas durante esse ano e, por isso, 1629 será decerto o ano “da sua mudança para este logar”.

Júlio de Castilho, reputado olissipógrafo, volta a mencionar a cadeira pétrea no quinto volume da segunda edição do seu clássico Lisboa Antiga, republicando a gravura que saiu no artigo de Herculano para O Panorama. Aqui, a legenda da gravura esclarece que a cadeira de pedra que estava no deambulatório, tinha passado, à data de 1936, ao museu de obras do edifício da Sé.

“Aí, entre a porta e a capela do presépio, dá o visitante com uma rude cadeira, a expressão mais genuína da cadeira da idade de pedra, fauteuil desgracioso, que é, segundo se cré, uma preciosidade. Pregunta, e ninguém lhe sabe dizer coisa certa.”

Castilho lança novas hipóteses sobre o quando e o porquê da localização deste trono em pedra na igreja patriarcal, relembrando as conjeturas que Alexandre Herculano já tinha avançado. A tese de Herculano seria a de que a cátedra pétrea da Sé teria grande antiguidade, traçável talvez aos tempos românicos da igreja, e que serviria os monarcas quando ali se sentavam para comandarem audiências com o povo. Sobre essa prática medieval, Castilho cita D. Pedro, que se reunia com o povo “para o ouvir, para o estudar”, D. Fernando, que fazia o mesmo no alpendre da igreja de São Domingos, e Afonso V que, segundo a tradição dita, reunia com a população aquando das suas visitas ao mosteiro do Varatojo.

“Quem passar pela cadeira da Sé de Lisboa pode portanto vêr nela um símbolo do afecto dos nossos monarcas ao povo português.”

A tese de Castilho acerca daquele “enigma de pedra”, diverge, contudo, um pouco da de Herculano: nele, o olissipógrafo não via um trono régio, mas uma cátedra episcopal. Aliás, a localização antiga do trono de pedra da Sé, na mão direita do altar-mor, coaduna-se precisamente com a colocação tradicional das cadeiras cerimoniais dos bispos nos interiores das catedrais. Mas ninguém nos garante qual seria o posicionamento original daquela cathedra, tendo em conta a difícil história da catedral lisboeta, entre tantos terramotos, incêndios e campanhas construtivas.

Herculano, Pinho Leal e Castilho documentam a localização do trono junto ou dentro do altar-mor da catedral, antes de ter sido movido para o museu das obras da Sé, que ocupava as salas ogivais e alas do claustro, contendo diverso material lapidar.

Em suma, os três autores convergiram para a ancestralidade daquele trono, apontando para diferentes períodos da Idade Média portuguesa como possíveis datações para a peça. Todos mostraram igualmente alguma sintonia no reconhecimento da aura de mistério que envolve o trono de pedra da Sé de Lisboa: pouco ou nada se sabe sobre o mesmo, a sua origem, a sua função, a sua cronologia. Mas uma coisa é certa: para Herculano e Castilho, era não só urgente dar a conhecer aquela gema do património português, pelos corredores esquecida, como também valorizá-la e, mais que tudo, investigá-la.

Lançado o mistério nas redes sociais, e após algumas semanas de silêncio, surgiu uma pista. Um comentário do perfil oficial de Instagram da Sé de Lisboa foi adicionado à publicação do Idade Média POP sobre a presumivelmente desaparecida cadeira da Sé. Nele, lê-se:

“Esta cadeira tão especial não está perdida! Continua connosco, na @sedelisboa, mais propriamente numa das capelas do claustro. Esperamos que em breve todos possam revê-la”.

Mistério resolvido? Ainda não… No mesmo dia, outra página dedicada à história medieval, a Repensando a Idade Média, veio dar um importante contributo para toda esta trama: encontrada nos confins do site do Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (SIPA), estava uma imagem de 2008 do trono de pedra da Sé. A sua feição, no entanto, tinha mudado radicalmente e, talvez, irremediavelmente: de todo o trono, retratado em aguarela por Roque Gameiro e noutra gravura por um anónimo, a fotografia de 2008 mostrava que já só sobrava o espaldar, sujo e fragmentado num dos cantos inferiores. Herculano terá sido excessivamente otimista quando, n’O Panorama, escreveu:

“Lá está: escapou á invasão do camartelo devastador. Não se lembraram ainda d’aquella pedra para… para aproveita-la n’uma sacada de agua furtada, como aconteceu á lousa do conde Andeiro em S. Martinho; ou em suporto de carniça, como sucedeu ao templo de Diana em Evora (…)”.

