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Para tentarmos perceber o Festival da Canção de 2020, temos de recuar até 1994, quando John Travolta estava nas bocas do mundo com o seu papel em “Pulp Fiction”. O ator já tinha sido pertinente no início de carreira, depois passou a kitsch, depois andou ali uns tempos no ranço do esquecimento. Mas com o filme de Tarantino, tudo parecia ter mudado – o mundo ia ser dele, finalmente. Mas do cume foi-se descendo, uns filmes de ação manhosos e umas opções questionáveis depois e o único ´Óscar óbvio no trajeto de Travolta é o jardineiro da sucursal da igreja Cientologista mais próxima. Aquele auge ali no meio foi só para enganar. E é assim que também está a história de Portugal e da sua relevância na Eurovisão: depois de “Pulp Salvador”, o que é que ainda andamos aqui a fazer? Valerá a pena?

É sem sabermos muito bem se tudo isto faz sentido que chegamos ao Festival da Canção 2020 (ler vinte-vinte, que agora é assim que se faz).  Esta primeira semifinal marca o tom: não há tom. Se fizerem o jogo de beber um shot de cada vez que alguém diz a palavra “diversidade” vão eutanasiar depressa o vosso fígado. Olhando para o naipe de oito selecionados (os primeiros num universo de 16, que se completa no próximo sábado), fica patente que Portugal pode ser tudo na sua participação deste ano no certame europeu. Ainda não decidimos se queremos ser malucos ou sóbrios, se vamos em modernos ou em clássicos, em vestidinho preto ou em unicórnio de glitter. Sabemos apenas que o Festival da Canção é um importante Instituto de Emprego para malta que veio do The Voice, o que genuinamente já não é nada mau.

Esta indecisão entre ser uma coisa ou o seu oposto nota-se também no Festival da Canção enquanto programa televisivo. Tem Jorge Gabriel a ser 1987 de fato, mas também tem Inês Lopes Gonçalves a ser fresca e original. Tem todas as músicas no Youtube e no Spotify, mas também fazem questão de ainda lançar um CD com todos os nomeados, credo (genuína curiosidade sobre quem compra isso, descartando à partida familiares mais séniores dos próprios concorrentes). Tem baladas de amor clássicas, mas também tem aquelas performances que vão fazer conservadores algures queixarem-se do clássico “andam a gastar os meus impostos com isto”, como se fosse uma rotunda inútil. Tem todos os tiques de todos os festivais desde sempre, mas também sabe que aquilo que der memes para redes sociais vai bombar muito mais.

Entre o palco e as idas a bastidores (que insistimos em chamar de Green Room, porque aparentemente somos todos a Ellen), fica patente o bom ambiente entre os concorrentes. Assim se vê que estão ali todos não tanto para vencer, mas porque há poucas oportunidades em Portugal de se darem a conhecer a uma potencial audiência mais vasta: há mais camaradagem do que competição, uma espécie de Rua Sésamo de boas intenções ou invés de um novela mexicana de traição e drama que seria muito mais sumarenta para a minha alma cínica. É mais importante conquistar um público do que conquistar uma estatueta de acrílico e um voo low cost até à Holanda. Toda a gente valoriza é a experiência, toda a gente está numa galhofa que às vezes quase desrespeita o trabalho da apresentadora ali de plantão. É um Big Brother ATL para músicos e só quem está lá dentro é que percebe. Inspirador, sem dúvida, mas também paradigmático de que não está assim tanto em jogo.

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Cada canção é antecedida de um vídeo com os concorrentes e os respetivos compositores a explorarem a panóplia de atividades disponíveis em Elvas, cidade escolhida para a grande final. Não sei se a correspondência entre os músicos e o respetivo afazer lúdico foi feita por recurso a pedra/papel/tesoura ou se houve alguma intenção metafórica consciente, mas claramente uns tiveram a sorte de ir andar de barco com ar de lordes e outros são postos a coser capotes como se trabalhassem numa fábrica da Primark no Bangladesh.

Mas vamos às músicas, nem que seja porque temos de fingir que é a parte mais importante.

