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O ano de 2020 mal tinha começado quando o Presidente Donald Trump fez um anúncio de peso: “A noite passada, por ordem minha, o Exército dos Estados Unidos executou um ataque preciso e sem falhas que matou o terrorista mais procurado em todo o mundo: Qasem Soleimani.”
Soleimani era o chefe das Forças Quds, o ramo da Guarda Revolucionária iraniana responsável pelas principais operações militares e clandestinas do regime fora do seu território. Na prática, Soleimani controlava a relação com os grupos armados próximos de Teerão, como o Hezbollah e o Hamas, e dirigia todas as ações de espionagem do Irão. Mas era muito mais do que isso: para muitos, era visto como o braço direito do ayatollah Khamenei, líder supremo do país.
Quem é Qassem Soleimani, o general de elite do Irão morto pelos EUA?
Durante semanas, o mundo tremeu, com receio de qual poderia ser a resposta de Teerão e se um conflito aberto poderia estar mais próximo. O regime persa fez várias ameaças. Mas, na prática, nenhuma ação militar de peso se concretizou.
Este acontecimento parece não ter qualquer relação com o que aconteceu este fim de semana nos Emirados Árabes Unidos, onde foi encontrado morto o rabino israelita Zvi Kogan. E, no entanto, pode ter tudo a ver: pode ser a ponta do icebergue de uma política de assassinatos seletivos por parte de Teerão, que se intensificou desde a morte de Soleimani. E que agora acontece num país do Médio Oriente, numa altura em que toda a região está em ebulição.
“Estão ativamente a tentar raptar e matar pessoas.” As operações de Teerão contra dissidentes, inimigos e judeus
Kogan — representante do movimento Chaban, que dá apoio a judeus em comunidades fora de Israel — vivia no Dubai, onde mantinha um supermercado kosher e exercia como rabino da comunidade judaica local. Na quinta-feira, não apareceu a um encontro marcado. Quando a mulher soube, contactou as autoridades. No domingo, o corpo de Kogan foi encontrado dentro do seu próprio carro, na cidade de Al-Ain, a hora e meia de distância da sua casa (num local já próximo da fronteira com o Omã).
A Mossad (secretas israelitas), que terão sido contactadas para auxiliar na investigação, rapidamente apontaram a mira a três cidadãos uzbeques, que estariam a seguir o rabino. Nos dias seguintes, três homens do Uzbequistão — Olimpi Tohirovic, Mahmoud Abdul Rahim e Azizi Kamilovic — eram detidos na Turquia e rapidamente deportados para os Emirados, onde ficaram presos como principais suspeitos do homicídio.
Oficialmente, o governo israelita denunciou um “crime antissemita”, mas não apontou dedos. Porém, fontes das secretas do país apressaram-se a sublinhar aos jornais que não é a primeira vez que o Irão recorre a cidadãos uzbeques para executar homicídios políticos — implicando assim, indiretamente, Teerão.
É cedo para dizer se foi esse o caso, mas não há dúvidas de que o Irão tem um programa de assassinatos seletivos que tem levado a cabo ao longo dos anos, um pouco por tudo o mundo, e que se tem intensificado nos últimos tempos. “Desde 2020, o Irão intensificou dramaticamente o planeamento de ações letais contra ex-responsáveis norte-americanos, dissidentes iranianos e os interesses judaicos e israelitas nos Estados Unidos e por todo o mundo”, resume Brett Holmgren, diretor do Centro Nacional de Contraterrorismo norte-americano.
“Eles não estão apenas a recolher informação para poderem raptar e matar as pessoas se quiserem vir a fazê-lo. Estão ativamente a tentar raptar e matar pessoas“, resumia já há dois anos, ao Washington Post, o responsável de contraterrorismo norte-americano Matthew Levitt.
O próprio é autor de um relatório dessa mesma altura que se debruçava sobre o tipo de operações levadas a cabo pelo Irão neste domínio e que as dividia em quatro grande objetivos:
- Eliminar dissidentes do regime (iranianos ou estrangeiros);
- Levar a cabo a execução de fatwas religiosas;
- Atacar figuras vistas como inimigas do regime;
- Atacar judeus.
Todo este tipo de operações, garantia Levitt, estavam a aumentar.
Os media iam dando conta de algumas delas. No final de 2022, o MI5 lançou o alerta de que o Irão estaria a tentar raptar ou matar 10 pessoas no Reino Unido, pedindo assistência da Interpol para monitorizar a situação. A grande maioria seriam jornalistas que trabalhavam em Londres para órgãos como a edição persa da BBC ou o site Iran International, quer iranianos, quer estrangeiros. Todos eram vistos como inimigos do regime. Em março deste ano, os avisos ganharam outros contornos: Pouria Zeraati, jornalista do Iran International, foi atacado na sua casa na capital britânica, por homens armados com facas. Acabou por sobreviver, mas decidiu sair do Reino Unido por medo — e não revela agora em que país se encontra.