Como já vimos, Herculano, Pinho Leal e Castilho documentam a localização do trono junto ou dentro do altar-mor da catedral, antes de ter sido movido para o museu das obras da Sé, que ocupava as salas ogivais e alas do claustro, contendo diverso material lapidar. Norberto de Araújo, em 1944, já vê a cadeira na ala oriental do claustro, no seu Inventário de Lisboa, fascículo 1. Há um momento em que o trono é movido para o claustro (está agora na capela de Nossa Senhora da Tocha), tendo de ser desmontado para o transportar, dada a dificuldade em levar um cadeirão maciço em pedra, inteiro, do centro da igreja para as alas claustrais. Desmontado e descontextualizado no meio de um incontável número de outras peças esculpidas também ali postas nos corredores do claustro, as restantes partes do trono – hoje desaparecidas – podem ter-se perdido no amontoado de material pétreo (será que ainda por ali estão?) ou terem mesmo sido aproveitadas para preencher uma qualquer parede, durante as campanhas profundas de obras e restauro que ocorriam na catedral ao longo do século XX.

Trono, cadeira, estadela: qual a função deste objeto durante a Idade Média?

Citando os administradores da página Repensando a Idade Média, que nos deram uma declaração: “Estamos perante um provável trono medieval dos reis de Portugal ou talvez dos bispos de Lisboa, com um valor patrimonial fantástico e raríssimo (…). Apesar de ser em pedra, junta-se às chamadas cadeiras de estado de D. Afonso V e do Bispo de Ceuta, ambas do século XV, e provavelmente mais tardias do que esta peça”. Por estas mesmas razões, é bizarro o desconhecimento geral que existe sobre este trono da Sé de Lisboa que, a ser medieval, será o único trono em pedra da Idade Média conhecido em todo o país. Como terá uma peça única e valiosa escapado à bibliografia sobre o mobiliário em Portugal e à quase totalidade da literatura que existe acerca da própria catedral? A maior parte das referências ao trono, que se contam pelos dedos das mãos, concentram-se entre meados do século XIX e os inícios do século XX.

Atualmente, o trono, reduzido ao seu espaldar, está encostado a uma parede na capela de Nossa Senhora da Tocha, perdido e anónimo no seio de um estaleiro movimentado

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Em Portugal, são raros os exemplares sobreviventes de mobiliário anteriores ao século XVII, sendo obrigatório recorrer a outros testemunhos artísticos para se encontrarem as pistas que procuramos quando se quer reconstituir o trono medieval. Carla Varela Fernandes, investigadora em arte medieval e especialista em escultura, cita exemplos na sua tese de doutoramento (2005): pormenores no túmulo românico de Rodrigo Sanches e nos sepulcros de D. Pedro e D. Inês de Castro contêm iconografia régia com o atributo do trono, insígnia real por excelência.

A cadeira, do grego káthedra e do latim cathedra, é desde o início da história um símbolo de autoridade e poder. A ligação semântica entre cathedra e catedral é evidente, bem como entre sede e Sé ou diocese, mas a associação simbólica é maior ainda – a cadeira é o símbolo do poder do bispo, onde este se senta para pregar ao seu rebanho, atributo da sua hierarquia eclesiástica, materialização literal e metafórica da sua autoridade na diocese. Esta simbologia da cadeira como posto do poder vem de tempos apostólicos: São Pedro, o apóstolo, a quem Jesus diz “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”, o primeiro papa da Igreja, segundo a tradição, tem uma festa celebrada em sua honra, até hoje, no dia 22 de fevereiro, dedicada à Cadeira de São Pedro.

A função social da cadeira adensa-se durante a Idade Média, formalizando-se uma verdadeira hierarquia dos assentos com base em valores de teor moral, político e económico e toda uma burocracia e etiqueta em torno da sua utilização. A cadeira estava no topo desta hierarquia e era reservada àqueles que ocupavam os mais altos cargos das elites. Augusto Cardoso Pinto, autor de Cadeiras portuguesas (1998), afirma que a cadeira foi “Considerado o assento honroso por excelência, o seu uso foi restringido durante séculos aos soberanos (…). Na côrte era o assento do rei; no palácio ou no castelo, o do senhor; na igreja ou no templo, o do prelado ou do supremo sacerdote; no tribunal ou na assembleia, o do magistrado; no lar, o do chefe de família.”

Não será também absurdo imaginar que o trono da Sé possuísse outros acessórios, úteis não só para melhorar o conforto de quem ali se sentava, mas também para enobrecer ainda mais o seu utilizador: esses poderiam ser um estrado para tornar mais alta a autoridade sentada no trono; uma plataforma para os pés, à qual se chama supedâneo; um dossel para o topo da cadeira; um estofo, para suavizar a fria e dura superfície da pedra.

