Hospitais com poucos recursos, com métodos “rudimentares” e uma medicina “autoritária”, em que os doentes — os que tinham acesso a ela — não tinham uma voz. Foi com este cenário que Maria Guilhermina Aleixo, enfermeira chefe no serviço de Consulta Externa e Oncologia Médica do Hospital Dr. José Maria Grande, em Portalegre, e Jorge Portugal, diretor do Serviço de Endocrinologia do Hospital Garcia de Orta, em Lisboa, se depararam quando começaram a trabalhar, há mais de quatro décadas. O Serviço Nacional de Saúde, que celebra este dia 15 de setembro 40 anos, só chegou depois.
A 15 de setembro de 1979, Maria Guilhermina “provavelmente estava a trabalhar”. Aos 20 anos, tinha começado a exercer funções no Serviço de Pediatria do, na altura, Hospital Distrital de Portalegre, pouco mais de um ano antes — e trabalhava 48 horas por semana. Jorge Portugal, que tinha começado a trabalhar em 1975 no Hospital de Santa Maria, estava no Alentejo desde o início de 1978, no Serviço Médico à Periferia, que descreve como tendo sido “uma base fundamental do Serviço Nacional de Saúde” e no qual podia “prestar atenção aos doentes, saber o que faziam de medicação, o que estava a mais, o que faltava”. “Foi o melhor ano de medicina da minha vida”, recorda.
A ambos fizemos sete perguntas sobre como foram os últimos 4o anos. Médico e enfermeira reconhecem que muito mudou nos seus trabalhos e fazem um “balanço positivo” do SNS, mas dizem que algumas coisas mudaram para pior e que outras continuam por fazer.
O que mudou no seu trabalho com implementação do SNS?
Jorge Portugal
Médico, 68 anos
“O SNS é das conquistas maiores do 25 de Abril: uma saúde digna para todos, com igualdade de acesso, gratuita — ou tendencialmente gratuita. A minha geração apostou imenso nesse tipo de medicina, de diálogo com o doente, de pôr o doente ao nosso nível e não o ter como um ser que tinha de receber ordens. Com o SNS, acho que os utentes aprenderam a falar: a expor as suas questões, a não concordar com terapêuticas dos médicos. Houve uma educação para a saúde que foi exemplar e tem feito do SNS, agora que estamos em 2019, uma conquista de Abril. A pouco e pouco, tem havido uma consciencialização da população em relação a um direito que têm, que é saúde gratuita. Ou tendencialmente gratuita.
Maria Guilhermina Aleixo
Enfermeira, 61 anos
“Não posso dizer que, em 1979, com a implementação do SNS, tenha havido um boom de melhorias. Foi uma coisa progressiva, não sei se foi logo nesse ano, mas passámos de 48 para 40 horas. Nós, enfermeiros, não ganhávamos mais por fazer o horário rotativo. Comecei a ganhar 11 contos e 700 escudos e, já depois de 1979, mesmo fazendo três ou quatro noites, o ordenado era sempre o mesmo. Depois de algum tempo, começámos a ganhar 150 escudos para cada noite que fazíamos e, mais tarde, começámos a ganhar as tardes e as noites já [como] uma percentagem do vencimento. Os registos de enfermagem eram muito rudimentares. Até 1982, 1983, eram feitos em livros de ocorrências — o que se passava naquele turno –, não eram os chamados registos. Eram genéricos e não tinham elementos muito específicos de cada doente. Só depois disso se começou a fazer os registos nos processos dos doentes. A autonomia dos enfermeiros também foi melhorando. Passámos a ter objetivos definidos para cada doente, por exemplo. A carreira também era muito rudimentar e foi sendo alterada. Começamos a ter uma carreira estruturada, com uma área de prestação de cuidados, uma área de especialização — cuidados diferenciados — e outra de gestão, com a criação do enfermeiro chefe e o enfermeiro supervisor.
Quais eram os maiores problemas há 40 anos?
Maria Guilhermina Aleixo
Enfermeira, 61 anos
“Muitos doentes nas enfermarias, com um número reduzido de enfermeiros e sem médico de prevenção. Tudo o que era feito àquele doente — no meu caso, àquela criança — tinha muito a ver com decisões que eu tinha de tomar. Naquela altura, para nós profissionais de enfermagem, havia riscos e, portanto, a nossa dinâmica era de uma constante vigilância, uma constante observação.
Jorge Portugal
Médico, 68 anos
“Antes de haver Serviço Médico à Periferia, [um dos maiores problemas] era não haver uma medicina de qualidade a nível das periferias. Por exemplo, nós escolhíamos o Alentejo porque era uma zona da reforma agrária, que estava muito politizada, muito consciente das suas reivindicações, do seu direito ao trabalho e do seu direito à saúde também.
E o que era melhor em 1979?