Quanto ao segundo tipo de operações, para executar fatwas, nenhum caso é mais famoso do que o do escritor Salman Rushdie, alvo de uma sentença de morte decretada por um imã pelo seu livro Os Versículos Satânicos. Ao longo do tempo, vários “lobos solitários” tentaram matar pessoas a propósito de fatwas e Rushdie não foi exceção: em 2022, foi alvo de um ataque violento num festival literário que o fez perder um olho. O atacante, Hadi Matar, está acusado de ter ligações ao Hezbollah. O grupo executa muitas das operações do interesse de Teerão por todo o mundo — nem sempre de forma coordenada com o regime.
No que diz respeito à eliminação de inimigos, o caso mais evidente são as alegadas tentativas de assassinar políticos ligados à administração Trump — e, mais recentemente, segundo a CNN, o próprio Presidente, durante esta campanha presidencial. O Irão nega ter qualquer plano nesse sentido, retratado na notícia como sendo uma “vingança direta” pela morte de Soleimani. Mas, o que é certo, é que várias pessoas estão a ser investigadas nos Estados Unidos por suspeita de envolvimento para tentar matar John Bolton (conselheiro de segurança de Trump à altura) e Mike Pompeo (secretário de Estado à altura). O Departamento de Justiça norte-americano liga diretamente os dois casos a Teerão.
Da Colômbia à Grécia, de empresários anónimos a Bernard Henri-Lévy: as tentativas iranianas de assassinar judeus
O quarto tipo de assassinato seletivo ligado ao Irão pode ser precisamente aquele em que se inclui o homicídio do rabino Zvi Kogan: o de matar israelitas e até judeus no geral, um pouco por todo o mundo.
Desde 2020, esse tipo de ataque tem vindo a aumentar — pelo menos seis dos ataques planeados pelo Irão em solo europeu tinham como alvo judeus, nota uma investigação da agência Reuters. A grande maioria tem sido executada não por membros da Guarda Revolucionária ou das secretas iranianas, mas sim por cidadãos com dupla nacionalidade (iraniana e outra) ou por estrangeiros, a maioria contratados.
Os casos são vários. Em 2021, as autoridades colombianas, em parceria com a Mossad, evitaram o que dizem ter sido uma tentativa de assassinato do Hezbollah a um empresário israelita em Bogotá. No ano seguinte, a Turquia deteve cinco iranianos, suspeitos de planearem ataques contra israelitas em Istambul. No final de 2023, as autoridades no Chipre — mais uma vez com o apoio da Mossad —, desmontaram uma operação alegadamente iraniana, que tinha como alvo dois empresários israelitas. A rede que estava a preparar o ataque seria paquistanesa. Também no ano passado, um paquistanês que teria como alvo uma sinagoga e um centro judaico em Atenas foi impedido de avançar com o plano de ataque para matar judeus.
Ao longo deste ano — com a tensão entre Irão e Israel em níveis máximos na sequência da guerra em Gaza — duas pessoas foram judicialmente acusadas em França, por suspeitas de envolvimento num plano iraniano para matar israelitas em França e na Alemanha. “Desde 2015 que os serviços iranianos retomaram uma política de assassinatos seletivos”, alertou à altura a Diretoria-Geral de Segurança Interna de França. “A ameaça agravou-se no contexto da guerra entre Israel e o Hamas”.
Segundo uma investigação do Washington Post de 2022, um cidadão francês também foi alvo de uma operação para ser eliminado: trata-se de Bernard-Henri Lévy, conhecido intelectual francês, que seria alvo de um traficante de droga iraniano contratado pelas Forças Quds pelo valor de 150 mil dólares.
Mais recentemente, os ataques estenderam-se ao próprio território de Israel. Em outubro deste ano, a agência de segurança Shin Bet anunciou ter detido sete israelitas em Jerusalém Oriental que estariam a recolher informação para assassinar um cientista e um autarca do país. Um deles, de origem ucraniana, teria aceitado matar o cientista pelo valor de 100 mil dólares.
Grupos criminosos como os Hell’s Angels e os Rumba funcionam como assassinos a soldo. Mas não os considerem “um plano B”
O recurso a cidadãos estrangeiros para levarem a cabo assassinatos a troco de dinheiro começa a tornar-se o modus operandi de Teerão. No levantamento de 2022 de Matthew Levitt, sublinhava-se que “as tentativas de assassinato que ocorreram antes de 2011 eram tipicamente levadas a cabo por operativos iranianos”; desde então “é habitual serem usadas pessoas do local, cidadãos com dupla nacionalidade ou criminosos“.
O recurso a grupos criminosos que podem servir como assassinos a soldo é crescente. Membros do gangue Hell’s Angels terão estado envolvidos em operações lideradas por Teerão nos Estados Unidos e na Alemanha, por exemplo. Na Suécia, as autoridades confirmaram que suspeitam da colaboração entre dois dos principais grupos criminosos a atuarem no país — o Foxtrot e o Rumba — e o Irão.
Também no caso da tentativa de rapto e homicídio (entretanto travada) da ativista Masih Alinejad, nos EUA, os suspeitos serão membros de uma organização criminosa do leste da Europa. Os três — Rafat Amirov, Polad Omarov e Khalid Mehdiyev — estão atualmente detidos a aguarda julgamento.
