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Treze anos e dez sedes depois, a Associação Porta-Jazz fartou-se de andar com o piano, a bateria, o contrabaixo e todo o seu espólio às costas. A última morada, na Rua João das Regras (uma habitação gerida pela Junta de Freguesia do Centro Histórico), fechou portas em junho de 2021. Encontrar um novo teto foi uma tarefa desesperante: “As perspetivas não eram animadoras. Foi difícil encontrar um espaço que não tivesse conflito de ruído com os vizinhos e que tivesse custos razoáveis”, diz João Pedro Brandão, que na voz denota o “esforço enorme” que foi meter “isto” de pé.
Com “isto”, João, um dos fundadores da Associação portuense, juntamente com Luís Eurico Costa, refere-se à nova morada inaugurada em novembro do ano passado. “Tirámos sete toneladas de entulho do pátio com as próprias mãos”, ilustra, pegando no que é de mais concreto e drástico desta epopeia.
Mas os desafios não foram apenas físicos. O processo foi, acima de tudo, uma prova de fogo para a existência da própria Porta-Jazz: “No momento em que ficámos sem sede, foi um drama. Assistimos a malta a bazar, sobretudo para Lisboa. Embora isto não seja um contexto profissional, é um contexto que dá possibilidades artísticas aos músicos.”
Um polo de convergência entre músicos e público
Criar um movimento sólido e sustentável em torno do jazz, a funcionar a partir do Porto, foi precisamente o que motivou o nascimento da Associação. Estávamos em 2010, uma década após o surgimento do primeiro curso superior ibérico na vertente do jazz. “Quem formou a Porta-Jazz foram os primeiros alunos a sair da ESMAE [Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo do Porto]”.
Uma vez no mercado, esses alunos ficaram à deriva. O circuito na cidade era completamente inexistente. Tirando a Casa da Música, palco reservado a uma minoria, não havia sítios para os artistas tocarem nem para se reunirem. “A Associação surgiu para arranjar um polo de convergência entre os músicos e o público”, lembra João.
Desde então, foi criada uma editora (a Carimbo), que já tem 90 lançamentos em carteira, dinamizados ciclos programáticos que perfazem quase duas centenas de concertos por ano e, mais importante de tudo, surgiu um movimento que se tem vindo a renovar. “Assistimos a um fenómeno engraçado: a malta que vinha ver concertos com 14 e 15 anos, agora são altos músicos envolvidíssimos com a Associação e que já gravaram connosco.”
Falamos, por exemplo, do guitarrista Mané Fernandes ou do duo composto pelo saxofonista Hristo Goleminov e pela vocalista Vera Morais. “Nós, sem contexto, estávamos mais dispersos e tivemos que fazer escolhas mais drásticas. Esta nova geração está muito envolvida e comprometida com a arte”.
Nova sede, nova vida
Ao todo, a comunidade Porta-Jazz é composta por cerca de 100 músicos. Para se manter vital, ressalva João, era essencial largar o modo nómada de vida e estabelecer-se em definitivo num lugar. Não se sabe se esta será a sede para toda a vida, mas o contrato de arrendamento garante pelo menos dez anos de fidelização e uma renda anual de 20 mil euros. E enquanto o apoio da DGArtes estiver garantido (a associação é apoiada desde 2013), não há razão para grandes dores de cabeça existenciais. “Quisemos mudar o paradigma e de uma vez por todas conseguir um espaço que nos desse estabilidade e que nos permitisse perspetivar a nossa atividade para mais do que uns meses.”
Curioso perceber que, tantas voltas dadas na cidade para encontrar o espaço ideal e para contornar a asfixiante especulação imobiliária que se vive por estes dias, a Porta-Jazz foi-se plantar exatamente no quintal ao lado da sua antiga sede. Desta feita, a entrada está virada para a Praça da República. A porta aberta e a fachada envidraçada convidam qualquer curioso a espreitar, dando de caras com uma pequena loja e com uma galeria expositiva, uma das novidades deste novo espaço. As instalações de Nuno Trocado, Sofia Sá e Susana Santos Silva, à volta das potencialidades do som, habitarão a galeria nas próximas semanas.
Descendo as escadas, surge o auditório principal, com capacidade para 50 lugares. O palco é maior do que o da antiga sede e isso alegra João, que assim não tem que encavalitar os músicos como se fossem elementos de uma pintura cubista de Amadeo de Souza-Cardoso. Há duas salas de ensaio adjacentes, uma delas ainda em preparação, e um pátio exterior que já nos faz salivar pelas tardes longas de verão. O tal que estava atolado de entulho.
“Ainda há muita coisa a fazer, desde logo os tratamentos acústicos das salas, os melhoramentos no chão e o isolamento das janelas”. Os “preços alucinantes” obrigam a que não seja dado um passo maior do que a perna e, por ora, a sede apresentar-se-á tal e qual como está: no dia 2 de fevereiro é aqui que a décima terceira edição do Festival Porta-Jazz dá o tiro de partida, com o concerto do Ensemble Porta-Jazz/Robalo às 21h. “Depois deste esforço, não podíamos deixar que o festival não passasse por este espaço e de marcar este momento”.