Maria Guilhermina Aleixo
Enfermeira, 61 anos
“Há 40 anos, os grupos eram muito profissionais. Eram médicos, enfermeiros, auxiliares — hoje são assistentes operacionais — e administrativos. Atualmente, nas instituições de saúde, o grupo é muito maior e tem pessoas que não são pessoas técnicas, que estão em lugares de gestão e que, muitas vezes, tornam o SNS muito complicado e burocrático. Para mim, está a haver alguma regressão em termos de carreira de enfermagem. Há pessoas que estão na gestão de departamentos, mas que muitas vezes não têm conhecimentos. Estão nesses lugares não por concurso — foram nomeadas —, o que leva a que, por vezes, as coisas sejam difíceis.
Jorge Portugal
Médico, 68 anos
“Não consigo identificar nada que fosse melhor há 40 anos. Podia haver médicos excelentes a nível dos hospitais e até a nível das comunidades, mas eram exceções. A medicina que se praticava era uma medicina de pouca qualidade e, sobretudo, uma medicina que me atreveria a chamar de autoritária.
O que mudou para melhor?
Jorge Portugal
Médico, 68 anos
“Eu hoje, cidadão anónimo, tenho um centro de saúde e tenho um médico de família que tem obrigação de me ver no meu todo. A Medicina Geral e Familiar é a medicina mais importante do contexto do Serviço Nacional de Saúde, porque são os médicos que veem as pessoas no seu contexto familiar, laboral e que sabem, depois, a quem encaminhar para os especialistas ou para os hospitais para coisas mais específicas. Não digo que seja a única coisa, mas é das coisas mais importantes do SNS. O médico de família consegue resolver 90% dos problemas dos doentes. Os hospitais e os especialistas são para situações pontuais. E não estou a menosprezar a importância dos endocrinologistas, por exemplo, ou de outras especialidades. Todos têm cabimento, mas cada um na sua área e na sua vertente.
Maria Guilhermina Aleixo
Enfermeira, 61 anos
“Além do que já foi dito, em termos de recursos, quer a nível médico — ter alguém de prevenção ou de presença física –, quer a nível de enfermagem, melhorou sem dúvida nenhuma. Em 1978, 1979, as equipas eram muito reduzidas. No turno da manhã e da tarde, na pediatria, éramos dois enfermeiros e, no turno da noite, estava um enfermeiro sozinho para pediatria e neonatologia. Os recursos eram muito escassos e isso começou a melhorar ao longo do tempo.
E o que mudou para pior?
Maria Guilhermina Aleixo
Enfermeira, 61 anos
“No que toca a recursos materiais dos serviços, as coisas estão piores. Hoje em dia, faço um pedido e não é satisfeito, esses pedidos estão sempre à espera de verbas. Percebo que haja alguma dificuldade em termos de gestão financeira. Gerir hoje uma instituição de saúde não é a mesma coisa que há 30 ou 40 anos, mas, por vezes, temos equipamento extremamente deficitário e extremamente obsoleto e não obtemos resposta.
Jorge Portugal
Médico, 68 anos
“Neste momento, a fragilidade do SNS é não conseguir dar resposta a todas as solicitações dos utentes. Há listas de espera grandes em determinadas especialidades e o Ministério da Saúde tem que enviar doentes para instituições privadas. Acho que não devia haver qualquer relação entre a medicina estatal e a medicina privada. A medicina privada devia ser para quem tem dinheiro, para quem tem seguros de saúde, para quem quer medicina privada. O resto das pessoas deviam ter acesso e ter consultas em tempo útil no SNS e isso não se está a verificar.
Do que tem saudades?
Jorge Portugal
Médico, 68 anos
“O espírito de equipa. É uma coisa fundamental e tem vindo lentamente a cair. Felizmente, no meu serviço mantém-se e é por isso que continuo a trabalhar, já podendo estar reformado. Gosto muito do meu serviço, dos colegas que trabalham comigo. Somos uma equipa muito coesa.
Maria Guilhermina Aleixo
Enfermeira, 61 anos
“Tenho muitas saudades da partilha que existia nas reuniões da comissão de enfermagem, do tempo em que nos reuníamos mensalmente, em que expúnhamos os nossos problemas e tentávamos resolver as coisas. Tudo muito mais em uníssono. Agora, a dimensão é muito maior — já não é um hospital, já é uma Unidade Local de Saúde Norte Alentejano (ULSNA), que tem dois hospitais e 16 centros de saúde –, o diálogo pode tornar-se difícil e, às vezes, os poderes instituídos são complicados.
Se pudesse, o que mudava no SNS?
Jorge Portugal
Médico, 68 anos
“Clarificar águas. Todo o investimento era nos serviços públicos e a privada deixava de ter as pessoas com ADSE. Contra mim falo, porque os funcionários públicos têm ADSE e pagamos taxas moderadoras mais baixas nos serviços privados, o que é uma coisa perversa. A ideia é privilegiar o orçamento estatal dos hospitais públicos. E os hospitais privados viviam dos privados.
Maria Guilhermina Aleixo
Enfermeira, 61 anos
“Há uma coisa que acho chave: hoje em dia, o SNS só mostra quadros e números e, naqueles números, não interessa se houve qualidade naquelas consultas, se houve qualidade naqueles exames, se houve qualidade naquele número de doentes que teve alta ou que não teve. É muito de quantidade e não está espelhada a qualidade. Eu mudava isso, seguramente.