O facto de Teerão recorrer crescentemente a grupos criminosos para executar os seus planos pode parecer limitar, por um lado, a eficácia dos ataques — a grande maioria dos casos referidos foram prevenidos ou travados a tempo pelas autoridades dos respetivos países. O contraste com a Mossad, por exemplo — que tem a sua própria política de assassinatos seletivos levada a cabo por uma organização treinada, formada e coesa — é claro.
A nova operação de assassinatos seletivos da Mossad movida a “vingança”
Mas isso não significa que esta seja uma estratégia falhada por parte do Irão, alerta Norm Roule, antigo analista da CIA especializado no Irão: “Pensar que o Irão está a atribuir as operações letais a uma ‘Equipa B’ é não perceber a utilidade de usar atores não-oficiais”, disse o antigo membro das secretas norte-americanas à NBC. “Os operativos não oficiais, que não têm qualquer historial de ligação ao Irão, são mais difíceis de identificar.” O número real de operações em marcha pode, por isso, ser muito maior.
Os Emirados “neutrais” temem o impacto da morte de um israelita no seu território — que pode alastrar-se a toda a região
A morte do rabino Zvi Kogan colocou o foco neste tipo de operações por parte de Teerão, mas pode ter consequências que vão muito além das várias tentativas travadas na Europa ou nos Estados Unidos. É que, a confirmar-se que os uzbeques detidos agiram a mando do Irão, o homicídio, desta vez, ocorreu num país do Médio Oriente que ocupa uma posição delicada na região: os Emirados Árabes Unidos.
Em 2020, o país oficializou relações diplomáticas com Israel, naquilo que ficou conhecido como os Acordos de Abrãao e que pareceram preconizar a aproximação da gigante Arábia Saudita a Israel — processo esse que ficou suspenso com o ataque do Hamas e a subsequente guerra em Gaza. Da mesma forma, os Emirados arrefeceram as relações com Telavive, apesar de continuarem a permitir a abertura do país a cidadãos israelitas, que se têm tornado numa comunidade crescente em cidades como Abu Dhabi e o Dubai (serão dois mil ao todo, a grande maioria judeus).
Por outro lado, apesar de nos últimos anos também terem melhorado as relações diplomáticas com o Irão, não nutrem qualquer simpatia por uma potência com ambições regionais que é islâmica, mas do ramo xiita (os Emirados são uma monarquia sunita). Os dois países, aliás, defrontaram-se de forma indireta no Iémen, com Abu Dhabi a fazer parte da coligação saudita contra os Houthis, apoiados por Teerão.
Portanto, o país vai dando uma no cravo e outra na ferradura, tentando não hostilizar nenhum dos atores regionais diretamente. Uma estratégia que, para o analista do Centro de Política Global Kamran Bokhari, é “ambiciosa”. “Os Emirados têm de gerir ao mesmo tempo muitos atores, cada um com o seu conjunto de expectativas. Numa situação destas, há muita coisa que pode correr mal e, a longo prazo, não é possível mantê-la.”
Desde que a guerra em Gaza rebentou, a situação agravou-se ainda mais para o pequeno reino do Golfo, que quer manter solidariedade com os palestinianos, mas não quer hostilizar Israel — e também não quer provocar o vizinho gigante Irão. Em outubro, vários representantes dos Estados da península terão reforçado a Teerão que se mantêm “neutrais”, revelou a Reuters, com receio de que as suas explorações petrolíferas possam vir a ser atacadas em caso de escalada militar na região.
Mas agora, com a morte de um cidadãos israelita no seu território, o xeque Mohamed bin Zayed quer assegurar a Telavive que não está com Teerão. Ainda para mais porque, devido à sua posição na região, necessita de manter o apoio da próxima administração norte-americana, que se antecipa como fortemente pró-Israel.
Jason Greenblatt, antigo enviado do primeiro mandato de Trump para o Médio Oriente, estava nos Emirados quando saiu a notícia da morte do rabino e garantiu que os locais estavam “zangados” com o que aconteceu. “Os emiratis abominam este tipo de comportamento. É claro que, neste momento, pode ser desconfortável ser-se abertamente judeu ou israelita [no país], tendo em conta o que aconteceu. Mas não por causa dos emiratis”, garantiu, dizendo que crê que isto pode até reforçar os Acordos de Abrãao, assinados em 2020.
Para já, Abu Dhabi não confirmou a possível ligação dos três uzbeques detidos ao Irão. Mas o Ministério do Interior sublinhou a sua rápida detenção e já deu garantias de que tudo fará para investigar e punir os responsáveis: “Rejeitamos qualquer ameaça à segurança da nossa sociedade”, declarou o Ministério. Questionado pela agência de notícias Jewish News Syndicate se poderia garantir a segurança dos judeus que vivem no seu país, o gabinete respondeu que “os Emirados Árabes Unidos e as suas instituições estão totalmente comprometidos em garantir a segurança dos seus cidadãos, residentes e visitantes”.