Meera

“Copo de Gin”

Se a La Roux tivessem uma versão em medicamento genérico sem receita seria mais ou menos assim. A canção é ironicamente como os rooftops com copos de gin demasiado caros: não é desagradável, mas também não é memorável e parece que já estivemos ali antes (se não estivemos, era um sítio muito parecido). Pontos extra por a vocalista  Cecília Costa conseguir cantar enquanto toca bateria, algo mais impressionante do que rimar “copo de gin” com “quero-te ver assim”.

Filipe Sambado

“Gerbera Amarela do Sul”

Que Sambado vai ser uma das figuras a marcar a música portuguesa em 2020 (voltaram a ler vinte-vinte?) já poucos especialistas na matéria duvidam. Mas aqui está claramente para garantir a cota Conan Osíris desta noite. Uma figura andrógena, com alta componente cénica, que vai dividir tanto opiniões que devia ir a referendo. Soa a Vitorino cantado pelo Variações, com os figurinos do Black Swan e um nome de música que podia ser da Mafalda Veiga. Não se percebe se há frete ou orgulho por estar ali, mas vou sempre defender quem mencione numa letra essa instituição que é a “roupa de ir para a praia”.

Ian Mucznik

“O Dia de Amanhã”

Há uma diferença entre ser old school e parecer o António Calvário e não estou certa que aqui tenham acertado no lado certo dessa divisão. Mas o problema maior é mesmo tudo isto me lembrar um bar de karaoke ao qual eu ia na Rinchoa porque fazia um ótimo chouriço assado (true story). Deu uma boa pausa para ir ao site das Finanças validar faturas.

Bárbara Tinoco

“Passe-Partout”

A favorita da noite, campeã na lista de tendências nacionais do Youtube, mais de 580 mil visualizações. Com um look “Lalaland”, arrisca-se a ganhar e depois afinal ser um envelope trocado e o grande vencedor da noite serem os D’zrt. Soa de tal maneira a música parisiense que uma pessoa dá por si a culpar a sacana da gentrificação.

Blasted Mechanism

“Rebellion”

Vi várias vezes os Blasted ao vivo quando tinha 16, 17 anos. E por isso não sei muito bem lidar com isto. Porque é que uma banda tão experiente soa a um grupo de bar da Terrugem? E porque é que estão vestidos com os fatos sobraram na Mascarilha, que depois do raid do Carnaval ficou tudo muito escolhido? Lá ao fundo, ainda oiço alguns acordes da minha adolescência, só que eu hoje em dia tenho 38 anos e um crédito habitação para pagar.

Elisa

“Medo de Sentir”

É uma balada bonita e bem cantada, à qual falta talvez que a música exploda ali num full blown Mariah Carey. Não sei se ganha um festival, mas pode ser que um dia apareça na telenovela “Nazaré” numa cena muito linda com duas pessoas a sorverem da boca uma da outra.

JJaZZ

“Agora”

A minha primeira reacção foi olhar para o vestido e casaco a condizer e achar que pareciam de um cortejo infantil subordinado ao tema reciclagem. Não estava longe da verdade – eram feitos de plástico que iria para o lixo – mas como eu tenho o fashion sense de uma esfregona da loiça só depois percebi que eram do Dino Alves.  De resto, pareceu tudo um daqueles buffets de self service onde metemos no mesmo prato camarão, bife de cebolada e umas farófias: há uma harpa que mal se ouve, há um come back do penteado dos Tokio Hotel e há um Rui Pregal da Cunha mal empregado por estar a ser usado só para pegar num megafone. A canção é sobre a superficialidade dos bens materiais, o que é super luta de classes e nos devia fazer ganhar logo 12 pontos da Rússia.

Throes + The Shine

“Movimento”

Admito que foi a minha preferida, até porque eu sou uma cachopa criada na Linha de Sintra que fica feliz com este filho bastardo dos Buraka Som Sistema com os Prodigy. Finalmente uma música que dá para dançar, irra.

No final, pesados votos do júri e do público, passam Bárbara Tinoco, Elisa, Filipe Sambado e Throes + The Shine. Uma misturada de sons, tal como todo o resto desta noite. No próximo sábado há mais rodízio. Tragam Alka Seltzer.