Treze edições que gritam “estamos aqui”
Tal como na primeira edição, o festival Porta-Jazz continua a ser uma forma de João e de todos os músicos envolvidos no projeto se mostrarem à cidade. “Estamos aqui”, parecem querer bradar. O grito tem ecoado alto, com “avós, crianças, turistas, estudantes de música e de artes” a cruzarem-se no percurso do festival. Na primeira edição, em dezembro de 2010, esse grito foi de tal forma audível que as Galerias de Paris se revelaram pequenas demais para acolher todos os que quiseram assistir ao festival: “Estiveram sempre cheias e havia muita gente na rua a espreitar para dentro”.
O cartaz era composto então por 13 concertos de mais de trinta músicos do Porto. “Era malta muito ativa, mas pouco visível na cidade.” Seguiram-se algumas edições no Passos Manuel, até que em 2015 o festival se mudou em definitivo para o Rivoli, lugar onde “se sente a energia” do jazz.
E o que é mesmo essa coisa a que chamamos de jazz? João responde prontamente: “O jazz, na verdade, é feito de muitas coisas.” As possibilidades estéticas são infinitas, defende. O importante é desmistificar preconceitos e mostrar, através do festival, que qualquer pessoa se pode identificar com algum dos projetos presentes. “Há músicos de 22 anos e outros com 50 e tal; músicos portugueses e estrangeiros; cenas conceptuais, com performances abstratas, e música groovy, mais acessível. Todas essas possibilidades – da improvisação às raízes afroamericanas – estão no jazz.” E no festival também.
Experimentação, cocriação, encomendas e interseção artística
Os primeiros blocos do dia são dedicados aos projetos mais experimentais. Na sexta-feira, 3 de fevereiro, teremos por exemplo o projeto suíço Wabjie, um trio que certamente fará o deleite de qualquer apaixonado por Björk (18h15). Umbral, que se apresenta no sábado, dia 4 de fevereiro, une a dramaturgia de João Louraço Figueira à guitarra e composição de Nuno Trocado (16h). E “Liquify, Spread and Float”, projeto fruto de uma residência artística no Guimarães Jazz, é um desafiante cruzamento disciplinar (sábado, dia 5 de fevereiro, 16h).
Haverá, como sempre, espetáculos resultantes de cocriações coletivas, desta feita entre a Porta-Jazz e as associações OSSO, das Caldas da Rainha (4 fev. 16h), e a lisboeta Robalo (2 fev., 21h). Nas estreias absolutas, destaque para a encomenda dirigida ao pianista portuense Miguel Meirinhos, que aqui se apresenta ao lado do saxofonista britânico Joshua Schofield, do trompetista espanhol Ricardo Formoso e dos portugueses João Fragoso, no contrabaixo, e João Cardita, na bateria. “O Miguel é um talento inacreditável”, exalta João, lembrando que no mesmo bloco haverá um concerto “muito irreverente” do duo polaco de piano e bateria, Alfons Slik (4 fev., 21h30).
Nesse dia, atenção também para o trio lituano liderado pelo saxofonista Liudas Mockūnas, inspirado no free jazz e no jazz de câmara moderno (18h15). Se quiser continuar a explorar o lado mais concetual do jazz, aconselhamos a espreitar o projeto “Into the Big Wide Open”, do baterista austríaco Alfred Vogel, onde o vazio se faz música (5 fev., 18h15).
Noutro registo mais clássico e groovy, o contrabaixista italiano Gianni Narduzzi traz ao Porta-Jazz o álbum Dharma Bums, lançado em 2022 pela Carimbo (3 fev., 21h30) e o guitarrista AP apresenta, em quarteto, Nu, um exercício exploratório alicerçado na simplicidade melódica, no rigor formal e na improvisação (5 fev., 21h30).
O festival Porta-Jazz receberá ao todo 70 artistas, espalhados por 17 concertos, e encerrará com Do Acaso, projeto liderado pela contrabaixista Sara Santos Ribeiro. Em palco estarão 12 músicos reunidos para uma “Catarse Civil”, espetáculo que cruza o texto literário com a nova geração da música improvisada em Portugal (5 fev., 21h30).
Como é habitual, haverá jam sessions diárias às 23h30 no Café Rivoli, dinamizadas pela Art’J – JOBRA (3 fev.), ESMAE (4 fev.) e Conservatório de Música do Porto (5 fev), às quais se junta uma de aquecimento, que acontece já hoje, quarta-feira, a partir das 22h, no Zero Hotel. O anfitrião é o baterista espanhol residente no Porto, Antón Quintela.
Todas as jam sessions são de entrada livre. Já os bilhetes para cada bloco programático do festival – oito ao todo – custam €7. “Vamos todos para o Rivoli”, entusiasma-se João Pedro Brandão. A sede, volvida a sessão inaugural de quinta-feira, ficará quieta durante estes três dias. “Tudo o que se passa no festival, também se passa na nossa sala. Mas o festival é uma espécie de best of. É o culminar da nossa atividade anual”.