Afonso V determinou as regras a seguir na sua capela, ordenando que “o assentamento dos Duques seus vassalos em sua capela, que fosse em bamco dereito, e nom atravessado, nem tevesem cadeira”. A rainha D. Catarina, regente em menoridade de D. Sebastião, organiza as regras relacionadas com os assentos nas cortes de Lisboa de 1562 para os bispos e arcebispo, condes, senhores, duques e marqueses, determinando toda uma ordem social com base nas nuances da forma e qualidade dos estofos, tipologias de assentos, qualidade da madeira, a sua colocação e a distância a que ficavam da rainha. Gil Vicente, no seu célebre Auto da Barca do Inferno, ironiza, em tom mordaz, estas práticas sociais, quando descreve uma cena em que um fidalgo chega à barca infernal acompanhado de um pajem que lhe levava a sua cadeira. A entrada de ambos é barrada pelo Diabo, que lhes diz:

“Tu, seu moço, vae-te d’hi,
Que a cadeira ca sobeja;
Cosa que estava na igreja
Não s’há de embarcar aqui,
Ca lh’a darão de marfi
Marchetada de dolores,

Com taes modos de lavores,
Que estara fora de si”

Assim, a cadeira reservava-se aos de maior influência, autoridade e poder, quer na esfera civil, quer na esfera eclesiástica. Em Portugal, além do trono da Sé de Lisboa, apenas se conhecem mais outros dois do período medieval, ambos em madeira. O trono dos bispos de Ceuta, da igreja de Santo Estêvão de Valença do Minho, e a dita estadela (i.e., cadeira de estado) de Afonso V, proveniente do mosteiro do Varatojo e atualmente no Museu Nacional de Arte Antiga, conservam ambos traços góticos, de acentuada verticalidade, com arabescos, remate em pináculos, uma estética inspirada na própria arquitectura do mesmo período. Outra lendária cadeira de pedra, mas de improvável origem medieval, é a de São Gens, localizada na ermida de Nossa Senhora do Monte, em Lisboa, que será, antes uma formação geológica natural que foi interpretada como cátedra de um bispo na hagiografia local.

Depois de um primeiro mistério resolvido, as novas perguntas sobre o trono

Sobre o trono da Sé de Lisboa, a chave deste mistério, mais dados podem ser avançados. Em pouco é semelhante às duas cadeiras góticas referidas, na sua feição atarracada, pétrea, austera na decoração. Apesar de atualmente incompleto, com base em outros exemplares, podemos hipotetizar sobre a possibilidade de, na caixa fechada onde está o seu assento, ter existido um cofre, à maneira da cadeira dos bispos de Ceuta, do Varatojo, e de tantos outros tronos medievais. Ali podiam guardar-se objetos preciosos ou documentos.

A heráldica ali gravada é indubitavelmente régia, o que permite supor que seria um monarca a usufruir do trono. Posto isto: teria o monarca um trono instalado na Sé de Lisboa?

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Após uma visita ao claustro da Sé de Lisboa, no decorrer da realização deste artigo, identificaram-se dois encaixes a meia altura do espaldar. Estes encaixes deveriam ser os dos braços da cadeira, tal como o tinha o trono românico da catedral de Girona (com acrescentos do século XIV), em muito semelhante à cátedra pétrea lisboeta, como já tinha defendido Carla Varela Fernandes na sua dissertação de doutoramento. O dito trono de São Pedro da Catedral de Castello, em Veneza, também medieval, apresenta mais semelhanças inegáveis com a cadeira de Lisboa, bem como os tronos de pedra de Canterbury, de Carlos Magno e a de Catedral de Canossa. Estas comparações vêm reforçar a tese da cronologia medieval do trono da Sé, bem como o facto de que os tronos de pedra são cedo abandonados.

Não será também absurdo imaginar que o trono da Sé possuísse outros acessórios, úteis não só para melhorar o conforto de quem ali se sentava, mas também para enobrecer ainda mais o seu utilizador: esses poderiam ser um estrado para tornar mais alta a autoridade sentada no trono; uma plataforma para os pés, à qual se chama supedâneo; um dossel para o topo da cadeira; um estofo, para suavizar a fria e dura superfície da pedra, cuja existência já parece evidenciada na mencionada gravura do cadeirão, publicada n’O Panorama.

Pouco se pode determinar sobre a sua cronologia, morfologia original, função e até proveniência. Levantam-se algumas dúvidas sobre se o cadeirão terá sempre pertencido à Sé de Lisboa, dado o silêncio por parte da documentação relativa à catedral acerca deste trono. Ana Paula Figueiredo, que escreve a sua tese de mestrado sobre o espólio artístico das capelas da Sé em 2000, não menciona a existência deste trono, apesar da exaustiva análise a arquivos documentais, levantamentos e inventários até ao século XX sobre o património da catedral. Desta maneira, não é de negar a hipótese de que a cadeira poderá ter sido feita para um outro lugar e tenha sido posteriormente levada para a igreja. Sobre a heráldica gravada no seu espaldar, Ana Paula Figueiredo esclarece que “pela forma como apresenta os escudos e o coronel, em vez da coroa, data de 1481 até 1557, altura em que D. Sebastião introduz uma alteração na coroa, que passa a fechada. O trono será, pois, de D. João II, D. Manuel ou D. João III.” Fecha-se, portanto, uma das incógnitas sobre o trono.

São boas notícias, portanto, em relação ao protagonista desta história de detectives, desenrolada nas redes sociais: ao trono ser-lhe-á devolvida alguma dignidade e passará, pelo menos, a ser conhecido do público, como nunca o foi até agora, devidamente musealizado e contextualizado.

Estão documentados casos de nobres que deixaram cadeiras em testamento a instituições eclesiásticas, como o fez o conde de Barcelos, D. Pedro, ao mosteiro de São João de Tarouca. Isto podia explicar a gravação de uma data na cadeira, com o sentido de assinalar o ano em que foi transportada. Há outras explicações para esta questão, como a de Alexandre Herculano, que defende que o ano de 1629 tenha sido o de um reparo feito à cadeira. Impõe-se a necessidade de análise da documentação de outras instituições em Lisboa, como o mosteiro de São Vicente de Fora, onde está o palácio patriarcal, cujas obras terminavam em 1629, a mesma data que tem o cadeirão da Sé.

Relativamente à utilização do trono por parte de uma autoridade do poder temporal ou do espiritual, seria lícito pensar que o cadeirão, a ser utilizado por um prelado, ostentaria as insígnias episcopais e não as de um monarca. A heráldica ali gravada é indubitavelmente régia, o que permite supor que seria um monarca a usufruir do trono. Posto isto: teria o monarca um trono instalado na Sé de Lisboa, para assistir a partir de posição privilegiada a cerimónias litúrgicas ou para realizar audiências com a população? Terá sido este trono um bem doado em testamento à catedral? E, como bem aponta Carla Varela Fernandes, a gravação posterior das armas reais no trono pode muito bem mostrar como existia a memória de que aquele objeto tivesse sido fruído por monarcas.

A Sé tem, historicamente, uma relação íntima com o poder régio. Afonso IV foi o primeiro monarca em Portugal a quebrar a tradição do enterramento em casas monásticas para se fazer sepultar numa catedral. Procurando ali instalar o seu túmulo e o da rainha, o monarca promoveu uma campanha de obras que criasse as condições para o enterramento régio e, como defendem diversos académicos, um panteão real na área mais nobre da Sé, dotando-a de um monumental altar-mor, limitado pelo corredor de circulação de onde nasciam as chamadas capelas reais ou afonsinas. Como defende Carla Varela Fernandes num artigo dedicado a este tema, Afonso IV quis intervir na Sé com o objetivo de glorificar a sua imagem e a sua memória, concentrando no altar-mor, onde ficaria o seu túmulo e o da rainha, o culto ao rei, a São Vicente, cujas relíquias ali repousavam desde 1173, e da própria Batalha do Salado, evento militar promovido como símbolo do triunfo cristão e nacional sobre o inimigo muçulmano.

O espólio pétreo do claustro, que já ali se encontrava antes das obras terem sido iniciadas, “irá ser objeto de limpeza e tratamento conservativo após a conclusão da obra"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Está documentada a acumulação pelo monarca de um espólio de objetos que eram testemunho da sua glória em vida junto ao seu sepulcro, sendo um deles a trompeta do rei de Granada, saqueada após a vitória dos portugueses na Batalha do Salado. Este e outros objetos foram expostos naquele espaço, agora convertido em lugar funerário e memorial do próprio rei. Terá sido também integrado neste conjunto de objetos propagandísticos um certo trono de pedra? Há ainda um selo camarário de Lisboa de 1346 que vale a pena referir. Se, numa das faces do selo, é iconografada a Sé de Lisboa, na outra mostra-se uma figura masculina num trono, coroada e com um globo, símbolo do poder régio. Este selo retrata uma cerimónia ocorrida na Sé, centrada nas relíquias de São Vicente e no rei Afonso IV, ali desempenhando o seu papel de rex et sacerdos.

Achámos relevante mencionar esta representação de um trono régio no interior da Sé de Lisboa, pois poderá documentar a existência de um trono real naquele edifício. Não será, por isso, absurdo imaginar na catedral de Lisboa, com o novo altar-mor, deambulatório e capelas reais, pertencentes à Casa Real, a presença de um trono régio que, se não tivesse existência utilitária para a realização de audiências ou participação na liturgia que, pelo menos, funcionasse ali como símbolo do poder real, mais um elemento no programa arquitetónico político projetado por Afonso IV.

O que nos diz o trono de pedra da Sé de Lisboa sobre o património em Portugal

Determinado, tanto quanto possível, o passado e história deste misterioso trono de pedra, contactámos a Direção Geral do Património Cultura (DGPC) para saber o seu futuro. Atualmente, o trono, reduzido ao seu espaldar, está encostado a uma parede na capela de Nossa Senhora da Tocha, perdido e anónimo no seio de um estaleiro movimentado e compreensivelmente caótico que está ali instalado no sentido de explorar arqueologicamente os vestígios que estão debaixo do solo do claustro dionisino da Sé. O espólio pétreo do claustro, que já ali se encontrava antes das obras terem sido iniciadas, “irá ser objeto de limpeza e tratamento conservativo após a conclusão da obra, para ser depois integrado em contexto expositivo deste claustro. No estudo que iremos fazer para a exposição desta e de outras peças no claustro da Sé serão ponderados todos os aspetos, exceto reconstituições hipotéticas sem fundamento.” São boas notícias, portanto, em relação ao protagonista desta história de detetives, desenrolada nas redes sociais: ao trono ser-lhe-á devolvida alguma dignidade e passará, pelo menos, a ser conhecido do público, como nunca o foi até agora, devidamente musealizado e contextualizado. Se será efetivamente reconstituído – restauro para o qual as duas ilustrações da cadeira de pedra serão extremamente úteis, mas talvez não suficientes –, as respostas da DGPC já não avançam com dados definitivos.

O trono da Sé, desconhecido do público, abandonado na catedral, descontextualizado, desmontado e esquecido numa das alas do claustro, fragmentado e sujo, é só mais um capítulo nesta história da relação do país com o seu património. Desta vez, e pelo menos isso é algo de bom nesta história, a trama desenvolveu-se de maneira diferente.

Esta história é certamente tão fascinante como o é o próprio trono, objeto único em Portugal, tanto mais por se ter desenvolvido em tempo real na internet; mas, apesar do trono ser único, estes episódios do património português não o são. No próprio cenário da trama do trono de pedra houve, há pouco tempo, cenas com contornos bizarramente semelhantes: quando se noticiou o aparecimento, na Sé de Lisboa, de novas estruturas postas a descoberto durante as escavações arqueológicas do claustro, as quais podiam indiciar a existência da antiga mesquita da cidade, surgiu a ameaça de desmantelamento desses vestígios, acusações atiradas para cima da DGPC. Uns meses antes, chegou ao conhecimento do público geral a destruição de uma anta no Alentejo para exploração de amendoal.

Por outro lado, também já estamos bem habituados a restauros polémicos e à realidade da negligência do património português, por vezes apontada como um traço da própria personalidade cultural nacional, já documentada desde há séculos. O Culto da Arte em Portugal, de Ramalho Ortigão, escrito em finais do século XIX, é dos exposés mais difíceis de ler sobre esta mesma fraqueza do povo português. O trono da Sé, desconhecido do público, abandonado na catedral, descontextualizado, desmontado e esquecido numa das alas do claustro, fragmentado e sujo, é só mais um capítulo nesta história da relação do país com o seu património. Desta vez, e pelo menos isso é algo de bom nesta história, a trama desenvolveu-se de maneira diferente. Afinal, parece, a internet e as novas tecnologias podem ser motores para as disciplinas do passado – neste caso, a história e a história da arte medievais – e trazer respostas a perguntas que, aparentemente, nunca chegariam a ser resolvidas até porque ainda não tinham sido colocadas.

Inês Abreu é autora do projeto Idade Média POP, dedicado à criação de conteúdos sobre património medieval português. Licenciada em História de Arte, prepara a dissertação de mestrado sobre escultura medieval portuguesa

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